Inundação, desmoronamentos, perda de plantação, pastagem e gado, além de dificuldades de locomoção, são algumas das consequências enfrentadas por quilombolas no Rio Grande do Sul devido às enchentes que castigam o estado desde o início de maio. Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), as 145 comunidades quilombolas do estado, em 70 municípios, sofreram impactos das cheias, afetando 17.552 quilombolas.
“Aqui na comunidade ficamos três dias sem luz e sem água. Tinha que buscar na casa dos vizinhos, que é longe, até a prefeitura mandar água e alimentação. Foi enviada, mas foi pouca. É muita gente precisando de ajuda. Mas na comunidade um ajuda o outro e fomos repartindo o que veio”, relata a quilombola Teresinha Aparecida Lopes Paim, em entrevista ao Brasil de Fato no dia 14 de maio.
Ela é moradora do Quilombo Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca, município gaúcho onde vivem 756 quilombolas, de acordo com o Censo de 2022. Teresinha Lopes também integra a Federação das Comunidades Quilombolas do Rio Grande do Sul (FACQ/RS).
Em oito meses, o estado foi atingido três vezes por eventos climáticos extremos, sendo o de agora, em maio, o mais catastrófico da história. Comunidades quilombolas que ainda se recuperavam das duas primeiras tragédias voltaram a sentir o impacto dos temporais, com prejuízos diretos e indiretos, como no caso do Quilombo Brasa Moura, em Piratini. A cidade possui oito comunidades remanescentes de quilombos.
O quilombo tinha registrado, nos temporais anteriores, perdas de paiol e estufa, com ventos destelhando galpões e casas. Desta vez, apesar de não ter sido atingida pelas enchentes, a comunidade foi impactada pelas cheias de rios próximos, que fez com se perdessem produções de frutas, hortaliças, além de pastagens de animais.
“As hortaliças se devastaram, apodreceram. A batata doce, que está na época de tirar, não estou conseguindo colher. Um dos bovinos que puxava o carro de boi adoeceu. Já perdemos mais de cinco ovinos. Tem animais que caíram no barro. Os animais estão morrendo pela fome. A dificuldade é imensa”, relata a agricultora familiar Eva Lopes Teixeira de Ávila, presidente da comunidade.
A história do quilombo é ancestral. Eva conta que ele é composto por 29 famílias, descendentes da vó Nair, conhecida como parteira na região. “Ela viveu toda a vida dentro do quilombo e morreu aos 94 anos. De lá pra cá, nós, filhos e netos, ficamos dentro daquele espaço. A gente tem uma horta no coletivo, onde produzimos alimentos para dentro do quilombo e, às vezes, quando tem uma produtividade maior, vendemos para outras comunidades”, explica.
A elevação do nível dos rios, no entanto, mudou essa realidade. “Enquanto as cheias permanecem, as pontes transbordam, e há dificuldade de ir à cidade até mesmo para buscar alimento, para exames médicos, etc.", lamenta.
O quilombo foi reconhecido em 2017 pela Fundação Cultural Palmares.
Longo trabalho
“É uma coisa que nunca se viu. A impressão é que os desmoronamentos aconteciam a cada 10 segundos. Não chegava a dar um minuto, caía um morro inteiro. Era árvore, pedra, água, tudo caindo junto. A gente também não tinha noção de onde é que iria desmoronar, onde é que poderia cair, onde não poderia. Está todo mundo bem abalado psicologicamente”, relembra Gisele Aparecida da Silva, bisneta de vovô Teobaldo (ex-escravizado), fundador do Quilombo de São Roque, no município de Arroio do Meio, no distrito de Palmas.
Com uma comunidade formada por cerca de 30 famílias, o quilombo foi reconhecido em 2004 pela Fundação Cultural Palmares, com o auxílio do Instituto de Assessoria às Comunidades Quilombolas Remanescentes (Iacoreq), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Hoje a maioria dos integrantes da comunidade trabalha fora da área. Alguns ainda cultivam a agricultura, como as pessoas mais idosas, que estão aposentadas”, aponta Gisele. As famílias quilombolas dividem 11 hectares, onde plantações para consumo doméstico e residências foram afetadas.
Por mais de 22 dias, a comunidade ficou sem água, sem luz e sem condições de acesso.“A gente estava tendo que atravessar quilômetros pelo mato para conseguir trazer água, mesmo a água que vinha dos voluntários. Alimentação, a gente não estava conseguindo levar para a parte de cima do quilombo. A gente tem uma pessoa idosa também que está com parafusos na perna, que foi removida pelo Exército de helicóptero para levar para o hospital”, relata Gisele.
A situação fez com que a Defesa Civil pedisse a evacuação do quilombo em função dos desmoronamentos, mas algumas famílias continuam sem querer deixar seus bens e animais. “Praticamente todas as famílias saíram do local. Aos poucos vão retornando. Tem umas três ou quatro famílias que optaram por não retornar, que alugaram casas fora da área do quilombo”.
