Tambores, canções e uma caminhada nos bairros das cidades venezuelanas marcam o dia de festa em homenagem a São João Batista. Assim como a festa junina no Brasil, o santo também é homenageado na Venezuela e tem uma celebração própria comemorada em 24 de julho. Mas no país vizinho, o evento está ligado à resistência da comunidade negra.
Na Venezuela, a cultura em torno do santo foi criada a partir da mistura entre crenças dos negros escravizados e da imposição da Igreja Católica. De acordo com a bibliografia cristã, São João Batista foi profeta e precursor de Jesus Cristo. Era filho de Zacarias, um sacerdote de Jerusalém, e de Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Aqueles que confessavam seus pecados eram lavados por ele no rio Jordão, na cerimônia do batismo - um dos batizados foi Jesus.
No século 18, os negros escravizados que foram trazidos à América do Sul eram proibidos de cultuar suas crenças. Na Venezuela, eles encontraram na figura de São João Batista uma forma de burlar essa proibição e passaram a fingir para os espanhóis que estavam cultuando São João, para na realidade celebrar Osún. O simbolismo ficou tão marcado, que a partir desse momento houve uma mescla de São João com Osun para a tradição católica e yorubá.
Os territórios com maior população negra na Venezuela têm maior tradição para celebrar esse evento. Estados como Aragua, Miranda, Vargas e Carabobo celebram anualmente festas que arrastam milhares de pessoas de todo o país. Na capital Caracas, o lugar que ficou conhecido por celebrar São João é San Agustin. O bairro foi criado com pessoas que vieram de Barlovento, no estado Miranda. A cidade tem o costume de celebrar a festa e, por isso, instalou em 1986 a comemoração na região central da capital.
A celebração começa na madrugada do dia 23 para o dia 24, com o velório de São João. No dia seguinte, os devotos levam as imagens que representam o santo para celebrar a missa. Bonecas, flores, tecidos. Cada um tem a sua representação para cultuar São João. Depois da missa, os devotos saem em uma caminhada pelo bairro com muita música.
De acordo com Jesus Ruman, organizador da festa de São João no bairro de San Agustin, em Caracas, o culto à imagem de São João é importante para a população negra por ser símbolo de resistência e de luta no país.
“É uma festa mais da rebelião, da rebeldia, ou da resistência dos povos para a imposição de religiões no caso da Venezuela e da América Latina. Tem a ver com a chegada dos africanos, quando eles foram sequestrados e trazidos para essas terras. Não trouxeram seus tambores, não trouxeram suas imagens, trouxeram o coração e o pensamento de como eram como seres humanos”, afirma ao Brasil de Fato
A festa foi reconhecida em 2021 como patrimônio imaterial da Unesco. Apesar de a missa ser realizada na Igreja Católica, a instituição ainda não reconhece a festa de João Batista como parte do calendário da igreja venezuelana.
“A gente pede que a Igreja Católica abra as portas para realizar as missas, mas a Igreja como tal, a instituição não reconhece a festa de São João como própria da Igreja Católica. são próprias dos pagãos. Quando os negros chegam aqui começam a transformar todo o conhecimento que eles tinham, essa bagagem e começam a realizar diferentes manifestações que se somaram a imposição da Igreja Católica, eles tomaram as imagens e celebram a sua maneira. Por isso que aqui na Venezuela é uma festa pagã”, disse.
A cidade de Curiepe é um dos locais com maior comunidade negra da Venezuela e, por isso, tem a festa de São João mais tradicional do país. O bairro de San Agustin na capital venezuelana tem uma história ligada à festa por ter uma população com essas raízes. Os moradores do local vieram de Barlovento, região conhecida por ser “sanjuanera”. Eles trouxeram a celebração para o lugar em 1986 e, a partir de então, comemoram anualmente o dia.
Teresa Valera é devota de São João. Ela vai dormir tarde na véspera e acorda cedo no dia seguinte para celebrar a data. Segundo ela, a ligação com o território também é uma marca daqueles que celebram o São João.
“Toda minha vida esteve relacionada com São João porque somos de uma tradição de anos. Somos de Barlovento e São João faz parte dessa identidade. Participo todos os anos. É difícil viajar para Barlovento nessa época, então busco os espaços onde está São João para fazer homenagens e pedir pela saúde da minha família e de todos”, afirma.
A festa é marcada pelo uso do branco e do vermelho. Nas tradições de São João, o vermelho representa a energia, enquanto o branco a pureza. Além de Jesus Cristo, São João é o único santos em que os devotos celebram o dia de seu nascimento.
Relação com data histórica
O dia da celebração é o 24 de junho, que também marca o aniversário da Batalha de Carabobo, confronto decisivo para garantir a independência da Venezuela e dar início à libertação do continente das mãos da coroa espanhola. Em 2024, foram celebrados os 203 anos desse episódio.
Para Jesus Ruman, a sobreposição da data do São João com a Batalha de Carabobo não é apenas uma coincidência. De acordo com ele, pesquisadores nunca encontraram registros formais dessa relação, mas muitos relataram ter ouvido histórias que ajudam a entender que, na véspera do confronto contra os espanhóis, os soldados de Simon Bolívar prestaram homenagens e pediram proteção a São João.
“Contam que na noite anterior da batalha de Carabobo soaram tambores. Os soldados entregaram a sua vida a São João Batista. Carabobo é um Estado com uma grande presença afro venezuelana, afrodescendente, onde se celebra o dia. O que temos de registro histórico escrito é que, na noite anterior à batalha de Carabobo se escutaram tambores e cantos. Por isso, há uma corrente que traz essa relação possível”, afirma.
Emílio Mujica também é um dos responsáveis por organizar a festa no bairro de San Agustin. Para ele, a data além de histórica tem uma representatividade para o povo venezuelano por ser sinônimo de liberdade e expressão de paz.
“Nossos tambores, nosso São João, nossa festa e tradição é símbolo de liberdade. Uma festa que as pessoas entendem que é um dia liberdade. Você vê as pessoas alegres, celebrando. Não vê vela, não vê luto. Mas as pessoas com fé pedindo paz, pedindo liberdade e amor”, afirmou.
Edição: Rodrigo Durão Coelho