ARTIGO

Marcha da Maconha convoca para mobilização neste domingo (20) em Porto Alegre

Em sua décima primeira edição, a organização espera reunir em torno de cinco mil pessoas pela descriminalização da erva

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
A concentração começa às 14h no Monumento ao Expedicionário, com saída às 16h20; ato promete diversas atrações culturais - ana ruff

Neste domingo (20), a décima primeira edição da Marcha da Maconha espera reunir cerca de cinco mil pessoas em uma manifestação pela descriminalização da substância. O evento começará às 14h, no Monumento ao Expedicionário, com saída programada para as 16h20, prometendo diversas atrações culturais ao longo do percurso.

A Marcha da Maconha é um movimento antiproibicionista, cujo objetivo é demonstrar que a sociedade apoia a descriminalização, legalização e regulamentação da maconha no Brasil. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase um terço da população carcerária do país está presa por crimes previstos na Lei de Drogas.

O Brasil possui mais de 183 mil pessoas detidas por tráfico de drogas, e, dessas, pelo menos 19 mil estão encarceradas por portar menos de 100 gramas de maconha. Essa estatística evidencia a cultura proibicionista, que alimenta o encarceramento de pessoas negras, pobres e moradoras de áreas marginalizadas, custando aproximadamente R$ 600 milhões aos cofres públicos anualmente.

De acordo com Waldomiro Aita, integrante do coletivo organizador da marcha: “É necessário que nossos legisladores busquem informação, que entendam e vejam a maconha como uma questão de saúde pública, e não de segurança.” Ele destaca que a manifestação também clama pelo desencarceramento da população criminalizada injustamente por simplesmente portar maconha para uso pessoal, já que o aprisionamento em massa da população periférica traz consequências desastrosas para a sociedade.

Diversos estudos, incluindo pesquisas realizadas por órgãos federais, apontam que mais de 33% dos condenados por tráfico podem ter seus casos revisados devido à recente descriminalização do porte para uso pessoal de até 40 gramas de maconha. Isso significa devolver a liberdade e a dignidade àqueles criminalizados por uma lei considerada injusta e retrógrada, com raízes no preconceito racial e classista, que por 104 anos tem negado o direito à saúde, à qualidade de vida e à liberdade de ir e vir.

Um movimento voluntário organizado

A Marcha da Maconha é um movimento coletivo internacional que ocorre no Brasil desde 2002, tendo sua primeira edição realizado no Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, a marcha foi convocada pela primeira vez em 2009, mas somente realizada em 2011, com uma liminar do STF. Esta será a décima primeira edição, uma vez que o evento não ocorreu durante os anos da pandemia.

A organização da marcha é conduzida por um coletivo autônomo, com uma articulação nacional que preserva a autonomia de cada regional. Para custear o evento, a Marcha costuma realizar rifas e vender produtos como camisetas, além de receber doações de ativistas e apoiadores. Algumas marcas de acessórios e parafernália para usuários também contribuem com doações financeiras e materiais.

A marcha acontecerá no dia 20 de outubro, e promete ser uma festa divertida e pacífica, indicada para todas as pessoas. “As pessoas vêm com fantasias e cartazes, é um evento para todos”, reforça Aita, convidando a população a se juntar à mobilização em favor da descriminalização da maconha.


"As pessoas vêm com fantasia e cartazes, é uma festa divertida e pacífica, indicada para todas as pessoas", destaca Waldomiro Aita / ana ruff

A proibição tem um histórico racista

O Brasil foi um dos países pioneiros nas Américas a se ter registro do uso do consumo da maconha. Historiadores explicam que a erva foi trazida escondida pela população negra escravizada e era utilizada em práticas religiosas e terapêuticas. Em contraponto a isso, o Brasil foi pioneiro em criminalizar o uso da maconha, punindo pessoas escravizadas ou recém libertas que fumassem a erva. Na época, o Brasil passou a punir também outras práticas culturais de pessoas negras, como a capoeira e o samba. Ou seja, a criminalização da maconha tem raízes históricas racistas.

A Guerra às Drogas, que ganhou força globalmente a partir da década de 1970, trouxe consequências devastadoras, especialmente para as populações periféricas e negras no Brasil. O foco da política de drogas tem sido predominantemente punitivo e feito pela Segurança Pública, levando a uma intensificação da repressão policial nas comunidades onde essa criminalização é mais sentida. As operações policiais em favelas – frequentemente justificadas como combate ao tráfico – resultam em um ciclo de violência e morte.

A presença constante da polícia e o medo de represálias dificultam o acesso a serviços essenciais, como educação e saúde. Muitas vezes, jovens negros são forçados a optar por atividades informais ou ilegais, perpetuando um ciclo de pobreza e violência. Ademais, a estigmatização do uso de drogas tem efeitos diretos na saúde pública. Em vez de tratar o uso como um problema de saúde, as políticas atuais promovem a marginalização e a criminalização, dificultando o acesso a tratamentos e apoio. Pode se dar ainda um enfoque  ao recorte racial, pois enquanto os usuários de drogas brancos frequentemente encontram alternativas, os usuários negros e periféricos são tratados como criminosos, sem qualquer apoio adequado.

Enquanto a periferia está em guerra, famílias brancas, ricas e de classe média já conseguem com maior facilidade fazer o uso medicinal da maconha, encontrando alívio para sintomas de diversas doenças. O tema tem ganhado cada vez mais atenção no Brasil, contudo, pouco se fala na amplitude dessa desigualdade e na necessidade de uma reparação histórica de todas as vidas ceifadas em função dos modelos de políticas de drogas racistas e punitivistas.

Outro olhar sobre "as drogas"

Segundo a definição da OMS, “droga é qualquer entidade química ou mistura de entidades que altere a função biológica e possivelmente a estrutura do organismo” (OMS, 1981). As chamadas substâncias psicoativas são aquelas que atuam sobre o Sistema Nervoso Central, modificando o seu funcionamento. Segundo a Associação Internacional de Redução de Danos, a Redução de Danos (RD) é um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas.

A RD foca na prevenção de danos, ao invés da prevenção do uso de drogas, ou seja: seu olhar é voltado para o usuário, não para a substância.

Este ponto é importante, pois há uma grande diferença entre a RD e a perspectiva utilizada tradicionalmente, que foca na abstinência. Na RD o que se prioriza é o cuidado e autonomia de pessoas que usam drogas e as práticas são fundamentadas nos princípios de democracia, cidadania, direitos humanos e de saúde. A abstinência pode, sim, ser uma perspectiva, caso seja desejo do usuário, mas não é o ponto central. Trata-se de um olhar que não criminaliza, não pune e não proíbe. Ao contrário, trata-se de um paradigma ético, clínico e político com viés acolhedor, informativo e garantidor de direitos.

Para a psicóloga e redutora de danos Raquel Meyer Backes, ao contrário do que muitas pessoas pensam, a Marcha não se trata de um movimento social com objetivo único de pautar a descriminalização e/ou legalização da maconha, mas sim, trata-se de um convite para que a sociedade possa refletir sobre as raízes históricas, culturais e sociais da proibição, e como isso está intimamente ligado com problemas sociais e de saúde pública que enfrentamos atualmente.

A descriminalização não só da maconha, mas de outras drogas, acontece quando uma conduta deixa de ser tratada na esfera da justiça criminal, mas ainda pode ser tratada na esfera civil ou administrativa. Aos poucos isso está acontecendo no Brasil, a exemplo da decisão recente do STF em relação à maconha. Contudo, a luta segue para o objetivo final da legalização e da regulamentação das drogas, a fim de se tornar questão de saúde pública e não de segurança pública.

"Essas trajetórias de lutas dialogam com a possibilidade que pessoas que não querem ou não podem deixar de usar drogas possam fazer escolhas mais conscientes, pautadas no conhecimento do que realmente estão usando através da regulamentação, como o álcool e o cigarro. Assim, as estratégias de RD passam a ter um papel mais efetivo no cuidado dessas pessoas", complementa ela.

Ainda segundo a psicóloga, a luta pela RD anda de mãos dadas com as lutas antirracista, antiproibicionista, antipunitivista e antimanicomial. "RD não se trata de apologia ao uso de drogas, e sim, apologia ao cuidado!"


Em Porto Alegre, a marcha foi convocada pela primeira vez em 2009, mas só pode ser realizada em 2011, com uma liminar do STF / ana ruff

Confira o Manifesto da Marcha da Maconha

Solta o preso! Mutirão de revisão já: o encarcerado não pode esperar! Guerra contra as drogas é, antes de tudo, uma guerra contra a juventude periférica, contra as pessoas pretas, contra as pessoas pobres e contra as minorias. Lutamos e marchamos pelo direito de todos.

A Marcha da Maconha POA 2024, como sociedade civil organizada e lutadora, exige celeridade nos mutirões de revisão judicial nos casos de tráfico de drogas. Esta medida é urgente para que aqueles que foram cerceados de sua liberdade, de forma injusta e ilegal, sejam soltos e reintegrados a sociedade, podendo assim continuar com suas vidas, recebendo todo apoio do Estado para que isso aconteça. 

Solicitamos solidariedade aos órgãos competentes e representativos, como a DPE, OAB e CNJ, para prestarem todo o auxílio a população indevidamente encarcerada, a fim de que a alforria venha, mas acompanhada da devida responsabilidade e reparação por parte do Estado, o maior financiador da “guerra contra as drogas”.

A descriminalização é um passo importante, mas ainda não é o suficiente, e a Marcha segue na causa!

Bolando o presente e acendendo o futuro!

* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko