ENTREVISTA

Não dá para desassociar a bandeira LGBTQIAPN+ da luta política, diz Célio Golin

No Mês do Orgulho, o Nuances - Grupo pela Livre Expressão Sexual faz intervenção de luta de classe em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Célio Golin é coordenador e um dos fundadores do grupo Nuances, que tem mais de 33 anos - Foto: Carlos Messalla

Grupo que defende a livre expressão sexual desde 1991, o Nuances - Grupo pela Livre Expressão Sexual se faz presente mais uma vez pelas ruas de Porto Alegre, desta vez com a colagem de 200 cartazes. Os materiais não deixam de celebrar o Mês de LGBTQIAPN+, mas, no dia 28 de junho, que marca a revolta de Stonewall, propõem consciência de classe trazendo um posicionamento político.

Na ação, o grupo mostra a importância de se posicionar politicamente. Seria mais fácil "apenas" levantar as bandeiras e pautas LGBTQIAPN+, mas para o coletivo a luta de classes existe e, portanto, não se pode desassociar uma coisa da outra – posicionar-se politicamente para quem sofre opressão faz parte da luta diária, é um exercício pela vida. Em seus cartazes, a linha política não dá voltas: ela é reta e certeira, uma marca do grupo nestes mais de trinta anos de caminhada.

Neste Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, o Brasil de Fato RS traz entrevista realizada com Célio Golin, um dos fundadores do grupo Nuances. Confira:

Brasil de Fato RS: Para começar, quero ouvir de você como o debate político se relaciona com a pauta LGBTQIAPN+.

Célio Golin: Realmente, a gente está vivendo um outro cenário político que já vem de algumas décadas. A gente vem pensando como o fascismo vem se estruturando na sociedade brasileira e não só na sociedade brasileira. Em nível internacional, hoje é um debate que já tem uma compreensão política de toda a esquerda que já se percebe dentro do cenário. Mas aí a gente tem essas pautas, as pautas da população LGBTQIAPN+, que está sendo usado. Também é um debate interno no movimento, o uso ou não de todas as letras e todas essas identidades. Mas vamos, então, pensar um pouco mais além também disso. E o Nuance sempre teve um propósito de pensar as questões que a gente chamava culturais, identitárias, associadas a um projeto político de sociedade que vai muito além disso.

Não tem como desconectar a realidade, por exemplo, econômica de uma pessoa, a realidade de classe, a realidade estética, a realidade de raça, dentro de um contexto muito mais amplo que é o que está colocado, que o capitalismo conforma a sociedade. É evidente que nos últimos anos essa é uma questão que vem sendo colocada por vários setores do movimento que sempre se sentiram incomodados. Como as mulheres lésbicas, no primeiro momento, as travestis e hoje a população transexual, dentro dessa perspectiva de raça e classe.

Uma das questões que a gente tem que pensar, e talvez a sociedade tenha uma compreensão um pouco ingênua dessa pauta das pessoas LGBT, vamos dizer assim, é que o fato de uma pessoa ser LGBT, ter uma expressão sexual, a colocaria em um campo progressista. O que não é verdade. Por quê? Exatamente porque ela se constrói a partir de outras referências. E a questão de classe é fundamental para a gente pensar isso. Então a bicha, a sapata, a classe média, que é branca, que é cis, que tem um outro espectro e que é consumidora dentro de uma sociedade capitalista, ela vai ter um outro trânsito. Isso aí já está, digamos, consolidado no nosso imaginário.

Mas, nesse processo de acumulação de poder, juntamente está a disputa com a direita e a extrema direita - e eu vou colocar a direita junto com a extrema direita nesse sentido, porque os projetos que estão em Brasília, nas câmaras estaduais e municipais, se a gente for ver, a direita tem se colocado junto com a extrema direita. E vou citar um exemplo prático. O projeto aprovado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, uns dois anos atrás, que proíbe a linguagem inclusiva para a população não binária em Porto Alegre, foi sancionado pelo prefeito Sebastião Melo, que até então era de centro, era de direita, e tem se associado à extrema direita em várias pautas, como, por exemplo, o negacionismo em relação às vacinas que ele queria dar ao kit covid, que só não deu porque o Ministério Público proibiu.

Num cenário um pouco maior, a gente percebe que essas questões de classe e raça vêm pressionando muito uma grande parte do movimento LGBT. Fazendo uma autocrítica, o movimento estava só na questão "ah, na política não é isso, não interessa o partido, o que interessa é a nossa pauta, não podemos ficar presos se é esquerda, se é direita". O que está desmentido na perspectiva do Nuances.

