Com o mês de junho, chegam as principais manifestações culturais do Brasil: os festejos juninos. Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador e historiador do Instituto Federal do Ceará (IFCE) Aterlane Martins explicou a relevância da celebração e quais incentivos do poder público são necessários para que a festa aconteça.
O Senado vai analisar projeto que reconhece as quadrilhas de festas juninas como manifestação da cultura nacional e patrimônio imaterial do Brasil. O que isso representa para a cultura nordestina e brasileira e com funciona o processo?
Patrimônio Cultural é o meu campo de estudos, então eu fico muito à vontade para falar sobre isso. Não temos dúvida nenhuma que o São João, no Brasil, é um patrimônio cultural, porque ele faz parte da nossa identidade. Nesse período todos nós nos alimentamos de tudo o que essa cultura alimentar do São João fornece na base do milho, na base da mandioca. Está diretamente relacionada conosco, tem um traço afetivo, uma memória afetiva em todos nós.
Nós sabemos que o processo de patrimonialização, tornar uma festa patrimônio tem o seu regramento, e aí quero pontuar isso. O Senado, assim como a Câmara dos Deputados, as Câmaras de Vereadores podem fazer processos de patrimonialização nos três âmbitos: municipal, estadual e federal, mas esses processos de patrimonialização, nós que somos do campo do património cultural, que estudamos, que vivenciamos isso, nós temos críticas, porque quase sempre, quando o legislativo faz uma declaração de patrimônio cultural, é apenas isso quando, pelo contrário, você segue o rito administrativo feito pelo executivo, pelas secretarias de cultura, pelo Ministério da Cultura, no caso do âmbito federal pelo Iphan, e no Iphan, hoje, nós temos pedidos de registro das quadrilhas juninas como património cultural e imaterial do Brasil.
Esse processo é um processo que demanda pesquisa, durante mais ou menos dois anos, você vai até os agentes, constrói com os agentes esse processo, porque o registro do patrimônio imaterial demanda isso, a presença dos agentes, dos detentores. Quando o Senado faz todo esse protocolo não acontece. A outra questão é que a Lei que declara património cultural no legislativo ela apenas dá o título, ela não faz um plano de salvaguarda, ela não garante como aquele bem vai continuar existindo. Ela não garante melhores condições e qualidades para que aquele bem continue existindo. Quando o processo é feito no rito do executivo, no administrativo, e isso é desde o ano 2000, a partir do decreto 3.551, que é o decreto que estabelece o registo do património imaterial, nós temos todo esse processo de estudo, de pesquisa e de plano de salvaguarda, onde o Estado de fato se compromete e vai trabalhar para salvaguardar esse bem.
E quais são os incentivos ou investimentos que o poder público vem disponibilizando para a realização dos festejos juninos no estado do Ceará?
No estado do Ceará nós temos uma política bem longeva. No final dos anos 1990, em 1998, ainda não era uma política pública, mas foi idealizada pela Elisa Gunther, que era à época diretora do Centro Dragão do Mar, que estava surgindo também naquele momento, o Ceará Juninho, que era um evento que contemplava vários festivais em várias cidades no território cearense, e com isso chegava a vários grupos de quadrilha e você tinha uma grande mostra final no Dragão do Mar. Em 2003, durante a gestão da professora Cláudia Leitão, como secretária de cultura, esse evento, que era apenas um evento do Centro Dragão do Mar se torna política pública. A partir de uma lei se estabelece o Festejo Ceará Junino, e de 2003 até hoje nós temos essa continuidade que só foi interrompida no período da pandemia porque não tínhamos, de fato, como trazer as pessoas e juntar as pessoas, mas ininterruptamente, desde 2003 nós viemos realizando todos os anos festivais e beneficiando quadrilhas.
Hoje há editais que beneficiam 21 festas que acontecem entre os meses de junho e julho, e um campeonato estadual que reúne as campeãs de cada uma dessas etapas, 100 quadrilhas adultas também são premiadas, 15 quadrilhas infantis, 15 quadrilhas que nós chamamos da diversidade, aí se inclui quadrilhas escolares, quadrilhas de idosos, quadrilhas de capoeira, nós temos uma “capodrilha”, que é uma mistura de capoeira com quadrilha, e outras possibilidades dentro dessa diversidade. E temos, desde 2022, as quadrilhas da cultura do campo, quadrilhas camponesas, que são as quadrilhas dos assentamentos do MST, 10 quadrilhas dessa categoria são também premiadas.
Atualmente, quais são as principais políticas públicas voltadas para a realização dos tradicionais festejos juninos e quadrilhas juninas?
No âmbito do estado a gente falou agora do Ceará Junino, que tem esse processo que envolve festivais, quadrilhas e também os profissionais, jurados e pesquisadores, porque nós temos um grupo de mais de 100 jurados que vão compor as comissões julgadoras e fazer análise nesses festivais. Nós temos um grupo de 23 pesquisadores que ano a ano são selecionados e vão a campo para fazer uma pesquisa in loco de como está acontecendo, e os dados gerados por essa pesquisa devem subsidiar para uma melhoria da política pública, do investimento no ano seguinte. Isso em âmbito estadual, no âmbito municipal, a gente vai para várias cidades e a gente tem, por exemplo, em Fortaleza, este ano, vai haver uma grande festa, daquele estilo comercial, que talvez não seja o mais adequado, talvez não seja o que a gente mais gosta e que mais chega aos fazedores de quadrilha, mas vai haver para o grande público, com aquelas atrações ditas nacionais, e nós temos também o Festival Municipal.
Nós temos outros exemplos, a cidade de Uruoca, que fica aqui no interior, promove um grande festival. Eu tive a experiência de estar lá ano passado e vi o quanto a cidade inteira se mobiliza e participa desse festival. É a cidade que constrói. É uma ação de política pública feita como deve ser feita, com a participação da sociedade, que gera renda para a própria sociedade e que traz muita renda a partir de um turismo sazonal, que é promovido por esse evento.
E aí temos a grande festa do município de Maracanaú, temos o Juaforró, em Juazeiro do Norte, o Arraial do Povo em Iguatu e várias outras festas que são promovidas pelo poder público e todas elas nesse formato: festival e quadrilhas beneficiadas, mas a gente sabe que ali na lateral, em torno disso, tem todo um comércio onde a população local também se insere e também consegue fazer sua promoção de venda, de renda.
Vale lembrar também que os festivais acontecem normalmente no mês de junho, mas as quadrilhas se preparam muito antes de disso e aí tem todo um investimento financeiro também para a confecção de todos os adereços. Esses investimentos são para esses períodos anteriores às apresentações de junho para a confecção de todo esse material, pode-se dizer isso?
Deve-se dizer isso. O trabalho das quadrilhas é um trabalho anual. As quadrilhas não param de fato. As quadrilhas, desde os anos 1990, têm trabalhado de forma temática, então elas escolhem um tema, vão fazer uma pesquisa, a partir dessa pesquisa construir o projeto e o projeto inclui o repertório musical que vai ser montado, inclui o figurino que vai ser vestido, os adereços que vão estar em cena, a coreografia que vai ser apresentada, e tudo isso não é feito em maio, em abril, é feito ao longo de um semestre, após o ciclo junino, porque em janeiro começam os ensaios. Esse movimento de quadrilha junina não para.
Este ano, a Secretaria da Cultura do Ceará lançou o 24º edital Ceará Junino para Quadrilhas Juninas, com um apoio financeiro total de mais de três milhões de reais. De acordo com informações da própria Secult, o valor marca o maior investimento nos festejos junino. Qual é a importância desse investimento?
A importância maior desse investimento é a manutenção. É, de fato, a salvaguarda, porque os grupos precisam de aporte financeiro para poder se realizar. Embora a gente esteja falando de um bem no campo do patrimônio que é imaterial, ele se materializa naquele momento da apresentação. Então como eu faço um figurino? Como eu me transporto da cidade de Fortaleza para a cidade de Iguatu para dançar? Eu preciso de recurso para pagar esse transporte. Eu tenho músicos que são profissionais que estão tocando ali ao longo de um mês com o meu grupo, então esses profissionais também precisam ser pagos. Todas essas despesas elas são pagas com o que a quadrilha consegue arrecadar. Muitas quadrinhas se mobilizam, os brincantes pagam alguma taxa para poder fazer a manutenção desse grupo, fazem festas, fazem rifas, fazem bingos, fazem vaquinhas, mas também tem o recurso público. Então, esse recurso tem a extrema importância de contribuir para que essa manifestação cultural continue existindo.
Dá para a gente falar aqui qual é o maior São João do Ceará?
É difícil falar qual é o maior, por que a gente vai medir por recurso investido? Se for por isso, talvez a gente consiga ter, porque é muito objetivo. Mas a gente pensa em uma perspectiva qualitativa dos retornos de cada festa junina e talvez a gente não possa figurar uma, mas várias. Eu citei alguns, eu vou destacar aqui um deles, pela experiência de tê-lo vivido o ano passado e de entender como se processa, falava do Festival de Uruoca que vai para a sua 20ª edição. Você ter vinte anos consecutivos de uma festa isso não é pouco, significa que você teve vários governos fazendo essa festa sem parar. Então, significa que ela é importante, significa que ela é grande, e ela é grande porque é referência para aquele município, porque ela é referência para quem participa, para o público, ela impacta, de fato.
E quando eu faço a referência é por isso, eu fui impactado, porque eu chego em uma cidade pequena, na dimensão geográfica, populacional, até de renda que gera para o estado, mas você tem uma festa grandiosa, com grande público, com grandes atrações, com muitos grupos participando, de uma grande duração, de uma grande existência, com continuidade, então isso, para mim, faz ser uma grande festa, é um grande São João, mas se a gente vai lá para o Cariri, a gente tem a Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, que é uma festa secular, é patrimônio cultural do Brasil, ela abre os festejos juninos no Ceará. Ela talvez seja, se a gente for pensar em dimensão do que ela alcança, ela é a maior Festa Junina do Ceará. Ela dura treze dias, vai desde o dia 1º, com a chegada do pau, onde se hasteia o mastro com a Bandeira, até a finalização no dia 13, que é o dia de Santo Antônio. Então, essa também é uma grande festa, mas cada região do estado que a gente percorrer, a gente vai encontrar uma dessas grandes festas.
Nós também temos o São João da Reforma Agrária, realizado pelo MST Ceará, que traz temas importantes em suas apresentações. Como você enxerga as quadrilhas juninas como esse espaço de luta para questões sociais?
Importantíssimo falar sobre isso. Eu falava das quadrinhas temáticas. A partir dos anos 1990 as quadrilhas começam a trabalhar especificamente com um tema. Esses temas são, sobretudo, temas políticos, temas sociais. É claro que as quadrilhas do MST trariam a sua experiência, a sua vivência. Eu vou lembrar uma quadrilha infantil, e aí vai me falhar, é claro, qual o assentamento era, porque eu vi em 2019. Em 2019 nós estávamos fazendo em Quixeramobim a final do Ceará Junino e todo dia uma quadrilha infantil faz uma abertura, ela se apresenta como uma abertura daquele Festival e nos veio uma quadrilha do assentamento, eu acho que era do 25 de Março, não tenho certeza, e ela nos traz um tema sobre a educação e naquele momento era o momento dos cortes que nós estávamos sofrendo com o governo Temer, e você imagina como é importante, interessante, impactante, ver crianças dançando quadrilha, mantendo uma tradição cultural secular para nós e fazendo política desde cedo, desde criança, porque os meninos entravam e as cores verde e amarelo estavam lá, a bandeira estava presente, os livros estavam presentes, o marcador da quadrilha, que é uma figura bem importante representava um professor, então era toda a educação ali presente, no momento em que a educação estava sendo muito abalada pelos cortes sucessivos que tinham.
A gente tem também uma presença muito forte das questões étnico-raciais nos temas de quadrilha. A cultura negra é trazida em cena. Ano passado nós tínhamos uma quadrilha que falava sobre o Rio São Francisco, ela trouxe São Francisco, essa figura importante, histórica, que sempre cuidou dos pobres, e ela trouxe junto de São Francisco, Oxum, orixá das águas doce, você pensar nessa junção que a gente que vive em um país que tem tanta intolerância religiosa é importantíssimo. Vou lembrar no contexto do que nós estamos falando aqui do MST, a quadrilha Festeja Ceará, lá do Vale do Jaguaribe, que trouxe em 2018 a vida do Zé Maria Tomé, esse líder do MST, que foi brutalmente assassinado porque lutava pela coletividade e contra os agrotóxicos.
As quadrilhas do Movimento Sem Terra, são importantíssimas. Elas entraram há dois anos, como eu dizia, nesse edital Ceará Junino. Entraram com dez vagas, pode ser que a gente amplie essas vagas, pode ser que a gente entenda a importância desses grupos, porque nós temos mais de trinta grupos de quadrilha nos assentamentos, tem quadrilhas de assentamento que já tem mais de vinte anos. Então é importantíssimo reconhecer e incluir esses grupos de forma mais específica na política pública também.
Este ano, o Sindicato dos Músicos do Ceará emitiu uma nota cobrando da prefeitura de Fortaleza mais participação de músicos locais na programação do São João de Fortaleza. Gostaria que você comentasse sobre essa luta pela valorização de músicos locais e pela presença desses artistas nessas programações.
É uma expressão de luta dos trabalhadores. Sempre justa e sempre válida. Nós temos esse evento que acontecerá aqui em Fortaleza no finalzinho do mês, acho que 28,29 e 30 de junho, é aquela grande festa, como a gente tem a festa do réveillon, então se assemelha, claro que no contexto junino, àquela festa, e quando se apresenta a programação em uma coletiva de imprensa, onde estão os nossos artistas? Quando os músicos lançam essa nota eles têm toda a razão. Nós precisamos valorizar o que nós temos e nós temos músicos nessa área, sobretudo, qualificadíssimos, que tem potencial para fazer espetáculos tão bons ou melhores do que muitos dos artistas que estão convidados para essa festa, que estarão lá se apresentando e, com certeza, os nossos músicos também agradam a nossa população.
Então não dá para a gente pensar em uma festa feita por uma produtora, onde a produtora pensa a programação sozinha e ela vai trazer os artistas da moda. É importante ter um artista da moda, o público gosta, sim, mas é importante que esse artista da moda divida espaço, que ele não tome espaço dos profissionais locais, que são tão artistas quanto eles.
Onde as pessoas que querem ficar por dentro da programação do São João no Ceará devem buscar informações?
Podem procurar os perfis das instituições juninas nas redes sociais, da Federação das Quadrilhas Juninas do Ceará, da União Junina do Ceará. Podem procurar o perfil nas redes sociais do Festejo Ceará Junino que lá já tem o calendário das vinte e uma etapas, você vai ficar sabendo onde tem festival, qual dia e qual o local.
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Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia