Perda de legitimidade ou reestruturação? A Assembleia Geral da ONU realizada na última semana recebeu críticas tanto de líderes progressistas como de conservadores para o modelo de organização das Nações Unidas em meio a guerras, conflitos e, para alguns países, sanções econômicas. Para o bloco de países que vivem sob o embargo, a ONU tem sido ineficiente em combater essas medidas usadas de maneira ilegal, o que criou uma descredibilidade junto a uma parte considerável dos países-membros.
A aplicação de sanções está prevista na Carta das Nações Unidas, documento responsável pela fundação da ONU. De acordo com o artigo 41 do texto, esse tipo de medida deverá ser aprovado pelo Conselho de Segurança. Mas países como Venezuela, Cuba, Rússia e Irã são alvos de bloqueios econômicos e diplomáticos decididos de maneira unilateral por Estados Unidos e União Europeia, ou seja, receberam sanções sem que isso tenha sido aprovado pelas vias oficiais, o Conselho de Segurança.
De acordo com o Observatório Antibloqueio da Venezuela, 30 países estavam sancionados em todo o mundo até setembro de 2024. Ao todo, 31.150 sanções são impostas principalmente por EUA e UE, sendo 97% delas concentradas em 9 países e os outros 3% sobre 21 países. De acordo com o levantamento, a Venezuela é alvo hoje de 947 sanções. Quem lidera o ranking é a Rússia, com 22.230 medidas, seguida por Irã (2.726), Síria (1.360) e Ucrânia (1.187).
Para Sair Sira, analista político do grupo Missão Verdade, as sanções são usadas de maneira política e acabam descredibilizando a ONU e o Conselho de Segurança, que são os instrumentos com autoridade para aplicar esse tipo de medida.
“O fato de que os EUA estão usando as sanções como ferramenta da política exterior acelera esse processo de descrédito e de desconfiança nas instituições internacionais. Porque quando Bretton Woods criou o Banco Mundial e foi criado o Fundo Monetário Internacional, eles eram instrumentos da comunidade internacional. Hoje eles são instrumentos hegemônicos das potências para justamente aplicar essas medidas e controlar o sistema financeiro e a política econômica de outros países”, afirmou ao Brasil de Fato.
De acordo com ele, os Estados Unidos bloqueiam alguns países sem sequer usar os critérios definidos pela ONU, de desestabilização da paz internacional. Esse é o caso da Venezuela, que foi bloqueada pela política interna do país.
“Os critérios pelos quais se sanciona Venezuela e Cuba, por exemplo, não são porque eles colocam em risco a paz e a estabilidade internacional. É por algo maleável como democracia, direitos humanos. E digo maleável porque são conceitos vazios que eles preenchem. Ou seja, quando eles preenchem, eles instrumentalizam”, afirmou.
Líderes contestam
Depois de uma semana de debates, a Assembléia da ONU terminou com muitas críticas ao modelo de como estão organizadas as Nações Unidas. Uma das questões levantadas pelos chefes de Estado foi a falta de ação da ONU em questões cruciais como as guerras da Ucrânia e o massacre na Palestina.
Para os líderes do Sul Global, há uma divisão clara de narrativas com os países do Norte que querem impor uma agenda econômica. O chanceler venezuelano Yván Gil representou o presidente Nicolás Maduro no evento epara ele, além de uma oposição de ideias, é preciso que a ONU resgate os princípios fundamentais expressos na sua Carta de fundação.
“É hora de resgatar os princípios fundamentais expressos na Carta das Nações Unidas e honrar o fato de que esta organização está em nosso serviço, o povo, como afirma o seu estatuto. A Venezuela coloca a sua diplomacia bolivariana de paz a serviço da humanidade, avançando nessa direção como demonstra sua liderança diante do grupo de amigos em defesa da Carta da Organização das Nações Unidas”, disse em seu discurso.
A crítica ao papel da ONU partiu também dos setores mais conservadores. O presidente da Argentina, o ultraliberal Javier Milei, disse que hoje a organização se tornou uma ferramenta para impor ideologia e, por causa disso, perdeu credibilidade junto aos cidadãos.
“Em algum momento e como habitualmente acontece com a maior parte das estruturas burocráticas que os homens criam, esta organização deixou de salvaguardar os princípios delineados na sua ação fundadora e começou a mudar. Assim, passamos de uma organização que perseguia a paz para uma organização que impõe uma agenda ideológica a seus membros em uma série de questões que compõem a vida do homem em sociedade”, afirmou.
A reforma no Conselho de Segurança da ONU também foi um tema discutido. Lula foi um dos líderes que tocou no assunto. O presidente brasileiro pediu a inclusão de outros países no Conselho de Segurança e um outro modelo que tome decisões mais efetivas. O grupo é composto por EUA, França, Reino Unido, Rússia e China e, nos últimos anos, encontrou desafios para a aprovar resoluções que ajudem a resolver conflitos no mundo.
Para Sair Sira, cientista político e analista do grupo Missão Verdade, a forma como o Conselho de Segurança é organizado ajudou a desgastar a imagem da organização com a comunidade internacional.
“Fundamentalmente a ONU é o Conselho de Segurança. É o órgão que tem mais relevância, preponderância de intervir em uma situação por meio de resolução. Por isso, o funcionamento da ONU exige que as grandes potências concordem e tenham consenso em uma posição para avançar. Em situações polarizantes como a que vivemos hoje, é difícil que vejamos Rússia e EUA estando de acordo em uma resolução que condena os ataques a Gaza ou a invasão ao Líbano”, disse.
A ONU, no entanto, nunca teve um papel de abarcar todas as nações e as diferentes posições sobre os conflitos globais. A organização surgiu depois da Segunda Guerra Mundial que teve União Soviética, EUA, Reino Unido e França entre os vencedores e as Nações Unidas foram criadas depois da Conferência de São Francisco com o objetivo de mediar os conflitos e estabelecer uma nova forma de organização multipolar.
Para Sair Sira, no entanto, essa estabilidade nunca foi alcançada durante os 79 anos da organização e a estrutura dificulta isso. A organização aprovou em 18 de setembro, por exemplo, o pedido de fim da invasão israelense em Gaza. Foram 124 votos para a aprovação do texto. De acordo com o pesquisador, há um peso simbólico em uma resolução como essa, mas em termos práticos o efeito é muito pequeno.
Ele também indica outro ponto a ser observado: a localização da sede da organização.
“As Nações Unidas não nascem do consentimento democrático de todos os países, nasce com a intencionalidade e o espírito do que EUA e União Soviética pensavam. Mas fundamentalmente os EUA. Não à toa essas discussões acontecem em solo estadunidense. Então o primeiro problema é esse: uma instituição criada sob os supostos parâmetros de garantir a paz e a estabilidade e nesses 79 anos essas coisas não se materializaram”, afirmou.
Edição: Rodrigo Durão Coelho