Luto

Morre aos 96 anos Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação

Sacerdote peruano abraçou uma proposta teológica centrada na relação entre salvação, libertação e desenvolvimento

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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O jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (esq.) e o teólogo peruano Gustavo Gutierrez após receberem o Prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades 2003 em Oviedo, norte da Espanha - MIGUEL RIOPA / AFP

O sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, maior expoente da Teologia da Libertação, faleceu aos 96 anos na terça-feira (22). A informação foi confirmada pela Província Dominicana de São João Batista do Peru.

O velório do teólogo peruano será realizado na Casa Capitular do Convento de Santo Domingo, no centro histórico de Lima, capital do país.

Gutiérrez, que se tornou dominicano aos 76 anos, cunhou a expressão Teologia da Libertação, que  utilizou pela primeira vez em 1968, em uma reunião da Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellín (Colômbia), para aplicar os princípios de reforma do Concílio Vaticano II. 

Ele também foi um dos primeiros religiosos a denunciar as injustiças e desigualdades na América Latina. Segundo sua visão, a Igreja deve voltar a colocar os desfavorecidos no centro da sua ação e ajudá-los a libertar-se das suas condições de vida. 

Pensador, teólogo, professor e fundador do Instituto Bartolomé de las Casas de Lima, Gutiérrez foi autor de diversos livros e artigos sobre teologia e ativismo social, sendo a principal delas Uma teologia da libertação: história, política, salvação publicada e traduzida para 20 idiomas em 1971.

Também se destacam entre suas obras Linhas pastorais da Igreja na América Latina, A verdade vos libertará, De Medellín a Aparecida e Onde dormirão os pobres?, que desenvolvem o pensamento e a proposta teológica de Gustavo Gutiérrez Merino para quem “a pobreza não é uma fatalidade, é uma condição; ligada à forma como a sociedade foi construída, nas suas diversas manifestações”.

Defesa dos pobres

O pensamento de Gustavo Gutiérrez foi desenvolvido em meio à pobreza: a Teologia da Libertação propõe aliviar as condições de vida dos desfavorecidos, mas também transformá-los em atores da sua própria salvação. Defende uma reorganização da sociedade e denuncia os estragos do capitalismo, responsável, segundo Gutiérrez, pelo sofrimento de muitos "irmãos e irmãs humanos".

Formado em medicina, filosofia e literatura na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, abraçou uma proposta teológica centrada na relação que deve existir entre salvação, libertação e desenvolvimento.

Gutiérrez elegeu duas perguntas para formular sua tese teológica: “Existem duas ordens paralelas, isto é, um fim de vida autônomo e secular? o ser humano e uma revelação sobrenatural, de tal forma que o homem se mova em duas áreas do conhecimento e da vida, completamente separadas e independentes uma da outra e então o que constitui uma questão séria: como dizer ao pobre que Deus o ama?"

Essas questões o levaram a denunciar estruturas políticas e sociais do continente como sendo construídas para impedir a ascenção social dos pobres e oprimidos. 

“A teologia é uma reflexão sobre a fé, e o que a fé tem a fazer é mobilizar as pessoas para a mudança. A maior violência é a pobreza”, disse ele. 

Resistência à ditaduras na América Latina

A Teologia da Libertação fez parte de um movimento sociopolítico mais amplo em uma época em que a América Latina estava dividida por desigualdades ainda mais profundas do que hoje. 

Após a instauração de regimes militares na maioria dos países latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970, os defensores deste movimento participaram ativamente da resistência contra as ditaduras. 

Em 1974, Gutiérrez fundou e dirigiu um centro de atendimento a desfavorecidos, o Instituto Bartolomé de Las Casas, em homenagem ao frade dominicano do século XVI famoso por defender os povos indígenas dos abusos dos colonizadores. 

Também foi professor na Universidade Pontifícia do Peru e em diversas instituições americanas e europeias. 

Reaproximação com o Vaticano

A eleição do papa João Paulo 2º em 1978 marcou o início de um período de estigmatização da Teologia da Libertação no Vaticano. Durante a década de 1980, documentos da Congregação para a Doutrina da Fé,  liderada por Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Bento 16, endereçaram críticas a esse movimento católico, que teve ampla reverberação na América Latina, onde teve origem após o Concílio Vaticano 2º (1962-1965).

Em 2004, a Santa Sé concluiu o que chamou de processo de esclarecimento sobre os pontos que considerou problemáticos em algumas obras do teólogo.

Com o início do pontificado de Francisco, alguns especialistas em assuntos do Vaticano falaram do “retorno da Teologia da Libertação à Igreja Católica” depois de anos de mal-entendidos, algo que foi interpretado com base em uma reunião que o papa argentino teve com Gutiérrez em 14 de setembro de 2013.

Em uma de suas entrevistas ao Vaticano, em 2015, o teólogo peruano admitiu uma melhora nas “relações pessoais e na compreensão da teologia da libertação e sua crítica” desde o papado de Francisco.

 Os restos mortais de Gustavo Gutiérrez Merino serão sepultados no convento de Santo Domingo, em Lima.

*Com AFP

Edição: Leandro Melito