Conflito acirrado

Área no MT onde padre, defensora e trabalhadores sem-terra foram detidos tem decisão judicial contra fazendeiro

Após despejo violento, governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, diz que ‘quem tem posse vai ter a proteção da polícia’

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Acampados comemoram a derrubada do mandado de segurança dos donos da Fazenda Cinco Estrelas - Arquivo Pessoal

Reunidos embaixo da lona onde vivem há 20 anos, na beira da estrada em Novo Mundo (MT), as 74 famílias do Acampamento Recanto Cinco Estrelas soltaram gritos de alegria no último dia 10 de junho. Foi quando eles souberam de uma decisão judicial que lhes favorece na luta por uma área já destinada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) à reforma agrária.  

O desembargador João Carlos Mayer Soares, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, negou o mandado de segurança impetrado pelos donos da Fazenda Cinco Estrelas, sobreposta à área da União que é alvo da disputa. Recentemente o conflito na zona rural do Mato Grosso se acirrou, com detenções e ameaças de morte. 

A Justiça já declarou, em uma decisão de primeira instância, em 2020, que a área de 4,3 mil hectares tomada pela Fazenda é da União. Por isso, o Incra emitiu portaria de assentamento definitivo das 74 famílias, destinando 2 mil hectares desse território para o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Novo Mundo.   

Em resposta, reivindicando a propriedade da área e com o argumento de que ela é usada para plantio de milho, soja e criação de gado, os fazendeiros entraram com um mandado de segurança contra a criação do assentamento. O recurso foi impetrado por Clayton, Renata, Luiz Claudio Rodrigues da Cunha, José Umberto e Zilene de Araújo. 

Despejo sem ordem judicial 

Enquanto a ação não era julgada, cansados dos anos de espera e das condições precárias nas quais vivem, à margem da fazenda, as famílias ocuparam a área no último dia 27 de maio.  

Em questão de horas, foram despejadas violentamente e sem ordem judicial pela Polícia Militar e agentes da empresa de segurança privada Tática Serviços. Um padre, uma defensora e dez trabalhadores sem-terra foram detidos e depois liberados.    

Dois dias após o despejo, o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), comentou o caso na imprensa. Após declarar ao RD News que “não adianta a Defensoria ir lá falar, não adianta o padre, não adianta o bispo, não adianta o político, o deputado”, Mendes afirmou: “quem tem posse vai ter a proteção da polícia do nosso estado”.   

Desde então, os acampados relatam estar sendo alvos de ameaças de morte. Ao Brasil de Fato, informaram que carros com homens armados passam devagar em frente aos barracos.   

É neste contexto que, na decisão publicada em 10 de junho, o juiz Mayer atestou que o mandado de segurança pedido pelos fazendeiros não procede. 

“Isso prova que quem de fato está grilando a área é o próprio fazendeiro. É o reconhecimento de que a União é a detentora da área e que as famílias não são invasoras, ao contrário, estão reivindicando seus direitos”, avalia Edson*, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

Poeira e falta de água

“A gente ficou muito feliz com a notícia de que foi derrubada a liminar que assegurava o grileiro”, conta Luana*, uma das acampadas. “Estamos sofrendo embaixo de lona, muita poeira, tosse. Crianças escutando tiros, sempre com pneumonia”, descreve.  


Na beira da estrada sob fios de alta tensão e à margem da fazenda, acampados aguardam há 20 anos o acesso à terra / Arquivo Pessoal

Em um áudio em que se escuta, justamente, uma tosse de bebê, dona Cleide* reforça que no acampamento “não tem conforto”. “Meu nenê nunca sarou da gripe. As crianças correndo risco na beira da rua. Minha filha não tem onde ganhar neném. Tem que tomar providência”, diz.  

Assim que puderem se estabelecer na área, diz Leandro*, outro acampado, a missão será buscar uma fonte de água. “Aqui está difícil. O que estava ajudando a gente era a chuva para pelo menos poder parar águas nas pingadeiras, mas agora é seca. Então, cada dia que passa vai ficando mais difícil para nós”.  

Próximos passos 

O Brasil de Fato entrou em contato com o governo do Mato Grosso questionando se, com o mandado de segurança derrubado e conforme declarou o governador, as forças de segurança do Estado atuarão para proteger a posse das famílias sem-terra sobre a área. Não houve resposta até o fechamento da matéria.  

Agora, a Advocacia Geral da União (AGU) pode requerer à Justiça Federal que se cumpra a decisão de primeira instância, que determinou o assentamento das famílias.  

Os fazendeiros, no entanto, ainda aguardam o julgamento de uma apelação contra a sentença. A ação está para ser julgada pela desembargadora federal Kátia Balbino. 

Procurada, a AGU informou que “foi intimada da decisão judicial” e que “oficiará o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar” para as “providências de sua alçada”.  

Já o Incra afirmou que “fez o cadastro das famílias acampadas e em estado de vulnerabilidade” e que “a partir da imissão da posse da área, inicia o processo para a criação do assentamento”.  

Seu Milton*, acampado e “esperando”, como diz, conta que a notícia foi ótima, “mas mais ótimo vai ser quando a gente cair para dentro [do terreno]. As forças estão acabando, a velhice está chegando, né?”. Mas logo emenda: “Estamos contentes”. 

Dona Ruth*, acampada cuja asma ataca pela poeira da estrada de terra, diz que “é um sonho que vai se realizar”: “Com a graça de Deus e nossos companheiros de luta, agora vamos chegar lá”. 

 

* Nome alterado para a preservação da fonte.

Edição: Martina Medina