Ministros do Supremo Tribunal Federal têm anulado decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo empregatício em casos de 'pejotização'. Em diferentes decisões, o argumento central é de que a legislação trabalhista no Brasil já não dá conta das transformações do mundo do trabalho.
De modo geral, as decisões do STF refletem novos conceitos sobre as leis sobre o trabalho. Partindo de mudanças já sinalizadas pela reforma trabalhista de 2017, argumenta-se a favor da livre iniciativa e da redução de custos das empresas com seus empregados, e também na normalização desses conceitos em todo o mundo.
Especialistas divergem dos magistrados do STF, que estariam interferindo em decisões que não são exatamente da sua alçada a partir de entendimento já formado sobre terceirização. Além disso, o posicionamento se sobrepõe a súmulas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) com relação a tentativas de fraudar a CLT.
Para o sociólogo e professor Clemente Ganz Lúcio, assessor técnico das centrais sindicais, trata-se de uma normalização de relações laborais mais precárias. "O Supremo, em parte, assume a visão dessa liberalização neoliberal de transformação das relações de trabalho em relações comerciais, relações civis. Isso significa que nós estamos legalizando a precarização", identifica.
Embora reconheça que pode haver excessos no TST na proteção aos trabalhadores, o professor de Direito Ivan Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), reclama da imposição da Corte máxima. "Quem declara se há vínculo de emprego é a Justiça do Trabalho. Você pode pegar milhões de livros de todas as épocas e tudo aponta para a competência da Justiça do Trabalho. E o entendimento que está ocorrendo em forma majoritária no STF era no sentido de tirar da Justiça do Trabalho e mandar essas discussões para a Justiça comum. Isso é o fim da picada".
O advogado Aloísio Costa Júnior, especialista em Direito do Trabalho, afirma que decisões contra a pejotização não deveriam estar sendo atacadas no STF pela via da reclamação, uma vez que o vínculo não está em debate de constitucionalidade.
"Há casos de pessoas que estão com ações trabalhistas de reconhecimento de vínculo há 10, 20 anos, aguardando o trânsito em julgado. Aí por alguma questão, alguma tecnicidade, algum recurso, mesmo protelatório, o STF reforma tudo, porque passou a entender que terceirização da atividade-fim não é ilícita. Ok, mas que que isso tem a ver com o meu caso? Muitas vezes tem, muitas vezes não tem", aponta.
O Supremo teria recebido mais de 2,5 mil reclamações classificadas como "Direito do Trabalho" e "Processo do Trabalho" apenas em 2023, o que gerou reclamação até de Gilmar Mendes. Mesmo assim, ele é um dos ministros que já tomaram decisões que reformaram causas ganhas por trabalhadores PJs, assim como Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia, André Mendonça e quase todos os demais.
Até o momento, apenas Flávio Dino e Edson Fachin se mantiveram contra essa corrente. Assim, ajudaram a preservar decisões impostas às empresas derrotadas em instâncias trabalhistas, como o pagamento de 13º, férias remuneradas, multas indenizatórias e outros direitos regulares a qualquer trabalhador. A posição de ambos é que a Corte liberou apenas requisitos da terceirização, afrouxando o veto à possibilidade de diferentes atividades-fim entre as partes.
Movimento para afrouxar regras
Diferente dos PJs, as terceirizadas são empresas contratadas para a realização de serviços específicos dentro do processo produtivo da contratante, e possuem regras próprias. "No caso da terceirização, se o empregador direto que assinou a carteira de trabalho não pagar o crédito, a empresa tomadora paga. Lembra muito uma fiança ou algo do tipo", salienta Ferreira.
Costa Júnior detalha o que está em questão quando um PJ reclama de vínculo empregatício como prestador de serviços contumaz. "Verifica-se se estão presentes ou não os requisitos da relação de emprego, (...) se o tomador de serviços age como empregador, exercendo poder diretivo, subordinando o trabalhador. E se o trabalhador age como empregado, se submetendo a esse poder diretivo, sendo remunerado para isso, trabalhando com habitualidade e com pessoalidade".
Segundo o advogado, há de se levar em conta a existência do "princípio da primazia da realidade" no Direito do Trabalho tradicionalmente, no Brasil e no resto do mundo. "Não importa tanto o que está escrito em contratos, importa como as pessoas se comportam no dia a dia, importa como a relação jurídica se desenvolve. O que dita a regulação não é o papel, mas a vida, o dia a dia", reforça.
Para a Justiça do Trabalho, a fraude à CLT se caracteriza, então, pelo vínculo de emprego direto com o tomador, conforme salienta o professor Ferreira. "A subordinação é uma questão muito importante para o direito do trabalho. É o empregado ficar ali, à disposição do empregador Na terceirização, esse trabalhador está subordinado ao empregador dele, a empresa terceirizada e não ao que a gente chama de tomador".
Aloísio Costa Júnior também acredita ser necessário fazer uma análise jurídica de mudanças nos contextos produtivos. "Antes, quando nós tínhamos uma sociedade mais industrial, de grande produção em escala, de grandes entes empresariais, com uma hierarquia muito bem definida de cima para baixo, a empresa fazia tudo. Hoje, a produção é muito mais pulverizada. Os meios de produção, embora concentrados, estão mais pulverizados", argumenta.
Futuro da previdência pública em xeque
Do outro lado da equação está o desmonte acelerado em curso de uma legislação trabalhista conquistada após décadas de luta. "Um trabalhador pejotizado não tem direito a jornada de trabalho, nem piso salarial, nem reajuste de salário. Ele é uma empresa. Você está discutindo um contrato comercial, como se estivesse discutindo um contrato de aluguel. Isso é algo que interessa muito às empresas, porque elas estão reduzindo brutalmente o custo do trabalho e deixando de ter a responsabilidade social e trabalhista de uma relação de trabalho", identifica Ganz Lúcio.
Segundo Aloísio Costa Júnior, se instaurou um ambiente de incertezas que tem se refletido na queda de processos abertos por trabalhadores individuais, cujos serviços foram contratados como pessoa jurídica, contra os tomadores de serviço. "Percebemos uma hesitação de trabalhadores que procuram os advogados pensando no ajustamento de uma reclamação trabalhista. E nós, advogados, temos que dar o conselho de que, mesmo havendo fundamento, há o risco disso ser discutido lá na frente. Não temos segurança para falar 'vai para um lado ou vai para o outro'", ressalta.
Mesmo antes de formar maioria sobre o universo específico da pejotização, os ministros do STF também têm colocado mais incógnitas com relação ao próprio futuro da CLT e do caixa do INSS, tocando no delicado debate sobre a previdência pública. Isso em um cenário já desenfreado de abertura de novas empresas – a maioria nos últimos anos de MEIs (Microempreendedores Individuais) – em que, desde 2017, o número de trabalhadores sem carteira assinada é superior ao de CLTs.
"Sem proteção trabalhista não há proteção previdenciária", protesta Clemente Ganz Lúcio. Ele se refere a estudo recente da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) que simula quanto seria arrecadado pela Previdência, caso todos os trabalhadores que atuam por conta própria fossem contratados em regime CLT. Considerando o período de 2018 a 2023, mais R$ 144 bilhões estariam disponíveis no fundo que garante aposentadoria pública aos brasileiros.
"A consequência disso não é só para os pejotizados. À medida que esses R$ 144 bilhões não entram no caixa da previdência, quem está hoje se aposentado não vai receber a previdência social. Ou o Tesouro vai ter que cobrir ou o que se faz? Reduz-se os direitos, reduz-se o valor da aposentadoria. Por consequência, se está expandindo uma precarização generalizada para todos os trabalhadores com a anuência do Congresso Nacional e de parte do Supremo Tribunal Federal", lamenta Ganz Lúcio.
Edição: Thalita Pires