Então nesse 28 de junho, essa nota que a gente fez traz esse debate, que não adianta só ser LGBT, se tu não tem uma compreensão do significado do Estado para as populações marginalizadas - o que significa, por exemplo, Estado mínimo, terceirizações, privatizações, ou seja, desqualificação e colocando tudo na lógica do mercado, na lógica do capitalismo, na lógica do que pode ou não dar lucro. E nós vivemos em Porto Alegre uma experiência exemplar nesse sentido, exemplar de forma negativa, no meu entendimento, porque tudo está terceirizado, subtercializado e isso tem um significado muito importante.

Para as populações marginalizadas e excluídas, o Nuances entende, nós entendemos que o Estado tem que ser máximo e não mínimo. Então, tu tem que estar comprometido politicamente dentro de um projeto político maior do que a tua pauta LGBT. Entendeu? Esse eu acho que é o debate que está colocado na sociedade brasileira hoje, que vai pautar, espero, as próximas eleições. Porque tem muito candidato, muitos militantes LGBT de direita e extremistas de direita que estão colocados dentro desse debate. Inclusive, vão ser candidatos e candidatas e candidates.

Por isso vamos estar disputando esse espaço por dentro do movimento, uma vez que o movimento se caracterizava muito mais num campo, eu diria, mais à esquerda, mas hoje mudou. Hoje nós temos no governo do Estado, apesar dos avanços e de conquistas nas pautas LGBT, um desmonte que tem a ver com essa situação. E mais além, o que nós vemos é que a extrema direita está crescendo no mundo todo, é um projeto político viável. Eu acho que a sociedade, a democracia está sendo destruída, e a gente ouve, inclusive, de lideranças internacionais extremistas, que eles não querem democracia. Se eles tiverem que apoiar um golpe para tomar o poder e implantar o neoliberalismo e a política de usurpação, eles vão fazer.

No Brasil, a gente percebe que teve um divisor de águas, o golpe contra Dilma. A partir dali, esses grupos políticos se utilizaram dessas pautas "culturais, identitárias", e muitas pessoas da esquerda ainda não conseguiram entender como é que a gente pode processar essas questões, e avançar também, se mobilizar. Também tem uma certa resistência em relação a isso. Eles vêm nos atacando e usando essas pautas, e a gente, eu diria, e aí fazendo uma crítica, perdeu muito espaço. Porque se há 10, 15 anos atrás, nós entrávamos em escolas estaduais, municipais, privadas, inclusive convencionais, para fazer palestras e debates sobre a questão LGBT, hoje é um tema varrido do mapa. Não há nenhum espaço para esse debate. Ou seja, isso é uma perda que a gente teve nesse sentido.

E assim se tenta se passar em outras áreas, com diversos retrocessos nos últimos anos. Em meio a isso, é possível falar em avanços?

É uma disputa ideológica que vai além, mas sim os avanços aconteceram em várias áreas. O avanço principal foi o empoderamento da população LGBT em relação à sua própria existência, sua cidadania. Porque se na minha época, 20, 30 anos atrás, a gente não tinha coragem de entrar dentro da sala de aula de uma universidade com a bandeira LGBT, ou assumir que era gay, que era lésbica, hoje isso está dado. E esses espaços foram conquistados. Então os jovens LGBTs têm uma outra referência de direitos e cidadania. Por isso que a gente vê tanta gente de mão dada na rua. Não é pouca coisa. E a gente vê isso em cidades do interior também. Porque eu sou do interior também e percebo não só essas atitudes, mas como debate as discussões.

Tem gente que diz, olha, os retrocessos que a gente está vivendo, mas os ataques são, digamos, consequências dos avanços. Talvez, não sei, eu acho que tem outras questões envolvidas. Acho que se pega essa questão do pano moral, questões comportamentais. A extrem -direita sempre fez isso, há 100 anos atrás. Não é de agora, é criar o caos. O caos sempre foi bom para a extrema direita e para os ditadores. E a gente, na sociedade brasileira, na minha leitura, está se constituindo como um campo para o fascismo, que está a passos largos. Semana passada teve uma palestra aqui no Araújo Vianna, de um cara da extrema direita, um psicólogo todo renomado. E eu estava ali, sentado no banco da redenção, e tinha filas de jovens, casais, classe média jovens, para assistir esse cara. Esse cara é um expoente que está sendo produzido, que a extrema direita vem produzindo no Brasil inteiro, no mundo inteiro, com as mídias sociais. Elas têm esse poder, entendeu?