Gisele destaca que a comunidade vai ter um longo trabalho para conseguir manter a área. “Alguns alugaram casas fora daqui, outros estão procurando comprar. Está todo mundo apavorado. Com medo. Vai ser bem difícil manter o nosso território, manter a cultura. Não vou abandonar minha casa e minhas raízes, mas estou procurando alguma coisa fora para não precisar mais passar por esse tipo de coisa. A gente não tem suporte. Somos sempre os últimos a serem lembrados, os últimos a serem atendidos. Está bem difícil a situação”, lamenta a quilombola.
Maior desafio é recomeçar
“Onde nosso povo se localiza hoje foi um lugar de muita luta para conseguir aquele pequeno espaço de terra, onde se passaram gerações e gerações até chegarmos nos dias atuais. Todos nós fomos criados no mesmo pequeno espaço conquistado com muita luta por nossos antepassados”, aponta a vice-presidente do quilombo Vila do Sabugueiro, na cidade de General Câmara, Daiane Andrea dos Santos da Silva.
Certificado pela Fundação Cultural Palmares em maio de 2014, o território tem atualmente 40 famílias remanescentes quilombolas. A área leva o nome de uma árvore chamada Sabugueiro cujo tronco era usado para açoitar os negros, explica Daiane. “Resolvemos colocar o nome em nossa comunidade para assim lembrar o que nossos antepassados passaram. E, de certa forma, homenageá-los por sua luta até aqui. Nossa história é passada oralmente desde nossos anciões até os mais jovens para nunca deixarmos morrer, nem cair em esquecimento as nossas origens”, afirma.
Daiane aponta que o quilombo foi fortemente atingido pela enchente e várias famílias perderam casas, hortas, animais e trabalho. “Foram afetados na área financeira e também na segurança alimentar, pois muitos tiravam o sustento de suas hortinhas. Algumas famílias foram para casas de familiares na cidade e outros ficaram alojados no Colégio Maria José de Freitas, na localidade do Potreiro. Nossa presidente ficou junto na escola ajudando os desalojados, fazendo alimentação, ajeitando lugar para eles dormirem, dando todo suporte necessário naquele momento." Dez casas foram destruídas.
“Ainda temos cinco famílias abrigadas na escola. Os desafios são reestruturar novamente nossas famílias, tentar adquirir uma moradia digna para aqueles que perderam. Esse é nosso maior desafio no momento, uma casinha para aqueles que perderam tudo possam recomeçar", avalia a vice-presidente.
Um filme de terror
No início de maio, quando as águas do Guaíba subiram, soou o alerta, e rapidamente as ruas de Porto Alegre foram inundadas. Um dos bairros mais afetados é o Sarandi, na zona norte da capital gaúcha, onde está localizado o Quilombo dos Machado. Formado por aproximadamente 260 famílias, o quilombo existe há mais de 70 anos. O território, localizado próximo ao aeroporto, se constitui como espaço de acolhimento não apenas para descendentes nascidos no Brasil, mas também para aqueles de outros países.
O território faz parte dos 11 quilombos urbanos da capital gaúcha. Porto Alegre é a cidade com maior presença de quilombolas, com 2,2 mil pessoas.
Com a enchente, relata a moradora do Quilombo dos Machado Hilary Silveira, boa parte das casas ficou embaixo de água. “Alguns não queriam sair, querendo tentar salvar o que não tinha sido perdido ainda. Alguns acabaram não tendo como ficar aqui e tiveram que ir para abrigos. Foi um filme de terror, as pessoas assustadas, vendo tudo que conseguiram com o próprio suor, nadando na água, foi bem aterrorizante."
A quilombola Tamires Antunes acrescenta que, atualmente, há muitas famílias que estão abrigadas na comunidade. “O beco dos haitianos, que é um local mais baixo, foi o mais impactado. Também temos mais duas casas do outro lado que foram atingidas. A gente está dando abrigo para essas famílias que foram atingidas ao redor do quilombo. A moradia é solidária."
O quilombo é um ponto de referência não só para os moradores do local, mas também para outras localidades, servindo de apoio para o recebimento de doações. “Quando as famílias retornarem para as suas casas, vai ser outra etapa. A gente vem pedir ajuda para que não parem as doações, porque a demanda continua dia após dia."
Em uma rua sem saída, na região tida como um dos principais redutos negros de Porto Alegre e berço do carnaval da capital gaúcha, fica o Quilombo Areal da Baronesa, que também atingindo pelas águas da enchente. Localizado na Avenida Luiz Guaranha, entre a Cidade Baixa e o bairro Menino Deus, cerca de 80 famílias vivem ali.
Fabiane Xavier, coordenadora da Associação Areal da Baronesa, conta que as famílias foram atingidas diretamente nas casas, perdendo bens e a própria estrutura dos imóveis. “A maioria ficou abrigada em casas de parentes e amigos, e uma parte da comunidade ficou em abrigo."
De acordo com ela, os prejuízos refletem-se na perda de móveis, eletrodomésticos, documentos, roupas, ou seja, tudo que compõe uma casa. “Neste momento, estamos na fase da limpeza das casas, onde gradualmente os moradores estão voltando aos seus lares, e contabilizando, de fato, os prejuízos. Os desafios são reestruturar a comunidade e buscar a recomposição da casa de cada morador, para que todos possam ter de volta tudo que a água levou."
Mesmo não tendo sido atingido diretamente, o Quilombo da Família Ouro tem prestado solidariedade à comunidade do entorno, na Lomba do Pinheiro. Reportagem do jornalista Alass Derivas, da Deriva Jornalismo, pessoas desabrigadas foram para o abrigo montado na Cooperativa Terra Vista. A ação é puxada pela Mãe Paty de Oxum, suas filhas de santo e familiares do Ylê de Oxum e Ossanha.
“Começamos a cozinhar marmitas emergenciais no terreiro. Mas uma sobrinha pediu abrigo, outro parente também teve que sair de casa e, quando percebemos que não caberia todos desabrigados aqui, lutamos para migrar para o galpão da cooperativa”, explica Mãe Paty.
O abrigo também recebe famílias desalojadas da Ocupação da União por Moradia Popular, que fica ao lado do Camelódromo, região do centro alagada e isolada desde o começo de maio.
Além de acolher 18 famílias, o abrigo serve de suporte para a comunidade do Quilombo da Família Ouro. Foram dias sem água e pessoas impedidas de trabalhar.
Alimentos e água para quilombolas
Desde a semana passada, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) faz a distribuição de alimentos e água para a população quilombola. Até a última sexta-feira (24), 1.970 cestas foram entregues em 14 comunidades.
De acordo com Sebastião Henrique Lima, responsável pelo serviço de regularização de territórios quilombolas do Incra do Rio Grande do Sul, as 147 comunidades quilombolas gaúchas – das quais 112 possuem processo de regularização fundiária aberto junto ao instituto – solicitaram ajuda alimentar. "Algumas também pediram itens de higiene, limpeza e remédios", enumera.
O órgão aponta que 136 comunidades estão localizadas em municípios declarados em estado de calamidade ou de emergência. “Com base nestes dados, a expectativa é direcionar 20 mil cestas aos quilombolas. A distribuição iniciou entregando três unidades por família, mas a dinâmica pode mudar para conseguir levar mantimentos a mais comunidades mais rapidamente", acrescenta Lima.
A primeira comunidade contemplada foi a Família Machado, na região metropolitana. Foram atendidos os territórios Luiz Ireno, Chácara das Rosas, Família Fidélix, Família Lemos, Família de Ouro, Mocambo, Família Flores, Família Silva, Vila Kédi e Alpes. No interior do estado, a ação percorreu as comunidades Unidos do Lajeado (em Lajeado e Cruzeiro do Sul), São Roque, Arroio do Meio e Costa da Lagoa (Capivari do Sul).
O trabalho é feito em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), o Ministério da Igualdade Racial (MIR), o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e o Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (Codene/RS).
Atuação do estado
Em entrevista ao canal Globo News no dia 17 de maio, o governador Eduardo Leite (PSDB), ao ser questionado sobre a ajuda do estado para a comunidade quilombola do bairro Sarandi, em Porto Alegre, disse que o governo não teria estrutura suficiente para "atender em todas as pontas".
“Nós temos 80 mil pessoas em abrigos públicos, mais de meio milhão fora de suas casas, desalojadas ou desabrigadas. Isso traz uma proporção de atendimento de casos que naturalmente o Poder Público não tem estrutura suficiente para atender em todas as pontas”, declarou.
Em resposta, o coordenador da Conaq, Denildo Rodrigues, conhecido como Biko, disse que "ficou muito explícito na fala do governador Eduardo Leite que a prioridade dele não é chegar aos territórios quilombolas, que não dá para chegar na ponta. Porque a prioridade dele é outro setor. Uma pessoa que é eleita pelo povo gaúcho e que tem o dever de zelar pelas vidas de todo o povo gaúcho".
Em nota, o Departamento de Igualdade Étnico-Racial, da Secretaria Estadual de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), justificou que a fala de Leite tratou somente de indicar que os municípios são a esfera responsável pelas ações diretas de assistência. Ao estado caberia dar, a partir da demanda identificada nos territórios pelos municípios, o suporte de ajuda humanitária, como doações.
“Não há, portanto, qualquer conotação racial como aventado pelo coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras, Rurais Quilombolas (Conaq), Denildo Rodrigues”, aponta o texto.
A nota diz ainda que a atuação da Defesa Civil do estado tem sido, justamente, repassar doações e infraestrutura aos municípios, responsáveis pela ajuda e assistência às comunidades indígenas, quilombolas (rural e urbanas), moradores de áreas ribeirinhas e povos de matriz africana.
“O Governo do Estado trabalha no mapeamento das localidades e no direcionamento das doações, tanto do setor público como da sociedade civil, através das Secretarias de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, da Saúde, da Assistência Social, da Educação, do Desenvolvimento Rural e de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade."
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko