Rebeldia

Cuba marca 57 anos da morte de Che Guevara: 'Ninguém morre enquanto é lembrado'

'Trata-se de tornar sua figura mais complexa e dar conta das imensas contribuições que Che fez' afirma professora

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Che Guevara ao lado de Fidel Castro - Fidel Soldado de Ideas

Seu nome está envolto em todo tipo de lendas. Como quase nenhuma outra figura histórica, em Cuba, Che Guevara é envolto numa aura que beira o religioso. Uma imagem mítica que habita os estandartes da resistência e os anseios por justiça na cultura popular.   

Ano após ano, todo dia 9 de outubro, milhares de pessoas peregrinam pelas ruas empedradas de La Higuera, uma pequena cidade nos vales bolivianos. Lugar onde Che foi aprisionado em 1967, numa pequena sala de aula, e assassinado a sangue fria sem nenhum julgamento um dia depois. No lugar, uma pequena placa indica: “ninguém morre enquanto é lembrado”.

O encarregado da fatídica operação que matou Che foi Félix Ismael Rodríguez, um experiente agente da CIA que tinha liderado cerca de 1,5 mil mercenários na tentativa fracassada de invadir Playa Girón em abril de 1961. Aquele funesto 9 de outubro, ele ordenou que os tiros fossem dados abaixo do pescoço, para que pudessem simular um confronto.  

Os restos mortais de Che e de seus companheiros foram dados como desaparecidos. A decisão dos serviços de inteligência dos EUA queria evitar que sua tumba se tornasse um centro de devoção. No entanto, nada impediu que milhares e milhares de pessoas viajassem para esse pequeno vilarejo perdido nos vales bolivianos durante décadas, improvisando altares e oferendas à memória desses revolucionários.     

Durante trinta anos, o corpo de Che e os de seus companheiros ficaram desaparecidos. Os Estados Unidos se recusaram a fornecer qualquer informação sobre seu paradeiro, enquanto os sucessivos governos bolivianos obstruíram qualquer autorização para a busca de seus restos mortais. Foi somente na década de 1990, durante a presidência de Gonzalo Sánchez de Lozada, que a Bolívia permitiu investigações sobre o destino do corpo de Che.

A busca foi realizada contra todas as probabilidades de sucesso: desafiando o curto período de tempo para o qual as licenças foram obtidas para permitir as escavações necessárias. A sorte não veio imediatamente. O sigilo militar tornou a tarefa praticamente impossível mas, apesar disso, faltando apenas um dia para o fim do prazo, no dia 28 de junho de 1997, a equipe de especialistas forenses cubanos e argentinos conseguiu encontrar a fossa coletiva na qual Che foi enterrado. 

Os restos mortais de Che e de seus companheiros do sacramento do reforço, retornaram a Cuba no difícil ano de 1997, 30 anos após seu assassinato, descansam agora em Santa Clara. Naquele memorial, ano após ano, todo dia 9 de outubro - ou 8, já que a data exata de morte é disputada - , centenas de crianças cubanas são iniciadas na Organização dos Pioneiros José Martí, um agrupamento juvenil de crianças cubanas. Seu conhecido lema é “Seremos como Che”. 

Profundamente humanista 

María del Carmen Ariet García, coordenadora acadêmica do Centro de Estudos Che Guevara, disse ao Brasil de Fato que a vida e a obra de Che Guevara estão marcadas por uma concepção “profundamente humanista”. Uma ideia que o acompanhou ao longo de seus 39 anos de vida, desde a infância até sua morte precoce. 

"Sempre foi obcecado pelo papel do homem na História. O melhoramento humano em termos de atingir metas que garantissem seu desenvolvimento e realização. Já na adolescência, quando escreveu um pequeno dicionário filosófico, podemos constatar isso. Mas também quando, anos depois, ele estudou sistematicamente a tradição marxista. Sempre buscou o papel do homem e seu papel na história em cada leitura, mesmo nas leituras gerais de literatura e história. Nesse sentido, sempre procurou mecanismos de cooperação social como formas de desenvolvimento social." 
 


María del Carmen Ariet García / ContextoLatinoamericano

A professora afirma que foi esse humanismo que impulsionou Ernesto nas suas viagens. Viagens que mudariam para sempre esse jovem inquieto. 

Primeiro para o norte da Argentina, onde conheceu a pobreza e a desigualdade de seu próprio país. E depois para a América Latina, onde conheceu a violência do imperialismo, principalmente do estadunidense, que assola o continente de todas as formas possíveis. “Sua busca pela realidade da América Latina é o que explica, não o aventurismo do qual ele tem sido frequentemente acusado, mas sua ousadia de embarcar em uma aventura para conhecer a verdadeira realidade da América Latina”, diz ela. 

“É interessante notar que em sua primeira viagem à Argentina, Che, sendo um jovem de classe média, não decidiu ir a Bariloche ou a algum lugar onde as pessoas com dinheiro geralmente iam. Em vez disso, ele decidiu viajar para o norte do país, onde viu pela primeira vez outra Argentina, diferente daquela que o cercava. Ainda não havia uma motivação que pudesse ser chamada de política, mas existia uma sensibilidade especial.”

Anos mais tarde, Che resumiria essa perspectiva em uma carta na qual confessava que “percebo que os países não são conhecidos em decks luxuosos de hotéis, mas sim quando passamos a conhecer as pessoas, seus interesses e seus conhecimentos”. 

Produção e consciência 

María del Carmen Ariet García é uma das duas pesquisadoras, juntamente com Disamis Arcia Muñoz, que recentemente coordenou a Antología General Ernesto Che Guevara, a maior e mais completa antologia de textos sobre Che que existe atualmente. 

Durante décadas, os esforços do Centro de Estudos Che Guevara têm se concentrado em promover o estudo e o conhecimento do pensamento, da vida e da obra de Che. Estudioso metódico e habilidoso polemista, as contribuições de Che como pensador muitas vezes foram ofuscadas pela unilateralização de suas qualidades éticas.   

“Não se trata de desprezar a reivindicação de sua entrega, sua ética e seu exemplo. Trata-se de tornar sua figura mais complexa e dar conta das imensas contribuições que Che fez não apenas no campo prático, mas também no teórico. Porque Che foi, acima de tudo, um homem integral que não desprezou nenhuma das dimensões da atividade humana e revolucionária”. 

Após o triunfo da revolução, Che foi protagonista, no início, de uma tarefa ainda mais difícil do que a de derrubar o regime tirânico de Batista: a de começar a construir uma sociedade socialista. 

“Já quando a Revolução Cubana se definiu de forma contundente como socialista, todos começam a saber o que é o verdadeiro socialismo. Quais são suas linhas e condições. Nesse contexto, na década de 1960, ele começou a meditar sobre o tipo de socialismo desejado e necessário em Cuba, variantes que também poderiam ser exemplos para o Terceiro Mundo. Naqueles anos, ele disse que as pessoas precisam de dois elementos fortes para dizer que estão em um processo socialista: produtividade e consciência”.

A professora explica que, na concepção de Che, em contraste com as visões dominantes da época, o socialismo não deveria apenas tentar melhorar os aspectos materiais da sociedade. Além de transformar a economia, ele também deveria transformar os aspectos espirituais das pessoas e da sociedade. María del Carmen diz que é importante manter viva a memória de Che, mas que, acima de tudo, é essencial, nestes tempos de ascensão da extrema direita, “voltar ao Che”. 

“Estamos enfrentando um mundo em crise, mas o mundo em que ele viveu também teve suas crises. E foi sua respiração, junto com a de tantos outros, que possibilitou ao mundo sonhar que a justiça poderia ser possível. Uma busca na qual ele até mesmo deixou sua vida.”

Edição: Rodrigo Durão Coelho