MEMÓRIA

Golpe de Estado no Chile: 'Não podemos nos esquecer de nossos mortos'

Falamos com o estudante chileno Carlos ‘Tato’ Ayress, vítima da ditadura de Pinochet e exilado em Cuba

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Fidel se encontrou com Allende em 1971 - AFP PHOTO/PRENSA LATINA

Naquela noite, ninguém conseguiu dormir na casa. Durante os últimos meses, a situação social e política tinha se tornado cada vez mais tensa, os ataques e a violência desencadeados por grupos de extrema direita, como o infame Patria y Libertad, se tornavam cada vez mais frequentes, enquanto os grandes empresários intensificavam as hostilidades com o governo de Salvador Allende.

As conspirações para derrubar o governo começaram no exato momento em que a Unidad Popular havia vencido as eleições três anos antes. Para as elites do poder, era inconcebível que esse sóbrio palácio do governo, que havia sido construído como uma fábrica de dinheiro, fosse ocupado por uma força que lhes era estranha.

Naquele 10 de setembro de 1973, Tato havia passado a noite na casa do vice-diretor da escola, um homem de esquerda comprometido com as lutas sociais. Nesse tempo, Tato estudava na Escuela Experimental Artística, localizada no distrito de La Reina, um bairro muito pobre na periferia de Santiago do Chile.

Proveniente de família com fortes compromissos políticos, Tato já havia conquistado um lugar de destaque como militante na Frente de Estudiantes Revolucionarios, a ala estudantil do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR).

A ansiedade fez com que ninguém conseguisse dormir naquela noite. Os estudantes tinham decidido ocupar a escola em solidariedade aos vizinhos do bairro, que lutavam para melhorar a vida nos assentamentos. Aquele tempo parece ser ilustrado pela memória de Tato. A solidariedade dos militantes com as lutas populares dos setores mais humildes constituía a principal aposta política para transformar a sociedade.

Naquela noite, a apenas alguns quilômetros de distância, o general Pinochet liderava o golpe de Estado em Peñalolén. No início da manhã de 11 de setembro de 1973, o rádio começou a informar sobre o movimento das tropas que se dirigiriam ao Palácio La Moneda para derrubar o presidente Allende.

“Quando soubemos do golpe, tivemos que suspender a ocupação da escola. Naquela manhã, lembro que o vice-diretor me disse para não ir à escola, para ficar escondido, que era muito perigoso. Eu queria ir mesmo assim. Eu tinha que falar com meus colegas”, relembra Carlos ‘Tato’ Ayress ao Brasil de Fato.


Tato fala com uma voz pausada, sentado num cômodo em sua casa. De vez em quando, ele precisa fazer uma pausa, quando as lembranças o assaltam provocando um nó na garganta. Localizada nos arredores de Havana, seu lar parece um museu. Em cada canto e em cada parede há um quadro ou foto, onde guarda lembranças, tristezas e esperanças. É um das centenas de chilenos que se exilaram em Cuba durante a ditadura e hoje é artista plástico que usa a arte como arma da memória.

“Naquela manhã, tivemos uma pequena reunião com os companheiros. E quando quase todo mundo já tinha ido embora, chegaram alguns oficiais do exército perguntando o que estávamos fazendo ali. Naquele momento, eu era um dos poucos que ainda estavam dentro da escola. Rapidamente, ao ver a situação, uma encarregada disse a eles que eu era seu filho e que estávamos morando lá, como guardas da escola”, diz.

No mesmo dia, Tato não conseguiu voltar para casa, era muito perigoso. Ele passou quase uma semana escondido em diferentes casas da comunidade popular, onde foi protegido das forças repressivas.

“Ninguém podia imaginar o que estava para acontecer. A barbárie e a brutalidade que estavam começando. E, no entanto, quando vimos o bombardeio de La Moneda, vimos que essa era a essência da ditadura: eles estavam determinados a matar todos nós”, reflete.

Tortura

Tato é o quinto de seis irmãos e naquela época tinha apenas 16 anos de idade. Todos eles, juntamente com seus pais, eram militantes de esquerda. Passaram-se vários dias até que Tato conseguisse voltar para casa e entrar em contato com sua família. O mesmo aconteceu com seus irmãos, que tiveram de se esconder por vários dias.

“Havia um argentino, conhecido como Comandante Esteban, um agente da Direção Nacional de Inteligência (DINA), que se infiltrou nas comunidades onde minha irmã era muito ativa. Ele fazia trabalho de inteligência sobre atividades políticas e sabia que minha irmã era uma líder importante e que havia estado em Cuba. Na época do golpe, eles sabiam quem procurar, tinham os nomes e endereços de todos. E minha irmã foi uma das pessoas marcadas pela ditadura".

Quatro meses após o golpe de Estado, em janeiro de 1974, uma operação da sanguinária Direção Nacional de Inteligência (DINA) invadiu a casa onde Tato morava com sua família em San Miguel. Eles estavam procurando por sua irmã, Luz de las Nieves Ayress, de 25 anos. Naquele dia, a ditadura o sequestrou junto com seu pai, Carlos Ayress, e sua irmã.

“Não há palavras para descrever o inferno a que fomos submetidos”, explica Tato, enquanto se desculpa e pede para parar de falar por um momento. Durante três anos, eles foram transferidos por seis campos de concentração, distribuídos por todo o país: Londres 38, Tejas Verdes, Estadio de Chile, Chacabuco, Puchuc Cabi e Tres Alamos. Esses campos tinham a mesma estrutura dos campos da Alemanha nazista.

“O pior lugar foi em Tejas Verdes. Esse era o lugar com as piores e mais recorrentes torturas”, diz Tato. Lá eles aprenderam a sobreviver em meio a um inferno humano cujo único objetivo seria manter os privilégios dos poderosos.

“Éramos pendurados durante horas pelos pés com a cabeça baixa, enquanto éramos espancados e eletrocutados”, lembra ele entre as inúmeras práticas às quais eram submetidos.

A tortura da ditadura atingiu níveis inimagináveis: tortura física e psicológica, violência sexual e assassinatos submergiram o aparato estatal em condições de barbárie medieval. O uso do terror teve como objetivo tentar enterrar os sonhos revolucionários e estabelecer o neoliberalismo.

Tato, juntamente com sua irmã e seu pai, foi uma das milhares de pessoas que sofreram repressão em campos de tortura. A ditadura durou 17 anos.


Os mil dias que estremeceram o mundo

Em 4 de setembro de 1970, Salvador Allende se tornou presidente de Chile. Pela primeira vez, um projeto revolucionário, por meio de eleições, passou a governar o país com o objetivo de construir o socialismo. Durante mil dias, o “Caminho Chileno para o Socialismo” estremeceu o mundo.

A Unidade Popular chegou ao poder sob uma aliança de diferentes forças de esquerda. Com um programa de 40 medidas, pretendia iniciar uma transição para o socialismo. Durante seu governo, o cobre foi nacionalizado e uma reforma agrária foi iniciada.

“Todo o período do triunfo de Allende foi de esplendor, glória e alegria. Em 4 de setembro, eu estava na rua e passei em frente à marcha de Allende. Era uma cidade inteira. As ruas da Alameda estavam lotadas. E todos nós estávamos naquele dia apoiando Salvador Allende e as quarenta medidas que ele iria implementar”, lembra Tato. “Havia uma atmosfera de alegria e força. E isso era o mais importante naquele momento.”

O entusiasmo popular era o principal motor da mudança social. “Luta, Cria, Poder Popular” foi um dos principais lemas da época. Milhares de histórias e anedotas lembram como os camponeses começaram a tomar posse das terras para colocá-las em produção e acelerar a promessa de reforma agrária. Como os trabalhadores assumiram o controle das fábricas, para colocá-las em produção a serviço do povo.

Chile era uma festa. Todos aqueles que até então não haviam tido lugar no sistema político do país se tornaram os protagonistas deste evento histórico. Conscientes de que as revoluções são feitas pelo povo.

Foi nesse contexto que o líder emblemático da Revolução Cubana, Fidel Castro, fez uma longa viagem ao Chile em 1971. Lá ele manteve longa conversa com Salvador Allende, conhecida como o Diálogo das Américas. Onde quer que fosse, Fidel realizava longas assembleias com os trabalhadores para discutir o futuro da revolução.

“Quando soubemos que Fidel estava indo para o Chile, imagine, foi uma loucura. Saí às ruas para encontrá-lo e estávamos todos muito ansiosos, imaginando a que horas ele chegaria. Até que chegou o momento em que a caravana apareceu e lá estava Fidel ao lado de Salvador Allende cumprimentando o povo, e todos corriam com bandeiras e faixas gritando 'Viva Fidel, viva Fidel'”, lembra.

Tato conta que foi uma das milhares de pessoas que caminharam durante horas do aeroporto até o centro de Santiago do Chile acompanhando a caravana de Fidel e Allende.

“Durante essa viagem, Fidel falou muito sobre a necessidade de defender Allende. Ele sabia que o imperialismo e a direita fariam todo o possível para derrubá-lo”.

Em 2 de dezembro de 1971, Fidel fez um inflamado discurso de despedida no Estádio Nacional. Ali, diante de milhares de chilenos, Fidel declarou que “Ambos os processos revolucionários encontraram e estão encontrando inimigos externos e internos idênticos. Cuba sabe há anos sobre o cerco, a invasão e as agressões”.

Todo o seu discurso foi um longo apelo em defesa da Revolução Chilena, mas também um alerta sobre a necessidade de defender o processo.

“Temos que ter uma consciência muito clara de quem são nossos inimigos; temos que entender que eles são os advogados e gerentes a serviço do imperialismo, os grandes proprietários de terras e banqueiros, os monopolistas; temos que conscientizar os setores que vivem de seus esforços e de seu trabalho de que eles se beneficiarão do processo de desenvolvimento econômico no Chile. O povo deve estar vigilante e as massas devem ser conscientemente mobilizadas. Um povo vigilante e mobilizado, um povo com objetivos, um povo que sabe o que fazer e como fazer, é a base granítica sobre a qual se apóia o processo revolucionário”.


“Serão abertas as grandes alamedas”.

Durante seis horas, Allende resistiu ao ataque militar desde o Palácio da Moeda. Nunca abandonou suas convicções. Do palácio do governo, La Moneda, ele lutou contra a traição militar usando um capacete dado a ele por uns trabalhadores das minas e empunhando uma metralhadora fornecida por Fidel. Sempre acreditou que nunca precisaria dela.

Ele manteria sua palavra: seu governo havia nacionalizado o cobre e não renunciaria; se quisessem derrubá-lo, teriam que matá-lo. De La Moneda, Allende se dirigiu ao povo pela última vez pelo rádio.

“Diante desses fatos, só posso dizer aos trabalhadores: não vou renunciar! Colocado em um trânsito histórico, pagarei com minha vida pela lealdade do povo. E digo a eles que tenho certeza de que a semente que demos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não pode ser definitivamente cortada. Eles têm a força, podem nos subjugar, mas não se pode deter os processos sociais nem pelo crime... nem pela força. A história é nossa e é feita pelos povos”.

Tato afirma que Allende é, acima de tudo, “um legado”. Um exemplo de integridade moral, que ele diz que a direita nunca terá.

“O exemplo de sua lealdade é um exemplo do que ele disse e do que ele fez.... Seu legado e esse exemplo marcaram o Chile, a história do Chile, os chilenos, mas também o mundo inteiro”.

“Acredito que a lembrança e a memória são uma questão fundamental. Acredito que é a base, a existência da memória de um povo, porque se a apagarmos, deixamos de ser o que somos. Lutamos com alegria por um mundo melhor. E milhares de pessoas deram suas vidas por uma revolução, para construir um mundo melhor. Nunca podemos nos esquecer de nossos mortos.


 

 

 

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho