Terceirização generalizada, pejotização e cassação do reconhecimento de vínculo de emprego. Nos últimos anos o Brasil vê crescer casos em que decisões da Justiça do Trabalho favoráveis aos trabalhadores em temas como esses são derrubados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Desde os anos 1990 nós temos várias medidas do Legislativo e do Judiciário que precarizam direitos trabalhistas, mas o que ocorre atualmente no âmbito do STF é algo que na história do direito do trabalho não tinha precedente”, avalia o juiz Grijalbo Fernandes Coutinho, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 10ª Região.
“Estamos diante de uma devastação laboral com as decisões tomadas pela maioria do Supremo”, define Coutinho, que é também integrante da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
A Suprema Corte considerou lícita a terceirização em qualquer tipo de atividade produtiva e legitimou a escala de trabalho de 12x36 (quando a pessoa trabalha 12h seguidas e descansa nas 36 seguintes). “São as jornadas do início do século 19”, compara o Grijalbo.
O Supremo também determinou que convenções coletivas podem estar acima da lei, ainda que estabeleçam condições de trabalho piores que aquelas asseguradas na legislação.
No livro Justiça Política do Capital: a Desconstrução do Direito do Trabalho por Meio de Decisões Judiciais, resultado de seu doutorado na UFMG, Grijalbo analisa o que considera 60 grandes decisões do STF nesta área entre 2007 e 2020. Em 57 delas, segundo ele, a Corte decidiu pela flexibilização dos direitos trabalhistas.
Pejotização
Grijalbo Coutinho avalia, ainda, que nos últimos quatro anos o cenário piorou “vertiginosamente”. Isso por conta do crescimento de decisões da Justiça do Trabalho que são cassadas por pronunciamentos individuais de ministros do STF nas chamadas reclamações constitucionais.
O recurso tem o objetivo de garantir a autoridade das decisões do STF, que é a instância máxima do Judiciário, quando supostamente elas estão sendo desrespeitadas por outros tribunais.
As reclamações, apesar de supostamente excepcionais, têm sido movidas com mais frequência por empresas e empregadores desde a aprovação da Reforma Trabalhista em 2017, durante o governo de Michel Temer (MDB). Casos envolvendo a pejotização são os mais citados por juízes do trabalho ouvidos pelo Brasil de Fato.
A prática de o trabalhador abrir um CNPJ para ser contratado como pessoa jurídica (PJ) é comumente usada para dar uma aparência de vínculo entre empresas para uma relação que, na realidade, é de subordinação entre empregado e empregador, só que sem direitos trabalhistas.
“É uma forma de fraudar aquela relação de emprego”, resume Leonardo Vieira Wandelli, consultor do Alto Comissariado em Direitos Humanos da ONU e juiz do TRT da 9ª Região.
“O problema é que ministros do STF passaram a adotar decisões, em reclamações, dizendo que nos casos em que a Justiça do Trabalho reconhecia vínculos de emprego em situações de pejotização, estaria violando a decisão do Supremo que determinou a licitude da terceirização”, explica Wandelli.
“São casos envolvendo profissionais dos mais variados: comerciantes, médicos, jornalistas”, descreve Grijalbo. “E esses casos não tratam de terceirização. Eles tratam de contratação direta como PJ. De fraude”, critica.
Além disso, contesta Coutinho, “as juízas e juízes analisaram fatos e provas para tomar suas decisões. Afinal, o Direito do Trabalho é orientado pela primazia da realidade. Porque senão qualquer um pode fazer um contrato que diz algo e pronto. Se o Supremo diz que a forma pode se sobrepor à realidade, que qualquer contrato é válido, então está sepultando o Direito do Trabalho”.
Dos 11 ministros da Suprema Corte, apenas Edson Fachin e Flávio Dino têm sido vozes dissonantes em casos como esses, avaliam Wandelli e Coutinho.
Assim, avalia Grijalbo, “estamos na era da desconstrução do Direito de Trabalho pelo STF. E o impacto de tudo isso é profundo para a classe trabalhadora, que está tendo seus direitos dilapidados”.
Desconstrução de garantias constitucionais do trabalho
Se na Constituição de 1988 foi introduzido um marco normativo de proteção dos direitos dos trabalhadores, para Leonardo Wandelli, ao longo das duas décadas que se seguiram, a postura do STF foi de “negligência” em relação à falta de constitucionalidade das relações de trabalho no país.
“Isso até por volta de 2008, 2010. A partir daí, o que se viu foi uma mudança radical. O Supremo, que antes evitava tratar os temas trabalhistas, passou a conhecer das questões de uma forma muito intensa”, discorre Wandelli.
“Mas não para assegurar o padrão constitucional de proteção do trabalho humano, ao contrário”, salienta: “A jurisprudência do Supremo nos últimos 15 anos vem sendo ativista no sentido de promover a desconstrução das garantias constitucionais do mundo do trabalho”.
Na visão de Grijalbo Coutinho, é um paradoxo que o STF, “que reage contra extremismos da direita e tentativas de golpe, ao mesmo tempo desconstrói as bases do Direito do Trabalho. Isso por parte de um tribunal que, aliás, só julga essa matéria porque é uma Corte constitucional e esses direitos estão na Constituição como uma conquista da classe trabalhadora”.
“Mas acho que a principal afetada não se deu conta ou não teve força para, até hoje, ser ouvida. Quem é a grande afetada? A classe trabalhadora”, diz Coutinho.
Uberização
É neste contexto que o STF está para julgar uma ação entre uma motorista e a Uber (RE 1.446.336), que vai ter repercussão geral. A decisão sobre a existência ou não de vínculo empregatício neste caso, portanto, vai padronizar como todas as disputas judiciais entre plataformas e trabalhadores de aplicativos deverão ser tratadas no país.
“No Brasil o ambiente que a gente está vivendo, inclusive a tomar pelo próprio projeto que foi encaminhado ao Congresso pelo atual governo, mostra que há uma resistência enorme a se assegurar direitos aos trabalhadores plataformizados”, analisa Leonardo Wandelli. “A uberização é muito séria, porque é a principal tendência de transformação das relações de trabalho hoje”, sintetiza.
E acontece em um momento, avalia Wandelli, “de um processo avançado pelo qual os trabalhadores foram convencidos de não ter solidariedade entre si, que cada um deve perseguir seu próprio interesse individualmente. Então há uma forte divisão em cada ambiente de trabalho, o individualismo que foi construído por um modelo de gestão que se destina a produzir esse isolamento”.
A forma como o Brasil vai lidar com as relações de trabalho uberizadas é “uma decisão”, discorre Wandelli, “de que tipo de sociedade a gente quer”.
“A gente quer uma sociedade em que o trabalho das pessoas seja uma forma de integração e uma forma de co -participação na sociedade e assegure condições minimamente estáveis de vida ou a gente quer uma sociedade em que o trabalho seja cada vez mais precarizado, sem assegurar a ninguém um mínimo de condição de estar na sociedade de forma digna?”, questiona o juiz: “É isso o que está em jogo”.
Edição: Matheus Alves de Almeida