Paco Ignacio Taibo

Para biógrafo de Che Guevara, 'no coração da esquerda, há um depósito de caráter político-cultural'

No aniversário do revolucionário, o Brasil de Fato traz entrevista com Paco Ignacio Taibo

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Paco Ignacio Taibo II nasceu na Espanha em 1949, mas vive no México desde a infância - wikiCommons

Qualquer tentativa de definir Paco Ignacio Taibo II parece insuficiente. Ativista cultural e agitador de esquerda, Paco é autor de quase uma centena de publicações que navegam entre romances policiais, crônicas jornalísticas e uma obsessão inesgotável pelas lutas revolucionárias e seus personagens. Principalmente, por aquelas figuras que a história oficial tenta esconder.

Desde os seus anos de estudante, envolveu-se nas lutas sociais do México, fazendo parte de uma geração que protagonizou as míticas revoltas mundiais de 1968. Uma geração marcada a fogo pelo sonho de tomar o céu por assalto e que conheceu desde cedo a crueldade da repressão estatal no sangrento Massacre de Tlatelolco.

Paco fuma cigarros cubanos, sentado frente ao portão da livraria Rosario Castellanos do Fondo de Cultura Económica. Uma das editoras mais importantes da América Latina, onde desempenha o cargo de diretor desde que Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e o seu projeto da Quarta Transformação chegaram ao poder no México em 2018.

Por ocasião do aniversário de Che Guevara neste 14 de junho, mas também como parte de uma reflexão sobre cultura e esquerda, em entrevista ao Brasil de Fato, Paco afirma, sem hesitar um segundo sequer, que a essência da esquerda é, acima de tudo, a cultura.

"Da Comuna de Paris, de Garibaldi ou mesmo de Joana d'Arc. Toda essa visão histórica de tomar partido pelos pobres, pelos humildes, pelos rebeldes, pelos loucos, pelos inconformados, etc., coloca você em um relacionamento sentimental eterno. Isso o coloca em eternas relações sentimentais com a Internacional cantada pelo Exército Vermelho ou Edith Piaf ou Pontecorvo e a Batalha de Argel."

"Curiosamente, nós estamos nos referindo a tudo isso em termos político-culturais. São livros, filmes, peças de teatro e músicas que alimentam isso. E é aí que está o sustento da esquerda. No substrato, no coração da esquerda, há um depósito de caráter político-cultural. De referências que, na melhor situação, são sérias e sólidas. E, na melhor versão, são críticas. Porque você pode sorrir com a vitória do exército vermelho em Stalingrado, mas não vai gostar do canto de Neruda para Stalingrado porque é demagógico”.

Enfatizando a importância das imagens e dos afetos, Paco insiste “curiosamente, nós estamos nos referindo a tudo isso em termos político-culturais. São livros, filmes, peças de teatro e músicas que alimentam isso. E é aí que está o sustento da esquerda. No substrato, no coração da esquerda, há um depósito de caráter político-cultural. De referências que, na melhor situação, são sérias e sólidas. E, na melhor versão, são críticas. Porque você pode sorrir com a vitória do exército vermelho em Stalingrado, mas não vai gostar do canto de Neruda para Stalingrado porque é demagógico."

Nesse substrato político-cultural de que fala Paco, a imagem de Che Guevara adquire uma relevância  grande.

Nascido no dia 14 de junho de 1928. Ernesto Guevara de la Serna foi o mais velho de cinco filhos de Celia de la Serna e Ernesto Rafael Guevara Lynch. A versão familiar é que nasceu por acidente na cidade de Rosário, num parto prematuro, quando o jovem casal se dirigia desde a província de Misiones, no norte da Argentina, fronteira com o Brasil, em direção a Buenos Aires, a capital do país.

Sobre os mitos

No meio de um contexto adverso para o imaginário revolucionário, em 1996, Paco publicou uma das investigações político-biográficas mais exaustivas jamais escritas sobre Che Guevara. Uma monumental obra de 827 páginas, documentada em mais de 1.700 fontes, muitas delas inéditas até então.

Ernesto Guevara, também conhecido como El Che, não só se tornou um verdadeiro fenômeno editorial, traduzido para uma dezena de línguas e vendido mais de um milhão de exemplares. Mas também permitiu a abertura de novas investigações sobre sua vida e obra, que até então se encontravam ignoradas. Entre elas, as divergências e polêmicas que Che teve com a União Soviética sobre as "interpretações oficiais" do marxismo.

A tarefa de produzir o livro não foi fácil. Toda figura histórica, por mais lendária que seja, nunca deixa de ser humana. No entanto, Paco aponta que é difícil abordar a figura de Che, porque esta se encontra "sobrecarregada por demasiadas interpretações fáceis", mas também por "demasiadas sombras".

Durante quatro anos intensos de trabalho, Paco se dedicou a escrever sua biografia do Che. De forma obsessiva, procurou reconstruir todos os aspectos da vida de Guevara. Seguindo cada pista que o levava a juntar as peças dum quebra-cabeças que parecia impossível: a vida de um homem que - por vezes - tinha decidido borrar as próprias pegadas para se tornar invisível.

Sem escapar às polêmicas dos seus detratores, mergulhou nas milhares de páginas repletas de mentiras e difamações publicadas contra o Che. Procurou responder a cada uma dessas mentiras, apresentando provas e reconstruindo argumentos, como se se tratasse de um mecanismo de relojoaria.

Mas a tarefa mais difícil foi a de enfrentar os perigos da própria idealização do Che. Aceitar o desafio de ser capaz de olhar para além da figura do herói, aquele que ele admirava desde a adolescência, para encontrar a história de um revolucionário real, de carne e osso.

"As pessoas precisam de mitos. Mas precisamos de mitos que toquem a terra com os pés", reflete Paco. E acrescenta: "o problema é a perda de conteúdo ou o estabelecimento de imagens rígidas".

Certa vez, tive uma experiência interessante. Quando o livro foi lançado em Cuba, após algumas dificuldades de circulação, fui convidado pelos professores de uma escola que o próprio Che havia construído. Eu fui e estava rodeado de pequenos pioneiros. Quando cheguei, eles disseram "este é o autor do livro" e todos disseram "ahhhhh". Eles gritaram para mim: "Seremos como o Che". E eu disse a eles, "ya ya, camaradas: "vocês serão asmáticos?" e as crianças disseram "não Paco, asmáticos não". "Nós seremos como o Che"... “Então… "Serão Argentinos?"... "Não, somos cubanos!”.

Paco solta uma gargalhada quando recorda a anedota e conta como os professores "quase o mataram". Provocador e irreverente, ele se diverte cada vez que escandaliza seus interlocutores. Como se fosse um convite ao inconformismo, para abandonar frases feitas e refletir sobre a própria prática.

“Milagrosamente, saí vivo daquela escola. No entanto, muitos dos professores me agradeceram pela desmistificação quando lhes contei a história. Quem foi o Che que construiu fisicamente aquela escola ", conta.

As noites no fundo

Em 1954, após o golpe de Estado liderado pelos Estados Unidos que derruba o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala, Ernesto Guevara é obrigado a se exilar no México. Foi aí que o seu destino mudou para sempre.

Guevara tinha decidido viajar para a Guatemala durante a sua segunda viagem pelo continente. O seu objetivo era conhecer o processo de transformação social que o governo nacionalista de Árbenz estava promovendo, com medidas como uma reforma agrária que buscava distribuir terra entre os 76% dos habitantes que possuíam menos de 10% das terras.

Durante a sua estadia, Guevara estabeleceu laços estreitos com organizações socialistas e comunistas. Chegou mesmo a colaborar, como médico, nas tentativas de resistência ao golpe de Estado. No entanto, essas tentativas foram frustradas quando Árbenz se rendeu ao golpe. O que obrigou Guevara e dezenas de outros activistas políticos e sociais a exilarem-se.

Ao chegar ao México, Guevara trabalha ao lado de Julio Roberto Cáceres, mais conhecido como "El Patojo", um jovem guatemalteco com quem tinha criado uma estreita amizade. Procuraram trabalho em qualquer emprego que conseguissem, o que os leva a ganhar a vida tirando fotos no centro da Cidade do México. Trabalham juntos até que "El Patojo" consegue um emprego como segurança num armazém do Fondo de Cultura Económico.

Foi assim que, pelas noites, Guevara o visitava e passava a noite nos armazéns e aproveita para ler os livros dos armazéns. Além do seu fanatismo pela literatura de aventura, lê A História do México de José Vasconcelos e estuda O Capital de Karl Marx.

Algumas semanas mais tarde, Guevara conhece um grupo de jovens exilados cubanos que tinham tentado invadir um quartel militar, com o objetivo de derrubar a ditadura que se havia instalado na ilha de Cuba. O grupo era liderado pelos irmãos Castro.

Contra o burocratismo

"A experiência vital de dirigir o fundo e o projeto do livro no âmbito da Quarta Transformação. É que se tem uma dificuldade para baixo, que é a de se ligar e comunicar com as grandes maiorias. E um conflito horizontal, que é o fato de o aparelho ir para além das normas, das regras, dos papéis, cobrindo as costas ao cumprir formalmente", reflete Paco.

Já como funcionário da Revolução Cubana, o Che Guevara advertia sobre os perigos da burocracia. Numa célebre entrevista televisiva em 1964, o Che afirmava: "Acreditamos que a raiz da burocracia reside naquilo a que chamámos uma certa falta de impulso interno por parte de alguns funcionários. Ou seja, falta-lhes o sentimento do problema que têm em mãos. Um certo medo das consequências dos seus atos, que os obriga a proteger o papel. Sempre o papel em primeiro lugar. O que, além do mais, é uma falta de compreensão do problema que estão a enfrentar".

A ideia da luta contra a burocracia é uma das ideias guevaristas mais presentes no discurso de Paco. Durante anos, organizou diferentes espaços culturais para promover a leitura e a divulgação da história. Desde que assumiu a direção do Fundo de Cultura Econômica, o seu objetivo foi baixar o preço dos livros e fazer com que essas publicações chegassem, sobretudo, aos setores populares.

Por isso, raramente Paco se encontra nos escritórios do Fondo. Todos os dias, viaja pelo país, levando exemplares dos livros aos locais mais remotos. E incentivando a criação de círculos de leitura. Paco sorri ao mostrar fotos dos lugares que visitou naquela manhã.

"É muito gratificante ver que os jovens estão a poupar para, quando chegarmos, poderem comprar um exemplar dos livros que levamos", diz.

"O que não pode acontecer connosco é perdermos o sentido da realidade. O nosso problema é o cumprimento real, não o cumprimento formal. Vivendo esta experiência, eu atiro a burocracia para debaixo do autocarro sempre que posso. Sobretudo como um aviso. Diz ele com a frase mais guevarista possível.


Paco viaja pelo México espalhando cultura para as novas gerações / Gabriel Vera Lopes

Edição: Rodrigo Durão Coelho