Análise

Milei avança sobre direitos dos trabalhadores e beneficia ricos com Lei de Bases na Argentina

Medidas aprovadas pelo Congresso levam país de volta a cenário dos anos 1990, diz analista política argentina

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Lei de Bases foi aprovada na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional em Buenos Aires, na madrugada de 28 de junho de 2024 - Emiliano Lasalvia / AFP

O presidente argentino Javier Milei conseguiu a primeira vitória legislativa de seu governo, com a aprovação da Lei de Bases, reforma econômica ultraliberal proposta pelo Executivo no início deste ano. Com a lei, Milei obterá poderes legislativos delegados por um ano, incentivos para grandes investimentos por 30 anos, precarização da legislação trabalhista e autorização para privatizar diversas empresas públicas, entre outros pontos.

Na prática, com a delegação dos poderes legislativos ao Executivo, Milei poderá governar no próximo ano sem passar medidas econômicas e de infraestrura pelo Congresso Nacional. "Isso é muito grave, sobretudo porque nesses seis meses o governo demonstrou que não hesita em avançar em aspectos que beiram a ilegalidade sem nenhum tipo de discussão com a sociedade", disse ao Brasil de Fato a analista política argentina Carina López Monja.

A Câmara dos Deputados começou a analisar às 12h de quinta-feira (mesmo horário em Brasília) as modificações feitas pelo Senado e aprovou a Lei de Bases por 148 votos a 107 com as alterações. "Este é um traje feito sob medida para os setores de poder concentrados na Argentina", disse em seu discurso o deputado peronista Hugo Yasky, que considerou que a lei permite que o capital estrangeiro "venha e fique com o petróleo e o lítio em troca de nada" e transformará o país em um "paraíso fiscal".

Monja aponta que, apesar de Milei defender uma total desregulamentação do Estado e o incentivo ao livre mercado, a legislação aprovada pelo Congresso tem um direcionamento no sentido de favorecer o setor mais rico do país, enquanto aumenta impostos da classe trabalhadora. "Quando se discute cobrança de impostos, faz mais sentido cobrar de alguém que tenha um patrimônio grande, na prática os ricos vão pagar menos enquanto os trabalhadores vão começar a pagar mais impostos."

O imposto cobrado sobre o patrimônio, que antes era aplicado àqueles com patrimônio maior de 27 milhões de pesos argentinos (cerca de R$ 160 mil), passará a ser aplicado apenas a partir dos 100 milhões de pesos argentinos (cerca de R$ 600 mil). Enquanto isso, o imposto sobre a renda, passará a ser aplicado a quem receba um salário acima de 1 milhão e 800 pesos (cerca de R$ 11 mil), medida que atingirá cerca de um milhão de trabalhadores que não eram alvo dessa tributação.

Outro aspecto nocivo do pacote aprovado pelo Congresso é a reforma trabalhista, que elimina direitos adquiridos pelos trabalhadores, previstos na Lei Geral do Trabalho, que rege as relações entre trabalhador e empregado no país.

"Hoje na Argentina temos menos gente no mercado formal. Oito milhões de pessoas estão no trabalho informal e esse número tem crescido, os empregos são cada vez mais mal remunerados ou informais. Essa lei estabelece que a informalidade é uma regra e os direitos trabalhistas sejam um privilégio, uma coisa excepcional", diz Monja.

As desregulamentações, privatizações e a abertura incondicional da economia, previstas na legislação aprovada pelo Congresso, remetem às medidas econômicas praticadas na Argentina durante a década de 1990, que levaram o país a uma crise profunda, com intensos protestos populares na virada para os anos 2000.

"É um projeto que modifica o modelo econômico da Argentina como nos anos 1990, mas com características da ditadura cívico militar que vivemos, com perseguição a organizações políticas, de direitos humanos, sociais e sindicais", diz em referência à forte repressão aos protestos contra a Lei de Bases durante a votação no Senado, com a aplicação da Lei antiterrorismo para prender manifestantes. "Há uma tentativa de eliminar todo tipo de organização para que as grandes corporações cheguem às riquezas de nosso país: Lítio, gás, recursos naturais que a Argentina poderia usar para um processo de autonomia e soberania e que hoje estão colocados a favor do saque", diz Monja. 

Correlação de forças no Congresso

Originalmente, a "Lei Bases", que Milei lançou como sustentação de seu plano de governo, continha mais de 600 artigos com reformas de liberalização e desregulação da economia, mas, após o fracasso em fevereiro, o projeto foi reduzido a 238 artigos que também foram modificados no Senado.

Para conseguir a aprovação, o governo retirou da lista de empresas a serem privatizadas a companhia aérea Aerolíneas Argentinas, o Correo Argentino e a Radio y Televisión Argentina (RTA) que controla a TV Pública e a Radio Nacional. 

Carina López Monja avalia que apesar representar vitória política para o governo Milei, a aprovação da Lei de Bases no Congresso impôs derrotas ao governo, com a eliminação de diversos artigos e levou o Executivo a negociar com os partidos de oposição. “É uma vitória, mas é uma derrota em termos do que ele esperava inicialmente e das práticas que ele defendia. Essa lei demorou seis meses a sair, período que desgastou a relação do Legislativo com o governo, a tal ponto que Milei os chamou de idiotas, ratos. Isso vai corroendo a relação.” 

Apesar do cenário desfavorável que a aprovação das leis coloca para a população argentina, a analista política destaca que as mobilizações populares estão se intensificando no país e há resistência importante sendo feita por parte dos sindicatos e organizações populares, que podem apontar uma saída para o ciclo ultraliberal que está sendo imposto ao país. "Há um setor com muita organização popular na Argentina e muito mobilizado. Há um desafio de unir os processos de luta organizativos para enfrentar esse governo. Frente a isso, tem que haver uma resposta do campo nacional e popular."

Novos embates à vista

O governo também sacrificou uma reforma do sistema previdenciário que envolveu a eliminação de uma moratória que beneficia aqueles que, ao atingirem a idade de aposentadoria, não conseguem comprovar 30 anos de contribuição em um país onde quase metade dos trabalhadores atua no mercado informal.

Monja aponta que há apenas duas semanas, a Câmara argentina sancionou um projeto de lei que prevê o aumento da aposentaria paga no país, que deve gerara um novo embate com o Executivo, já que Milei indicou que vetaria o projeto, que chegou ao Senado.

"Se esse projeto for convertido em lei nos próximos meses, com a ameaça do veto de Milei, o Congresso pode garantir os 2/3 de votos necessários para derrubar esse veto. O governo pode dizer que não há dinheiro, mas o dinheiro que tem está sendo direcionado aos mais ricos, se tem dinheiro para dar às grandes empresas não diga que não tem para dar aos aposentados."

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho