ENTREVISTA

Líder da maior guerrilha ativa na Colômbia avalia desafios para paz com governo de Petro

Comandante do Exército de Libertação Nacional (ELN), Antonio García acredita que direita irá promover "sabotagens"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Comandante do ELN, Antonio García, afirma que só a mobilização popular poderá garantir mudanças estruturais na Colômbia - Federico Parra /AFP

O primeiro comandante do Exército de Libertação Nacional (ELN), Eliécer Herlinto Chamorro, conhecido como "Antonio García", reiterou a disposição da guerrilha em dialogar com o novo governo de Gustavo Petro e Francia Márquez para alcançar um acordo de paz. O ELN é a maior guerrilha em atividade na Colômbia, com cerca de 2,3 mil militantes em duzentos municípios, com maior concentração nos departamentos de Arauca, Cauca, Chocó, Nariño, Catatumbo e Antioquia, segundo a Fundação Paz e Reconciliação (Pares).

A Colômbia vive 58 anos de conflito armado, centrado na disputa pelo controle dos territórios. O ELN foi criado em 1964, sob inspiração da Revolução Cubana e da Teologia da Libertação, e é o último grupo insurgente com ação nacional reconhecido na Colômbia, após os Acordos de Paz de 2016. 

As negociações de paz com os elenos foram interrompidas pelo governo de Iván Duque, em agosto de 2018. Há um mês, Petro declarou estar disposto a um cessar-fogo e à retomada dos diálogos. 

No ano passado, o ELN já avaliava que as eleições de 2022 poderiam abrir um novo caminho para a paz na Colômbia. Agora, faltando menos de uma semana para a posse do novo governo, o primeiro comandante da guerrilha analisa os próximos desafios em uma entrevista originalmente concedida à revista cubana La Tizza. 

Qual a situação dos diálogos de um acordo de paz? Quais elementos o ELN não estaria disposto a negociar?

Os setores dominantes demonstraram ter uma vontade limitada, porque entendem que a superação do conflito armado é a ausência de confronto armado e seu processo está centrado na desmobilização da guerrilha, no desarmamento e na reintegração dos combatentes. Quase todos os processos de paz focaram nisso e em dar certas concessões políticas aos desmobilizados. E focaram muito pouco ou quase nada em atacar as causas que originaram e reproduziram o conflito, que são de natureza política e social, como a pobreza, a falta de assistência social à população, a exclusão política, a repressão e a ausência de participação política na tomada de decisões. 

Desde 1991, o ELN está disposto a dialogar com os governos para criar uma saída política para o conflito. Mas foram os governos que levantaram da mesa, recusaram-se a assinar os acordos ou, no caso de Iván Duque, recusou-se a respeitar os acordos assinados pelo governo anterior e desprezou a gestão de apoio de vários países. O ELN nunca impôs condições a nenhum governo; ele entende que todas as questões podem ser discutidas ou examinadas em uma mesa, se a paz for realmente desejada.  

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E qual é a relação entre paz e justiça social? É possível haver paz em meio ao sistema capitalista? Como você avalia os Acordos de Paz assinados em Havana?

Historicamente, a paz vem sendo associada a um momento anterior ou posterior a uma guerra; como se esses "tempos de paz" costumassem ser melhores para toda uma sociedade específica, para todos os seus integrantes. Muitas vezes as guerras foram ganhas ou perdidas e nem por isso os povos conseguiram viver melhor; e são os pobres que sempre entram com a força de combate.

A paz nem sempre está associada à justiça social e ao bem-estar da sociedade, geralmente está associada apenas à ausência de confronto armado; e, na verdade, acontece o contrário. Quando regimes autoritários se erguem para beneficiar elites econômicas e políticas, que usam o poder para continuar enriquecendo, outros setores da sociedade são obrigados a pegar em armas, pois não há outra opção para promover mudanças que favorecem as maiorias empobrecidas e excluídas. 

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Sobre a negociação do governo de Juan Manuel Santos com as Farc, que se concluiu em 2016, para mim é difícil responder, porque fui um crítico do que aconteceu, tanto dos Acordos quanto da forma como foram feitos. Faço apenas esta reflexão: dá para ter certeza de que a contraparte cumprirá os Acordos? O correto seria poder elucidar essa dúvida metodológica. Se não se pode, a culpa é de quem negociou assim. Nesse tipo de processo não se pode dar votos de confiança, pois a vida de muitas pessoas está em risco. Quando pessoas que participaram de um acordo de paz continuam morrendo, isso exige explicações de quem está no poder.  

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Como você analisa o resultado eleitoral? Quais as possibilidades reais de transformação que possui o novo governo? E os seus principais obstáculos?

Na Colômbia, existe certo cansaço da velha política. Antes havia apatia à participação política, porque o maquinário eleitoral controlava o processo e tudo estava amarrado. Ainda hoje, o clientelismo regional continua mantendo parte desse controle, cerca de metade dessa força eleitoral está nas mãos dele. 

É claro que o Pacto Histórico tem propostas de natureza democrática, em questões econômicas, políticas e sociais. Por isso, eles precisaram fazer alianças com setores de centro-direita para ter maioria no parlamento, mas ficaram sujeitos a ter que negociar as reformas com esses setores e agora a concretização delas está em jogo. 

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Os principais obstáculos para a realização de reformas profundas estão na natureza da oligarquia colombiana, que se acostumou a governar sem permitir protestos e usou a repressão social para impedir mudanças. É por isso que agora ela tentará barrá-las no parlamento e depois recorrerá ao velho manual ditado pelos gringos: sabotagem da economia, bloqueio diplomático e econômico e, claro, as velhas práticas de intervenção. 

É claro que, se houver uma mudança real na sociedade colombiana, o povo terá que apoiá-la, e isso só pode acontecer com mobilização popular, como tem sido feito nos últimos três anos com força e firmeza. 

Petro poderá administrar uma parte do tesouro público do governo, mas não poderá mexer no Estado profundo que controla o poder na Colômbia. 

O movimento social e político alternativo acompanhará o Petro nas reformas que favoreçam os interesses populares, mas precisará ir muito além das iniciativas do governo, mantendo suas propostas de transformação.   

Analisando a história da Colômbia é possível caracterizar um caráter sistêmico e estrutural da violência. Com a vitória do Pacto Histórico nas urnas se abre um novo cenário ou trata-se de um novo simulacro que terminará com mais violência contra os setores populares?

Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Estamos em um desses momentos em que, se uma transição política não for viável, ficará evidente que a oligarquia não deixou ao povo outro caminho senão continuar a luta por outros meios. Espero que não seja o caso, mas isso só a realidade dos próximos anos dirá.  


Com base no exemplo de Camilo Torres, a guerrilha ELN busca liberar a Colômbia do sistema capitalista / Aleteia


Qual é a concepção política do ELN e sua estratégia de poder?

A concepção política do ELN é fundamentada na história, na qual quem promove as transformações são os povos. Ao longo da história universal, em um determinado momento, reuniram-se as circunstâncias, as capacidades de uma força político-social e um ideal de mudança. A estratégia do ELN está orientada e trabalha nesses três campos a fim de construir um novo regime político que seja capaz de democratizar o país, dando participação às maiorias e promovendo, assim, mudanças para uma Colômbia diferente, mais justa, mais igualitária e feliz. 

Naturalmente, o ELN aposta na construção de uma sociedade pós-capitalista, pois o capitalismo é apenas um momento na história das sociedades. Com certeza haverá uma sociedade com uma ordem social diferente chamada socialismo.

Fazemos parte dos Movimentos de Libertação Nacional, portanto somos marxistas, bolivarianos, guevaristas e camilistas. Defendemos um novo tipo de nação, não o Estado-nação típico do capitalismo, e sim a Nação Social, que reivindica o ser humano, a vida e a natureza. Uma nação onde prevaleça a sociedade e não o Estado, e é ela quem deve garantir o bem social. 
 

Edição: Flávia Chacon e Michele de Mello