Muito se tem dito que a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul neste mês é fruto, dentre outras coisas, do negacionismo climático e ambiental. Inclusive por governantes, talvez com pretensão de minimizar suas responsabilidades pela calamidade que tomou conta do estado. Mas nem sempre se entende bem o que é o negacionismo climático. É provável que muitos pensem até que os negacionistas sejam negadores da ciência, que tenham críticas epistemológicas à ideia de “verdade científica”. Só que não!
Não há nada de errado em refutar as certezas científicas, afinal, a própria ciência se transforma e evolui exatamente porque é capaz de criticar a si mesma. É só observar como as ciências médicas e da nutrição estão revendo constantemente as recomendações sobre o que devemos comer para termos boa saúde. Além disso, a crítica à ideia de “verdade científica” ou de “certeza científica” esteve presente no pensamento de praticamente todos os filósofos da ciência nos últimos 150 anos, das mais diversas correntes teóricas. Por isso, somente cientistas ingênuos ou dogmáticos realmente acreditam em verdades ou certezas científicas definitivas.
Ocorre que a pretensão dos negacionistas não é fazer uma refutação filosófica ou teórica das certezas científicas. Eles não têm nenhuma crítica legítima e fundamentada à ciência, nem nutrem qualquer querela com o conhecimento científico em geral, quanto mais com a tecnologia. Ao contrário, geralmente são pessoas e grupos que se servem fartamente de conhecimentos científicos e das tecnologias modernas geradas por eles. A questão deles, portanto, não tem a ver com a ciência em si, tem a ver com ideologia, política, economia, e com dinheiro e poder.
O negacionista das vacinas, por exemplo, não deixa de fazer quimioterapia se tiver câncer, mesmo que o método científico que produza a vacina seja o mesmo que produz o quimioterápico. Também não deixa de olhar a previsão meteorológica quando vai plantar na lavoura, nem quando vai colocar o barco no mar, mesmo que as ciências da previsão do tempo e do clima usem os mesmos métodos.
Então, os negacionistas não negam qualquer ciência: eles negam aquela que tenha alguma implicação coletiva ou em políticas públicas, mas não aquela que eles podem usar livremente e individualmente. O que eles rejeitam é que a ciência dite estratégias coletivas de enfrentamento de problemas coletivos, e que, em nome dessas estratégias, ela ameace seu modo de vida, seu conforto financeiro ou sua liberdade econômica. O negacionismo climático é uma forma de reação contra a intervenção do Estado e dos organismos multilaterais na economia e nas formas de produção e de vida das pessoas para fazer frente ao aquecimento global e às mudanças climáticas.
É certo que catástrofes climáticas, como as que têm ocorrido no Rio Grande do Sul, têm feito o negacionismo declinar a ponto de se tornar impopular, e por isso muitos negacionistas têm revisto suas posições. Porém, mesmo “ex-negacionistas” só chegam até o limite de reconhecer as causas antrópicas e as consequências dramáticas das mudanças climáticas, mas, em geral, não abandonam o combate e a obstrução às políticas internacionais e locais contra o aquecimento global e a destruição ambiental.
E por que isso acontece? Exatamente porque o negacionismo não é sobre ciência ou fatos, é sobre ideologia e política, e sobre interesses econômicos e financeiros ameaçados pelas medidas de redução de CO2 e de proteção ambiental.
No fundo, a ciência é só a vítima que estava no caminho.
A origem do negacionismo climático e ambiental é remota, mas está invariavelmente ligada a movimentos conservadores e de extrema direita, de luta por direito à propriedade privada da terra e à desregulamentação da economia. E, nos Estados Unidos, está ligada à descentralização para os estados da jurisdição sobre meio ambiente e acesso às terras, para favorecer leis mais brandas em estados controlados por Republicanos, geralmente do Sul. Mais recentemente o negacionismo climático tem sido patrocinado por indústrias petrolíferas, diretamente interessadas em preservar a irrestrita exploração de combustíveis fósseis.
No Brasil, o negacionismo está associado, sobretudo, aos interesses do agronegócio e atividades extrativistas, com vistas a deslegitimar políticas ambientais, expandir a fronteira agrícola por meio do desmatamento e desregulamentar o uso de áreas de preservação, tudo pela manutenção e expansão do modelo de produção primária agroexportadora.
O real alvo do negacionismo, por vezes, aparece já no nome de algumas de suas obras e agentes, como o livro Planeta azul, não verde: o que está em perigo, o clima ou a liberdade?, do ex-presidente tcheco Václav Klaus; ou o portal de notícias Liberdad Digital; e o movimento Americans for Prosperity, todos de linha conservadora neoliberal, que veem nas políticas anticarbono e antiemissões graves ameaças à liberdade econômica, à livre iniciativa e ao direito de propriedade.
A tese dos negacionistas é de que a ciência do clima é uma grande fraude “urdida por ambientalistas anti-industriais, baseadas em teorias assustadoras de cientistas em busca de financiamento, e difundida com a cumplicidade de políticos e meios de comunicação”, como afirma o britânico Martin Durkin no seu documentário A grande farsa do aquecimento global. Uma parte do argumento negacionista é dirigida contra o que eles chamam de “globalismo”, que seria, resumidamente, uma agenda internacional de esquerda capitaneada por organizações multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que visa impor uma padronização mundial da cultura, da organização social, dos modos de vida e das formas econômicas, com evidente ameaça à liberdade econômica e à sobrevivência das culturas e dos modos de vida nacionais.
Por esta razão é que o antiglobalismo é uma pauta constante nos nacionalismos de extrema-direita.
No Brasil, também, as vozes negacionistas já foram muito eloquentes, como o autointitulado príncipe, Dom Bertrand de Oliveira e Bragança, autor do livro “Psicose Ambientalista”; o ideólogo Olavo de Carvalho, para quem o negacionismo climático é uma arma na luta contra o comunismo internacional e seu projeto de dominação ambiental contra a civilização cristã; e mesmo alguns membros da comunidade científica, como Ricardo Felício e Luiz Molion.
Mas foi no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro que ele ganhou o primeiro escalão do poder, com o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que disse sobre o aquecimento global e o desmatamento no Brasil, dentre outras coisas, que havia muito alarmismo sobre o assunto, e que “não acreditava na ciência brasileira porque a ciência brasileira estava toda aparelhada pela esquerda contra os americanos”. Já para o ex-chanceler Ernesto Araújo, o “climatismo” é uma conspiração global que vem servindo para justificar o aumento do poder regulador dos Estados sobre a economia e o poder das instituições internacionais sobre os Estados nacionais e suas populações.
Nas palavras de um integrante do Itamaraty à época do ministro Araújo, referindo-se ao teor de um encontro em que havia participado nos Estados Unidos, no The Heartland Institute: “O debate não é sobre mudança do clima, nem sobre dióxido de carbono. Não é sobre clima, nem ciência. É sobre socialismo contra capitalismo".
Então, basicamente o negacionismo climático é uma ideologia de extrema-direita que enxerga nas políticas globais anticarbono uma conspiração de esquerda para promover um governo global, com retorno ao planejamento central por outras vias, com restrições à autonomia das nações, à liberdade econômica, à livre iniciativa e ao direito de propriedade, e com comprometimento do modo de vida da civilização ocidental judaico cristã. Por isso, ele tem várias facetas ideológicas: é economicamente neoliberal, é ideologicamente nacionalista e “antiglobalista”, é culturalmente reacionário e é politicamente de extrema-direita, com forte presença do pensamento anticomunista entranhado em seu discurso.
Não sendo um movimento científico ou anticiência, não se espera combater o negacionismo com mais conhecimento científico ou mais informação científica. Mesmo os fatos e a sucessão de tragédias que tem ocorrido só tem potencial de dobrar a percepção negacionista das mudanças climáticas até certo ponto, mas não afetará a sua disposição em obstruir políticas globais e locais de defesa do meio ambiente e de combate ao aquecimento global. Por isso, ele precisa ser vencido é politicamente, e se faz isso desafiando este combo ideológico que sustenta o negacionismo: o neoliberalismo, o nacionalismo, o reacionarismo e o ethos político anticomunista anacrônico e descabido herdado da Guerra Fria.
* Renato Souza é professor do Programa de Pós-graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko