Depois do prejuízo educacional provocado pela pandemia de covid-19, milhares de crianças e adolescentes brasileiros enfrentam, em maio de 2024, nova privação do acesso à educação, desta vez, provocada pela tragédia do Rio Grande do Sul, devastado por enchentes sem precedentes.
O desastre climático atingiu mais de 40% das escolas estaduais, e cerca de 350 mil estudantes da educação básica ficaram sem aulas. Milhares de crianças e adolescentes precisaram deixar suas casas para viver em ginásios e outros espaços cedidos para os mais de 70 mil desabrigados do estado.
Além das perdas materiais, a catástrofe provocada pelo aquecimento global deixa um prejuízo imensurável para a saúde mental das vítimas, principalmente crianças e adolescentes.
De acordo com o relatório Crianças, Adolescentes e Mudanças Climáticas no Brasil, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2022, por estarem em uma fase sensível de desenvolvimento e, portanto, serem mais vulneráveis, as crianças e adolescentes são os que mais sofrem com os efeitos da intensificação das mudanças climáticas. E também os que vão conviver por mais tempo com suas consequências.
Por compreenderem a gravidade do cenário e a urgência da adesão de medidas efetivas por parte dos Estados, organizações de defensores dos direitos humanos levarão a pauta, pela primeira vez, ao 167º Período de Sessões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ocorre no Brasil. O tópico será apresentado nas audiências públicas da Corte IDH, que irão acontecer entre 24 e 29 de maio, em Brasília (DF) e Manaus (AM).
Ao lado de outras organizações Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL), que tem status consultivo perante a Organização dos Estados Americanos (OEA), fará uma intervenção sobre o tema, com o objetivo de propor que crianças e adolescentes sejam ouvidos sobre a emergência climática e protegidos das consequências catastróficas do aquecimento global.
“Defendemos o direito de participação das crianças e dos jovens na discussão de políticas de enfrentamento da crise climática. A tragédia do Rio Grande do Sul reforçou como não estamos preparados e precisamos de políticas e protocolos que sejam adotados em situações extremas, principalmente para proteção da população mais vulnerável, que inclui as crianças e adolescentes”, defende a co-diretora do Programa Brasil e Cone Sul do CEJIL, Helena Rocha.
Segundo a advogada e mestre em Direitos Humanos, há duas questões centrais, que são as obrigações dos Estados com relação à emergência climática. “Sabemos, por meio da base científica, que a situação tende a se agravar. Queremos que os Estados respondam o que é preciso mudar nas cidades. Precisamos saber o que será feito pelas autoridades, em todas as esferas, especialmente com relação aos que serão os mais prejudicados pela emergência climática, ou seja, os mais vulneráveis e, consequentemente, os que terão mais direitos violados, o que inclui crianças e adolescentes. Há um dever diferenciado do Estado com relação a essas pessoas”, defende.
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Para a representante do CEJIL, é fundamental debater a participação dos jovens na discussão de políticas de enfrentamento da emergência climática. “Temos visto uma maior consciência das crianças a respeito do tema. É um tema que tem sido trabalhado nas escolas e nas casas, mas eles não são ouvidos efetivamente. Eles precisam ser ouvidos, porque a vida deles será diretamente afetada, de forma mais grave do que a da população adulta. Hoje se reconhece que vários aspectos da vida delas serão impactados. Precisamos de políticas, protocolos, que sejam adotados nessa situação. O impacto é gigantesco para a saúde mental dessas crianças", completa.
Exemplo de ativismo ambiental na juventude
A surfista profissional e ativista climática Catarina Lorenzo, de 17 anos, nutre uma relação direta com o CEJILdesde que foi uma das jovens a assinar, aos 12 anos, junto de outros 15 jovens, uma petição entregue à Organização das Nações Unidas (ONU) contra cinco países infratores dos direito da criança e do adolescente em razão da omissão com relação às mudanças climáticas. (Brasil, Argentina, Alemanha, Turquia e França).
“Eu já senti o mar ficando mais quente e os corais ficando brancos na península de Maraú e também em Ilhéus (BA). Vi casas de amigos e um terreno dos meus avós sendo invadidos pela água. Também me lembro de uma onda de calor muito forte que tivemos em Salvador e que tive que sair de casa e ir para a floresta para me refrescar, porque ficar em casa estava insuportável. Isso me preocupa, porque é só o início do que ainda devemos viver, mas, se continuarmos como estamos, o cenário só tende a piorar”, diz a jovem.
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Para ela, ainda há tempo de a sociedade se unir e trabalhar para mitigar os impactos das mudanças climáticas. “Eu acredito nisso porque sou otimista e porque acredito na humanidade. Já fizemos muitas coisas lindas neste planeta, e acho que essa pode ser mais uma delas. Mas, se as gerações passadas e atuais não acordarem agora, não mudarem o modo de fazer as coisas e de fazer política, e se não aceitarem enxergar o que está diante dos nossos olhos, sem negar o que estamos vivendo, isso não será possível”, pontua.
“A falta de ações climáticas é uma violação dos direitos humanos das crianças e dos jovens. Temos direitos ao ar limpo, à natureza preservada, aos espaços arborizados. E quando somos obrigados a sofrer com as consequências da destruição desses espaços, com a poluição dos rios, dos mares, a sociedade viola esses direitos tão essenciais, e isso é uma enorme violência, que não pode ser aceita. E é importante lembrar que são sempre as pessoas em maior situação de vulnerabilidade que são mais afetadas, porque existe algo chamado ‘racismo ambiental’. Mesmo assim, no fim, seremos todos igualmente afetados”, conclui.
Programação Corte IDH no Brasil
A Corte IDH iniciou a agenda de audiências públicas da opinião consultiva no Brasil nesta sexta-feira, dia 24 de maio, com audiência na sede do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília. Após as audiências na capital federal, a Corte seguirá para Manaus, para a segunda rodada de audiências consultivas nos dias 27, 28 e 29 de maio. Serão ouvidas organizações que apoiam mulheres, povos originários, crianças e adolescentes, dentro da perspectiva ambiental e de justiça às comunidades mais vulneráveis.
*Claudia Guadagnin é jornalista, pós-graduada em Antropologia Cultural e Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano