A Europa é o continente que mais rapidamente se aquece no planeta. A Agência Ambiental Europeia (EEA) e o Copernicus (a agência europeia do clima) publicaram, em março e em abril de 2024, dois relatórios que confirmam mais uma vez a velocidade singular do aquecimento europeu: o European Climate Risk Assessment (Avaliação de Risco Climático Europeu, doravante Eucra, na sigla em inglês) e o European State of the Climate 2023 (Estado do Clima Europeu em tradução livre, doravante ESC2023). O relatório Eucra identificou 36 riscos climáticos na Europa, advertindo que vários deles “já atingiram níveis críticos”:[1]
“A Europa é o continente que mais rapidamente se aquece no mundo. O calor extremo, outrora relativamente raro, está se tornando mais frequente à medida que os padrões de precipitação mudam. Chuvas torrenciais e outros extremos climáticos estão se agravando, e, nos últimos anos, registraram-se inundações catastróficas em várias regiões. Ao mesmo tempo, o sul da Europa deve sofrer diminuições consideráveis de precipitação e secas mais graves. Tais eventos, combinados com fatores de risco ambiental e social, colocam grandes desafios para toda a Europa. Especificamente, agravam a escassez alimentar e hídrica, comprometem a segurança energética e a estabilidade financeira, a saúde da população em geral e a dos trabalhadores ao ar livre, o que, por sua vez, afeta a coesão e a estabilidade sociais”.
Em abril, o ESC2023 reiterou o termo “catastrófico” e acrescentou mais dados a esse quadro calamitoso:[2]
“Desde a década de 1980, a Europa tem aquecido duas vezes mais rapidamente que a média global, tornando-se o continente com aquecimento mais rápido na Terra. (…) As geleiras estão derretendo e há mudanças no padrão de precipitação. O aumento das precipitações extremas está causando acontecimentos catastróficos, como as inundações generalizadas registradas na Itália, Grécia, Eslovénia, Noruega e Suécia em 2023. Entrementes, o sul da Europa registra secas generalizadas. A frequência e a gravidade dos eventos extremos estão aumentando.”
A Figura 1 compara o aquecimento médio global e o da Europa, mostrando como o aquecimento médio europeu em 2023 foi já de 2,48ºC – 2,58ºC acima do período pré-industrial (ESC2023).
Os três anos mais quentes nos registros históricos na Europa ocorreram desde 2020 e os dez anos mais quentes ocorreram desde 2007 (ESC2023). Nos últimos cinco anos (2019-2023), os termômetros registraram temperaturas cada vez mais anômalas nos verões europeus[3], todas acima de 40 oC: 40,3 oC no Reino Unido (2022); 40,7 oC na Holanda (2019); 41,8 oC na Bélgica (2019); 42,6 oC na Alemanha (2019); 46 oC na França (2019); 46,2 oC no Chipre (2020); 46,4 oC na Grécia (2023); 47 oC em Portugal (2022); 47,6 oC na Espanha (2021) e 48,8 oC na Sicília (2021). As piores ondas de calor dos registros históricos na Europa, na combinação entre a intensidade e duração, ocorreram no século 21, nos anos 2001, 2003, 2010, 2021, 2022 e 2023.
As ondas de calor europeias são cada vez mais precoces, mais frequentes e mais intensas. Em abril de 2023, o Ministério da Saúde da Espanha propôs adiantar para 15 de maio seu plano de adaptação ao calor extremo, antes fixado para 1° de junho, incluindo a possibilidade de mudar os horários das escolas[4]. A frequência das ondas de calor na Grécia saltou de 0,7 por ano entre 1950 e 2020 para 1,1 por ano entre 1990 e 2020, um aumento de 80%, e as áreas desse país que sofreram ao menos uma onda de calor por ano quase dobraram desde 1990[5]. A Figura 2 mostra o aumento dos registros de recordes de temperatura nas estações meteorológicas da França antes de 2000, entre 2000 e 2009 e entre 2010 e junho de 2022.
No Atlântico Norte, a oeste da Irlanda e à volta do Reino Unido, registrou-se em junho de 2023 uma onda de calor marinho “extrema” e, em certas áreas, “além de extrema”, com temperaturas marítimas superficiais até 5 oC acima da média do período 1991-2020 (ESC2023).
Aceleração das taxas decenais do aquecimento europeu
A aceleração do aquecimento na Europa é o aspecto que mais imediatamente ameaça sua capacidade de adaptação. Ela se torna evidente quando se comparam as taxas de aquecimento por década nos últimos 50 anos (1974-2023), conforme mostra a Tabela 1.
Tabela 1 – Aceleração das taxas de aquecimento por década na Europa entre 1970 e 2023
1970-2010: 0,34 oC
1970-2023: 0,40 oC
1974-2023: 0,43 oC
1981-2019: 0,46 oC
1994-2023: 0,48 oC
2004-2023: 0,61 oC
Fonte: Noaa, Climate at a Glance Global Time Series. Para o período 1981-2019, veja-se: Noaa, Annual 2019 Global Climate Report.
A taxa de aquecimento por década na Europa entre 1994 e 2023 (0,48 oC) é já maior que o dobro da taxa média global nesses 30 anos (0,22 oC/década[6]). Sobretudo, a taxa de aquecimento decenal na Europa aumentou em 80% em relação a ela mesma na comparação entre os dois períodos (1970-2010 x 2004-2023).[7] Mantida a taxa de aquecimento dos últimos 20 anos (2004-2023 = 0,61 oC), a temperatura média no continente aumentará 1 oC a cada 17 anos. Assim, em 2040, a Europa atingirá um aquecimento médio entre 3,3 oC e 3,58 oC e, em meados do século, um aquecimento de 4 oC, uma situação climática possivelmente no limite ou acima das possibilidades de adaptação, mesmo em sociedades tecnologicamente avançadas. Isso posto, o futuro é sempre um tanto incerto. Vejamos rapidamente como o aquecimento europeu já está ameaçando, hoje, as possibilidades de adaptação europeia.
Maior mortalidade por calor
Um indicador dos limites da adaptação ao aquecimento é a crescente mortalidade por calor extremo nos verões europeus. O ESC2023 afirma:[8]
“Na Europa, desde 1970, o calor extremo tem sido a principal causa de mortes associadas ao clima, sendo que 23 das 30 ondas de calor mais graves ocorreram desde 2000 e as cinco mais graves, nos últimos três anos. Estimam-se entre 55 mil e 72 mil as mortes devidas a ondas de calor em cada verão de 2003, 2010 e 2022. […] Na Região Europeia da Organização Mundial de Saúde, a mortalidade associada ao calor aumentou cerca de 30% nos últimos 20 anos. Entre 2000 e 2020, estima-se que as mortes relacionadas com o calor tenham aumentado em 94% nas regiões europeias monitoradas”.
Estima-se que em 2022 houve, na Europa, 61.672 mortes em excesso diretamente associadas ao calor extremo entre 30 de maio e 4 de setembro.[9] Para avaliar os limites dessa adaptação, deve-se considerar o conjunto dos impactos relacionados de um modo ou de outro ao aquecimento, entre os quais os impactos negativos sobre a saúde humana e a de outros animais, o comportamento dos ecossistemas, a segurança hídrica, o fator incêndios (mortes e adoecimento por inalação de material particulado), a maior disseminação de epidemias em climas mais quentes, mais ampla distribuição geográfica de vetores de zoonoses etc. Em 2023, o Aedes albopictus, por exemplo, transmissor da dengue, já havia se estabelecido em 13 países europeus.[10]
Secas e inundações
Inundações e secas em alternância têm causado gigantescos impactos na Europa, tendo provocado 243 mortes apenas em julho de 2021. Na Bélgica, a ministra do Interior, Annelies Verlinden, declarou que a inundação de 2021 havia sido “um dos maiores desastres naturais jamais ocorridos em nosso país”. É sabido que, a cada grau de aumento de temperatura, a coluna de ar absorve 7% adicionais de vapor de água. Cientistas do World Weather Attribution — que estimam o quanto a probabilidade, a frequência e/ou a intensidade de um desastre natural podem ser atribuídas à emergência climática — mostraram que, até 2021, o aquecimento já havia tornado tempestades de verão na Alemanha 3% a 19% mais fortes e 1,2 a 9 vezes mais prováveis. Friederike Otto, um dos coautores desse estudo de atribuição, declarou então à imprensa uma obviedade que muitos na Europa ainda não compreenderam: “Essas inundações nos mostraram que mesmo países desenvolvidos não estão seguros” em face da emergência climática.[11]
Segundo os relatórios ESC2023 e Eucra, apenas em 2023, cerca de 1,6 milhão de pessoas foram afetadas por inundações na Europa. Já as tempestades impactaram 500 mil europeus no período. Em maio do mesmo ano, 23 rios na Itália inundaram uma área de 540 km2, deslocando 36 mil pessoas. Em agosto, dois terços da Eslovênia foram inundados, com cerca de 1,5 milhão de pessoas afetadas, 8 mil pessoas deslocadas e prejuízos equivalentes a 16% do PIB do país. Em setembro, precipitações extremas bateram recordes na Bulgária, Turquia e Grécia, país que teve uma área inundada de cerca de 700 km2, afetando suas regiões agrícolas mais importantes. Em algumas localidades gregas, choveu em um único dia o equivalente à média das precipitações de um ano. Em 2024, a Europa continuará a ser atacada pelas inundações.[12]
A alternância de secas e inundações em uma meteorologia de extremos causa o fenômeno de contração/dilatação dos solos argilosos, provocando fissuras nas paredes, que já deterioraram a estrutura de dezenas de milhares de residências e outras construções francesas. Em 2022, as seguradoras francesas desembolsaram 3,5 bilhões de euros em indenizações por “catástrofes naturais” (as chamadas “Cat Nat”), 70% a mais do que em 2003. Estima-se que essas fissuras ameaçam potencialmente 54% dos imóveis na França, dentre os 10,4 milhões deles construídos sobre terrenos argilosos.[13] A Caisse Centrale de Réassurance — a companhia de resseguros francesa — avalia que “as secas aparecem como o mais preocupante perigo, haja vista o montante dos prejuízos que elas engendram e sua forte evolução futura”.[14]
O fim da neve nos Alpes
Segundo o State of the Global Climate 2023 da Organização Meteorológica Mundial (OMM), os glaciares nos Alpes europeus sofreram um degelo extremo. “Na Suíça, os glaciares perderam cerca de 10% do seu volume restante nos últimos dois anos”.[15] O degelo sazonal nos Alpes é de grande importância para os rios da Áustria, da Alemanha, da França, da Itália, da Eslovênia e da Suíça. Nos Alpes deste último país, a altitude de congelamento da água (isoterma de 0 oC) tem aumentado desde 1970 e, nas primaveras e verões, tem escalado mais de 100 metros por década.[16] Em agosto de 2023, segundo a MeteoSwiss, a isoterma de 0 oC atingiu a cota recorde de 5.298 metros acima do nível do mar, o que significa que todos os picos nevados na Suíça tinham temperaturas do ar acima de 0 oC, com profundo derretimento do permafrost, geralmente encontrado acima de 2.500 metros.[17] A este respeito, Michael Matiu e colegas constataram: (a) uma diminuição média de 8,4% por década na profundidade da neve e (b) uma diminuição média de 5,6% na duração da cobertura de neve na maior parte das estações meteorológicas alpinas de novembro a maio entre 1971 e 2019.[18] Entre os invernos de 2021 e de 2022, os glaciares do maciço do Mont Blanc, na fronteira franco-italiana, situados em altitudes superiores a 2.100 metros e mesmo a 3.500 metros, perderam de 3 a 4 metros de espessura.[19] Simulações sobre o futuro dos extremos hidrológicos nos Alpes, segundo modelos de sensibilidade para diferentes níveis de aquecimento (1 a 3 oC), preveem mudanças maiores sobretudo no norte da Itália e na Europa Central.[20]
O agravamento das secas em escala continental no século 21
Eventos de secas especialmente graves na Europa têm se repetido com frequência cada vez maior, com registros em escala continental em 2003, 2010, 2015, 2018, 2019 e 2022. Esta última, a pior dos últimos 500 anos,[21] estendeu-se por mais de 630 mil km2, o que representa quase o quádruplo da média histórica anual dos territórios europeus afetados por secas entre 2000 e 2022 (167 mil km2).[22] Segundo o European Drought Risk Atlas, 21 secas graves ocorreram no continente desde 2011. Seus autores advertem que “a frequência desses eventos está diminuindo a janela de recuperação entre os impactos, levando a consequências ainda mais graves”.[23] A seca de 2022 chegou a se estender por 60% do território da União Europeia (UE) e do Reino Unido. Os países da orla mediterrânea, além da Romênia e da Bulgária, encontram-se em uma situação hidrológica crescentemente precária. O Departamento dos Pirineus-Orientais, na região da Ocitânia (sul da França), enfrenta “uma seca histórica em duração e em intensidade, a mais grave desde nossos primeiros registros, que remontam a 1959. O inverno de 2023-2024 foi ainda mais seco que o precedente e registra 55% de déficit pluviométrico”.[24] Este é apenas um capítulo local do relatório acabrunhante que a Comissão Europeia, por meio de seu Joint Research Centre (JRC, na sigla em inglês), publicou sobre a situação mediterrânea.[25] O balanço hidroclimático da Emilia-Romagna (cuja capital é Bolonha) fornece um exemplo eloquente do ressecamento da península italiana. A Figura 3 resume essa evolução nos últimos 62 anos.
Nos 23 anos entre 1961 e 1984, apenas oito apresentaram déficits hidroclimáticos nessa região em relação ao período 1961-2022, uma relação de quase três superávits anuais para cada déficit. Mas, nos 38 anos entre 1985 e 2022, essa relação se inverteu: foram quatro déficits hidroclimáticos anuais para cada superávit.
Secagem e degradação dos rios
Rios emblemáticos da geografia e da história europeia podiam ser atravessados a pé, em alguns trechos, no verão de 2022. O rio Pó, com seus 652 km e 141 tributários, outrora chamado o rei dos rios (fluviorum rex, assim o chama Virgílio no livro I das Geórgicas), sofreu em 2022 a pior seca dos últimos 70 anos. Em consequência, o mar Adriático avançou quase 20 km por seu estuário, arruinando muitas de suas plantações. Em fevereiro de 2023, o rio Pó secou novamente, pondo em risco um terço da produção agroalimentar italiana.[26] O Loire, o rio mais longo da França, sofreu, em 2022, o mais baixo nível desde ao menos 1976. O Reno chegou, nesse ano, a um nível tão baixo que por pouco não se inviabilizou o transporte hidroviário. Em maio de 2023, era possível atravessar o rio Tejo a pé em alguns trechos. A situação dos rios espanhóis é tão crítica que, em setembro de 2022, o governo desse país notificou Portugal de que honraria apenas parcialmente a Convenção de Cooperação para a Proteção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas, conhecida como Convenção de Albufeira, em vigor desde 2000. Trata-se de um tratado que estabelece uma gestão comum dos rios Tejo, Minho, Douro, Lima e Guadiana, bem como das águas subterrâneas da península. A decisão aumenta a tensão entre os dois países, visto que, em 2019, houve uma primeira falha de parte da Espanha em cumprir o estabelecido pelo tratado.[27]
Impactos sobre a geração de energia elétrica e a qualidade das águas
Os impactos das secas para a geração de energia hidrelétrica e para o resfriamento de centrais nucleares têm sido particularmente sentidos na França. Em 2022, o país tornou-se, pela primeira vez em mais de 40 anos, um importador líquido de energia da Espanha, da Suíça, do Reino Unido e, sobretudo, da Alemanha, ela própria sob pressão energética, devido, entre outros fatores, à interrupção ou ao menor fornecimento de gás da Rússia.[28] A estatal francesa Électricité de France (EDF) reduziu a geração de eletricidade nas usinas nucleares dos rios Ródano e Garonne, pois o aquecimento de suas águas restringe a capacidade desses rios de resfriar essas usinas sem ultrapassar temperaturas demasiado nocivas para a vida aquática. Em 2022, metade dos 56 reatores nucleares do país foi desligada para manutenção, para reparação ou por limitações impostas pelo clima, de modo que a geração de energia pelo parque nuclear francês em 2022 foi a menor em mais de três décadas.[29]
Declínio dos aquíferos e lençóis freáticos
O declínio quantitativo e qualitativo dos lençóis freáticos e dos aquíferos constitui o aspecto menos conhecido e talvez o mais sistêmico da crise hídrica europeia. Na França, Christophe Béchu, ministro da “Transição Ecológica” (com aspas, evidentemente), declarou em junho de 2023: “Em dois terços do país, os lençóis freáticos estão abaixo do normal; 66% é enorme. A chuva por vezes cai de forma mais repentina, mais concentrada, e grande parte dela é absorvida pelo aumento das temperaturas”. As consequências disso, continua o ministro, são, de um lado, “menos água para as atividades humanas e, de outro, catástrofes provocadas por escoamentos e tempestades extremamente violentas”.[30] Também o declínio dos aquíferos é geral no continente, segundo dados dos satélites Grace (Gravity Recovery and Climate Experiment) e Grace-FO (FO para Follow-On). Entre 2002 e 2022, os aquíferos europeus — com poucas exceções — perderam mais água do que recuperaram. Estima-se que, nesses 21 anos, esses aquíferos tenham perdido em média 84 bilhões de toneladas de água por ano, por uma sinergia entre emergência climática, secas e excesso de extração. Como afirma Cynthia Barnett: “As alterações climáticas e a superexploração dos aquíferos estão intimamente ligadas. À medida que as secas graves aumentam, os agricultores, as indústrias e as cidades bombeiam cada vez mais água e cada vez mais fundo, para compensar a falta de precipitação e os recordes de calor”.[31]
Desmatamento, degradação e incêndios das florestas
A Europa tem sofrido, sobretudo na última década, uma diminuição da área de seu dossel (cobertura arbórea), conforme um levantamento recente:[32]
“Após 2016, a extensão da cobertura arbórea na Europa diminuiu. […] A extensão continental das florestas com árvores altas (≥ 15 m de altura) diminuiu 3% entre 2001 e 2021. O recente declínio na extensão da copa das árvores é consistente com as estatísticas da FAO [sigla em inglês para Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] sobre a intensificação da extração de madeira e sobre a crescente extensão e gravidade das perturbações naturais. A diminuição observada na altura da copa das árvores indica uma redução na capacidade de armazenamento de carbono florestal na Europa”.
A área com florestas altas (≥ 15 m de altura) diminuiu 22,5 mil km2 nas últimas duas décadas. Os países nórdicos registraram uma redução de 20% em suas florestas altas, redução ocorrida também no sudeste da Europa. Mesmo quando as florestas altas são substituídas por novas árvores, essas podem levar décadas para amadurecer antes de proporcionar benefícios climáticos e ecossistêmicos equivalentes.[33] Dadas a redução, a intensificação dos extremos climáticos, as secas e o aumento enorme da área e da duração dos incêndios, as florestas europeias reagem, fechando seus estômatos para diminuir a perda de água. Essa defesa as torna menos eficientes na absorção de CO2 em sua fotossíntese, o que constitui uma típica alça de retroalimentação do aquecimento. Na França, as florestas “absorviam mais de 70 milhões de toneladas de dióxido de carbono (MtCO2) em 2008, mas essa quantidade caiu para 27 MtCO2 em 2022, ou seja, uma divisão por três em menos de 15 anos”.[34]
A extensão geográfica dos incêndios florestais na Europa é crescente, como mostra a Tabela 2.
Tabela 2 – Hectares de florestas consumidos por incêndios na União Europeia entre 2018 e 2022
2018: 117.356
2019: 295.835
2020: 339.824
2021: 470.359
2022: 785.000
Fonte: Laurence Coustal, “L’Europe s’embrase de plus en plus”. La Presse, 24/07/2023.
Segundo a FAO,[35] a extensão dos incêndios no verão de 2022 excedeu 800 mil hectares, afetando sobretudo Portugal, Espanha e Romênia. A Figura 4 mostra a extensão da área de incêndios florestais nos países da União Europeia em 2022, comparada com a média dos anos 2006-2021.
Em 2022, a área desses incêndios é maior que o dobro da média da área incendiada no período 2006-2021. Além disso, a estação dos incêndios tem se iniciado mais precocemente.
Ameaças à segurança alimentar
O relatório EUCRA afirma que “a produção agrícola já está sofrendo riscos climáticos substanciais na Europa como um todo”. Entre 1961 e 2018, secas e ondas de calor causaram decréscimos nas colheitas europeias de cereais da ordem de 9% (secas) e 7,3% (ondas de calor). Os produtos agrícolas não cereais diminuíram em 3,8% (secas) e em 3,1% (ondas de calor) nesse período. “A gravidade dos impactos das ondas de calor e da seca na produção agrícola [europeia] aproximadamente triplicou nos últimos 50 anos, passando de perdas de 2,2% (1964-1990) a perdas de 7,3% (1991-2015)”.[36] A seca de 2022 causou uma queda de até 45% nas colheitas em geral e de 30% nas colheitas de trigo e arroz em algumas regiões da Europa ocidental.[37] Mas também as inundações impactam a produtividade agrícola europeia. Minette Batters, presidente da National Farmers Union, no Reino Unido, declarou em 2023:[38]
“As alterações climáticas estão causando estragos na produção alimentar em todo o mundo, com os agricultores do sul da Europa tendo de combater os incêndios, enquanto os agricultores daqui estão desesperados, pois têm de gastar milhares de libras para secar cereais encharcados”.
Na Espanha, a seca causou uma queda de mais de 50% na produção de olivas na estação 2022-2023 (651 mil toneladas) em relação à estação 2021-2022 (1,5 milhão de toneladas).[39] Um estudo do World Wide Fund for Nature (WWF) mostra que, nesse país, 80% do consumo atual de água serve a um modelo de agricultura industrial insustentável. Segundo esse estudo, “esse tipo de irrigação chega a consumir até cem vezes mais água do que necessitam os 3 milhões de habitantes de Madri em um ano”.[40] Sobre 20% do território espanhol, a agricultura já se tornou inviável e, segundo Antonio Turiel, pesquisador do Consejo Superior de Investigaciones Científicas espanhol, “em um cenário de aumento de 3 oC [no aquecimento médio global], a única zona habitável na Espanha seria realmente a costa cantábrica e seus arredores. O resto seria inabitável, com exceção de alguma área dos Pirineus e Pré-Pirineus”.[41]
Os três pilares do negacionismo europeu: colapso ambiental, fascismo e guerra
O negacionismo europeu, um fenômeno em expansão e obviamente muito mais complexo do que pode ser aqui devidamente analisado, é objeto do capítulo de um livro que estou escrevendo. Essa obra deve incluir também uma análise circunstanciada sobre a destruição da natureza e a poluição. Em um próximo artigo, analisarei o negacionismo europeu em relação aos impactos ambientais específicos da guerra da Ucrânia. Aqui, é preciso abreviar e concluir. Para tanto, citemos a avaliação de Leena Ylä-Mononen – diretora da Agência Ambiental Europeia, que publicou o relatório Eucra – sobre o futuro da Europa:[42]
“O calor extremo, as secas, os incêndios florestais e as inundações que sofremos nesses últimos anos na Europa vão se agravar, mesmo em cenários otimistas de aquecimento, e afetarão as condições de vida sobre todo o continente. Esses eventos representam o novo normal. Eles devem também funcionar como um tiro de advertência”.
Esse é o futuro do planeta em geral, mas, repita-se, a Europa está aquecendo duas vezes mais rapidamente que a média global, de modo que esses impactos golpearão o continente antes e mais duramente que alhures. E é claro que “cenários otimistas de aquecimento” pertencem de há muito ao gênero literário de fantasia infanto-juvenil. As palavras de Ylä-Mononen deveriam suscitar pânico. Quando trechos de grandes rios europeus secaram em 2022, confesso que pensei por um momento que havia chegado o momento do pânico desejado em 2019 por Greta Thunberg em Davos: “Quero que entrem em pânico. Quero que sintam o medo que sinto todos os dias. E então quero que ajam. Quero que ajam como se estivessem em crise. Quero que ajam como se nossa casa estivesse em chamas. Porque ela está”.[43]
O pânico não aconteceu, porque a forma primeira do negacionismo europeu é sua ilusão tenaz de não estar na linha de frente do colapso ambiental global. Se, em nossos dias, outros continentes estão sendo mais cruelmente atingidos pelos extremos climáticos, a Europa é mais vulnerável ao aquecimento futuro do que muitos dos países do chamado Sul Global. Parece muito, muito difícil, em todo o caso, imaginá-la se adaptando a um aquecimento médio acima de 3,5 oC a ser alcançado nos próximos 20 anos, mantida a taxa de aquecimento de 0,61 oC por década dos últimos 20 anos. E parece ainda mais difícil supor que essa taxa de aquecimento já superlativa não se acelerará ainda mais nos próximos anos.
O segundo pilar do negacionismo europeu é a repressão e a criminalização dos movimentos ecologistas que tentam desacelerar o colapso em curso, como Soulèvement de la Terre, Extinction Rebellion, Just Stop Oil, Greenpeace, Fridays For Future etc. Na França, os opositores à construção da autoestrada A69 no sudoeste do país e às absurdas megabacias de água criadas por bombeamento de águas subterrâneas têm sido vítimas de terror policial e paramilitar.[44] Segundo um relatório de 2023 do próprio Conselho da Europa:[45]
“Nos últimos meses, manifestantes ambientalistas pacíficos foram alvo de spray de pimenta pela polícia na Áustria, brutalizados e feridos pela polícia de choque na França (…) e sujeitos a prisões e detenções na Finlândia, Holanda e Sérvia. Ativistas que bloquearam uma rua em Munique foram colocados em detenção preventiva por 30 dias, dada a legislação de 2021, e casas de ativistas foram revistadas em toda a Alemanha. Em vários países europeus, os tribunais impuseram-lhes penas de prisão, com e sem liberdade condicional, ou penas de serviço comunitário (…) Na França, Espanha e Reino Unido, jornalistas e trabalhadores dos meios de comunicação foram detidos em serviço, investigados e, em alguns casos, acusados criminalmente”.
Michael Forst, relator da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Defensores do Meio Ambiente sob a Convenção de Aarhus (1998), declarou: “A atual repressão na Europa de ativistas ambientais que recorrem a ações pacíficas de desobediência civil representa uma grande ameaça à democracia e aos direitos humanos”.[46] Há, hoje, uma legislação europeia, equiparando ativistas ecológicos a terroristas, com penas previstas de até dez anos de prisão para manifestações pacíficas.[47] Na Espanha, um relatório de 2022 do Ministério Público listou o movimento Extinction Rebellion como “terrorismo internacional”.[48] A Public Act Order de 2023 no Reino Unido, a lei italiana contra o chamado “ecovandalismo” e a nova legislação alemã que proíbe qualquer forma de protesto pacífico são sintomas do renascente fascismo europeu, cada vez mais normalizado pelos partidos de centro-direita. Nos anos 1920 e 1930, a Europa criou uma dinâmica política globalizada, depois a exportou e agora a compartilha novamente: centro-esquerda e centro-direita fazem a mesma política de regressão social ditada pela oligarquia financeira, e os setores mais vulneráveis da sociedade sucumbem ao apelo supostamente “antissistema” da extrema-direita, enquanto o centro-direita capitula e mimetiza cada vez mais o ideário e a agenda do fascismo. “Os Verdes são nossos inimigos”, exclamam os militantes do partido alemão de matriz neonazista, Alternative für Deutschland (AfD).[49] Na Europa como um todo, os crescentes partidos de extrema-direita estão cada vez mais condicionando a pauta dos partidos de centro-direita.
O terceiro pilar do negacionismo europeu consiste em substituir o combate às crises ambientais pelo combate da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contra o governo de Vladimir Putin, presidente da Rússia (até o último ucraniano…). Sem paz, não há qualquer chance de êxito no combate às ameaças existenciais que o clima futuro reserva a todos e em primeiro lugar aos europeus. Ao contrário, a guerra é a força dominante da política atual tanto na Rússia quanto na Europa. Ambas abundam na lógica pueril das criancinhas briguentas que se acusam reciprocamente diante dos adultos, exclamando: “A culpa é dele. Foi ele quem começou!”. O problema é que essas criancinhas têm arsenais atômicos e estão com o dedo no gatilho. Às reiteradas e crescentes ameaças russas de utilizar essas armas, os países da Otan respondem em uníssono: “É blefe!”. Não apenas querem pagar para ver, mas devolvem a ameaça à Rússia e dobram a aposta, tal como o fez Jean-Yves Le Drian, ministro das Relações Exteriores da França, ao afirmar: “Penso que Vladimir Putin deve também compreender que a aliança atlântica é uma aliança nuclear. Não direi mais nada”.[50] Emmanuel Macron reforça seu ministro: “Sou favorável a abrir esse debate [sobre a defesa europeia], que deve incluir a defesa antimíssil, as armas de longo alcance e a arma nuclear para os que a têm ou que dispõem em seu solo da arma nuclear americana”.[51] Quando a política é substituída por esse nível de estupidez, nada impede que a engrenagem da guerra ganhe uma dinâmica própria. A abolição do tabu nuclear e do medo saudável de uma guerra terminal é o caminho mais rápido para cruzar esse ponto de não retorno. Mas, ainda que uma guerra nuclear seja evitada, a retórica da guerra apenas precipita o mundo, e a Europa antes de todos, no abismo comum. Trata-se de entender que todos os grandes atores em embate na geopolítica global endossam o mesmo paradigma de destruição ambiental em escala planetária, o que inclui, naturalmente, e não por último, sua própria destruição. Dos três pilares do negacionismo europeu, este terceiro, o da guerra e da retórica da guerra, é o mais hipócrita. A OTAN e a Rússia devem muito uma à outra. Graças à Rússia, a OTAN, até há pouco em “morte cerebral” (Emmanuel Macron dixit, em 2019), ganhou alguma sobrevida. E graças à OTAN, a Rússia forjou uma “aliança sem limites” com a China (inimigo estratégico da OTAN), além de favorecer alianças com Irã, Coreia do Norte e países da África, outrora áreas de influência francesa.
Mas a ajuda providencial dos países da OTAN à Rússia vai muito mais longe. Macron tem acenado para a possibilidade de enviar tropas francesas à Ucrânia. Só que, “ao mesmo tempo” (expressão que o imortalizou), silencia sobre o fato de a França ter quase triplicado suas importações de urânio enriquecido russo. Os franceses continuam dependentes da gestão de seu urânio pela estatal russa Rosatom, que controla o transporte de todos os materiais nucleares importados pela França do Cazaquistão e do Uzbequistão.[52] O Reino Unido está “lavando” o petróleo russo, ao importá-lo por meio da Índia, da China e da Turquia na forma de petróleo refinado. “Estima-se que um em cada 20 voos no Reino Unido nos primeiros seis meses de 2023 utilizou combustível originado na Rússia”.[53] Não por outra razão, as importações britânicas de refinados de petróleo da China aumentaram 20 vezes desde 2021. Além disso, para mostrar seu repúdio irredutível à autocracia russa, os países da UE têm aumentado suas importações de petróleo de países tão observantes dos direitos humanos quanto a Líbia, o Qatar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos… Mas no caso do gás, o cenário é ainda pior. Entre janeiro e agosto de 2023, a TotalEnergies comprou cerca de 4,2 milhões de m3 de gás liquefeito da Rússia (LNG).[54] Desde o início da guerra da Ucrânia, os países da UE compraram da Rússia US$ 30 bilhões em LNG. Durante esse período, a Rússia foi o segundo maior fornecedor de LNG à UE, após os Estados Unidos. Em 2021, a UE comprou 39% das exportações russas de LNG; em 2022, 49%, e de janeiro a julho de 2023, 52%.[55] A Figura 5 mostra a evolução dessas importações.
Quem tem mais de 70 anos haverá de lembrar a propaganda da Otan na Guerra Fria dos anos 1960: “as tropas do Pacto de Varsóvia podem chegar a Lisboa em 24 horas”. A Rússia é hoje, de novo, retratada pela Otan e por sua mídia corporativa como o zumbi hollywoodiano que, saído de sua sepultura, invadirá a Europa após devorar a Ucrânia, eis a inevitabilidade da guerra contra o inimigo monstruoso. Mas que interesse econômico ou geopolítico poderia ter a Rússia em invadir os países da UE, clientes vorazes de seu urânio enriquecido e de seus combustíveis fósseis? O único inimigo que já invadiu a Europa, já a está devastando e irá inviabilizá-la como sociedade ao longo deste segundo quarto do século 21 é o conjunto das crises ambientais europeias. Os governantes europeus propõem hoje uma “economia de guerra”, e os orçamentos militares da UE aumentaram 16% em 2023 em relação a 2022, e 62% em relação à média do período 2014-2023, atingindo 588 bilhões de dólares.[56] Enquanto isso, a crise climática explode. Enquanto isso, também, em 2023, “95,3 milhões de pessoas na UE viviam em risco de pobreza e de exclusão social, o equivalente a 21,6% de sua população”, segundo o Eurostat.[57] A “necessidade” da guerra é o novo mote que encobre o acúmulo de regressões fatais na governança ambiental: a nova Política Agrícola Europeia (PAC) abandonou os últimos escrúpulos ambientais; a Noruega outorgou 47 novas licenças para a exploração marítima de petróleo e gás; o Reino Unido adotou uma política de maximização dessa produção no Mar do Norte;[58] a exploração de gás pela Itália no Adriático aumentará a subsidência da área de Polesine, no Vêneto,[59] e os subsídios europeus aos combustíveis fósseis mais que duplicaram em 2022![60] Tais regressões, e elas são quase incontáveis, põem de vez a nu o negacionismo europeu.
Há um século, Romain Rolland, Gramsci, Jeanne Halbwachs, Stephan Zweig, Jean Jaurès e Bertrand Russell opuseram-se à demência da Primeira Guerra Mundial, que engendrou a Segunda. Hoje, Luciano Canfora, Edgar Morin e Clare Daly são autênticas vozes europeias contra o belicismo e o niilismo terminal. A sujeição à ditadura do capital financeiro (a Grécia, arrasada em 2015, está hoje mais pobre do que em 2010 e tem uma dívida ainda mais impagável[61]), a servidão voluntária à “proteção” dos EUA, que lhes dita o sacrifício da Ucrânia no altar de um ódio irracional, e sobretudo hipócrita, à Rússia, e uma cumplicidade abjeta em relação ao genocídio palestino (mais de 38 mil civis mortos, 212 por dia![62]) estão eliminando os últimos resquícios do capital moral do projeto de construção da União Europeia, inicialmente tão generoso e clarividente. E, entretanto, ainda é possível atenuar o colapso climático na Europa, aumentando suas chances de adaptação. Para tanto, é preciso começar pela exigência de paz.