E não só as mídias sociais. Porque se a gente pensar, ao mesmo tempo que a Globo vem fazendo N programas na defesa das pautas LGBT e racial, é inegável, no campo da economia que se utiliza do fascismo para chegar ao poder. A Globo é amante do fascismo e das ditaduras, que é a questão do capital. Então o que nós temos de fundo é uma disputa do capital. Por isso que o Nuance fez esse texto, porque nesta eleição nós estamos discutindo a questão do Estado mínimo, terceirizações, privatizações, o que significa isso.

Estamos passando por essa tragédia no Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite é um negacionista, um cara que, por exemplo, que pega a Fepam, que é responsável por fazer os estudos de impacto ambiental, e repassa essa responsabilidade para a própria empresa que vai fazer a obra, uma coisa vergonhosa. E aconteceu e passou na Assembleia Legislativa. Ou seja, os retrocessos são muito grandes, são muito grandes. Eles são comprometedores, inclusive.


Nuances espalhou 200 cartazes em Porto Alegre neste Mês do Orgulho LGBTQIAP+ / Foto: Carlos Messalla

Tu falaste também dessa ação que está sendo promovida pelo Nuances, dos cartazes foram colocados pela cidade, causando um rebuliço. As pessoas estão comentando, isso é importantíssimo. Eu te pergunto, como está o Nuances ao longo desses anos? Como vocês estão sobrevivendo nessa luta árdua do dia a dia?

O Nuances é uma entidade com mais de 30 anos. A gente vem se debatendo, nunca ficamos conformados e nunca fizemos isso. Pelo menos isso a gente tem orgulho de dizer. A gente nunca fez um pacto, entendeu? Seja com partidos, seja com políticos ou com mercado também, seja o que for. Nós sempre pensamos em fazer um debate político que seja uma questão do coletivo, não de uma questão individual ou de uma parcela da população. E isso nos coloca num lugar de vulnerabilidade também. Então, de uns anos para cá, por exemplo, estamos sobrevivendo com a ajuda de amigos, de amigas, de colaboradores, colaboradoras. E é uma realidade que a gente não sabe onde vai dar.

A gente está sempre na corda bamba, como se diz. É uma dificuldade muito grande. A gente não conseguiu, nesses mais de 30 anos, criar uma estrutura, também consequências da própria militância, das próprias dificuldades que se tem de sobrevivência, de tudo que envolve essas questões do movimento social no Brasil. E eu acho que a gente teria potencial para ter mais presença. Por exemplo, esse 28 de junho, dentro dessa tragédia que a gente está vivendo no Sul, uma das estratégias é não deixar passar batido. Não vamos deixar passar em branco, vamos fazer uma campanha de rua, pelo menos para demarcar essa questão.

Tu falaste de uma caminhada de mais de 30 anos, e ao longo desse tempo outros grupos LGBT também se formaram. Mas às vezes alguns não fazem a discussão política da coisa. Então, como é a essa relação com os outros grupos?

Olha, eu diria que não é nem só no Rio Grande do Sul e Porto Alegre. Eu acho que em Porto Alegre tem um movimento organizado forte, presente, vários grupos, cada um tem uma estratégia política, uma forma de pensar melhores opções e como se movimentar politicamente na sociedade. Então, vai ter uma diversidade muito grande. O Nuances é um dos grupos que tem uma estratégia política também, que tem suas vantagens, tudo tem consequência, e as suas desvantagens.

No Brasil como um todo, eu percebo que sempre teve um movimento, na grande maioria dos grupos, mais de pensar de uma forma identitária, de uma forma "olha, vamos fazer a política independente do partido, se é de direita, se é de esquerda, vamos... a causa é o fundamental". Só que essa causa, chega um momento que ela é fundamental, mas ela está atrelada ao partido A, ao partido B, ao partido C. Não existe apolítica. Então, qualquer movimento que qualquer grupo, qualquer entidade, vai estar dentro de um campo político. E aí, você se atrela.

"Ah, o deputado do partido do PL, do Pros, das... ah, mas ele foi legal porque ele conseguiu um trio elétrico para a nossa parada." Ele conseguiu um trio elétrico, mas na hora que ele vai votar lá em Brasília, ele vai votar para detonar a sua causa, entendeu? E essa avaliação tem que ser feita, e essa avaliação o Nuances sempre cobrou. Isso causa um desconforto, inclusive, no movimento. A gente sempre teve uma presença incomodativa dentro do movimento, no Brasil inteiro, por fazer esse tipo de questionamento.

Vocês têm um grupo nacional? Tu estava me comentando sobre isso, que está organizado também e que discute essa questão das paradas, enfim. Grupos que querem ir em cidades, que menores e maiores também, né?

Essa é uma iniciativa da Parada de São Paulo, que é a maior do Brasil. Então, existe um Encontro Nacional de Paradas, que já acontece há alguns anos. A Parada Livre de Porto Alegre, então, não é o Nuances, né? É a Parada Livre de Porto Alegre que participa, juntamente com paradas do Brasil inteiro. Paradas em cidades pequenas e tal, muita gente. E nesse encontro se discute as estratégias políticas. Então, fica muito evidente como as pessoas se movimentam. E ali tem de tudo, de todos os partidos. Olha, é um saco de gato, pra te falar a verdade. Representa toda, eu diria, a política brasileira.

Mas de uma forma ou de outra, isso é importante. Porque queiram ou não, estão discutindo, não é? E até mesmo aqueles que talvez não tenham uma visão mais apurada, talvez num encontro como esse podem começar a apurar a visão, mesmo que possa ser difícil, mas pode acontecer.

Eu acho que, nos últimos anos, acabou acontecendo isso pelo processo que teve aquela besta de presidente. Não tinha saída de não se reposicionar, né? Eram descaradas as estratégias de nos aniquilar, tanto que a Parada de São Paulo desse ano teve um slogan extremamente político, para votar em pessoas de esquerda, comprometidos com a causa e tal. E isso se refletiu em muitos lugares, entendeu?

Tem uma proposta, uma ideia de São Paulo, que não é muito fácil, de unificar o tema das paradas. E isso é um desafio muito grande. Eu acho que tem seus méritos, é importante, mas, ao mesmo tempo aí vai depender… Porque a própria Parada de São Paulo, na eleição do Lula e do Bolsonaro, qual é que foi a proposta política deles? "Não vamos nos posicionar." Ou seja, uma despolitização. Se posicionaram a favor do Bolsonaro, na realidade, né? Se tem o fascista que tá concorrendo, se tu não se posicionar é isso. Então a gente tem que pensar como se coloca.

Célio, tu é um dos fundadores do Nuances, né? Lá atrás, em 1991, quando foi fundado o Nuances, tu imaginava toda essa caminhada? O que vocês lá, jovens sonhadores, lutadores, pensavam? Quantos vocês eram lá na fundação?

Olha, a gente não tinha muitas certezas. O que a gente queria era incomodar. Incomodando já se faz alguma coisa, né? Acho que essa é uma estratégia política importante. Nós éramos várias pessoas. E naquele momento, se tu pensar, 89, 90, 91, 92, nós tínhamos a Constituição de 88, tinha o movimento feminista, o movimento ecológico no Rio Grande do Sul... E a gente entrou e disse, "nós, bichas, sapatas e tal, vamos nos meter nesse negócio". E tinha muitas pessoas.

Nós morávamos na Casa Estudante, várias pessoas feministas, héteros, inclusive. Para nós, para o Nuances, não há essa barreira identitária para se fazer política. Nós nunca fomos, "ai, é hétero, então não pode". Pode, né? Por que não? Então a gente começou a se organizar. Era um outro cenário político, era uma outra conjuntura onde as coisas estavam avançando, crescendo, onde nós estávamos conquistando vários espaços.

A gente não pensava, por exemplo, que a gente ia andar de mão dada, por exemplo, dali 10 anos, 12, 15, 20 anos na rua. Porque havia uma outra perspectiva. Então, muita coisa mudou positivamente. Eu acho que a gente acumulou poder. E não falo do Nuances só, mas eu acho que a gente teve uma contribuição bem importante nesse processo. Nós começamos as paradas, era um desafio muito grande ir para a rua. Visibilidade era uma palavra da ordem, porque a gente era invisível no sentido presencial mesmo. A gente era visível no sentido do imaginário da sociedade e da bicha, da sapata, da trans que estava visível na rua.

Agora, enquanto o empoderamento político de chegar numa Câmara de Vereadores, numa Assembleia Legislativa, numa Secretaria de Segurança, e dizer, "ó, sou viado, sou bicha, vamos discutir, vamos conversar", no Ministério Público, em qualquer espaço, eu acho que a gente contribuiu um monte para isso. O Nuances contribuiu muito para isso. Saindo desse outro lugar e pautando o debate de forma política e não vitimizada. Porque a vitimização não resolve e não avança em nada o movimento. A vitimização é uma estratégia de privatizar e individualizar a militância. E a gente sempre questionou isso, e isso incomodou muita gente e incomoda até hoje.

Célio, se a ideia era incomodar e fazer barulho, eu posso te dizer que o Nuances faz muito barulho há muitos anos e eu tenho certeza que vai continuar fazendo. Como está fazendo nessa semana aqui, que está sendo extremamente importante. Tanto é que a gente está aqui batendo esse papo.

Eu espero que a gente consiga se manter aí. É um desafio muito grande. Mas eu acho que a gente ainda ainda tem alguma energia. 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira