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Pedagogia de Emergência atende crianças que passaram por situação traumática com tragédia no Rio Grande do Sul

Reinaldo Nascimento, cofundador do projeto, explica o que é a iniciativa e como ela é utilizada no estado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Com milhares de pessoas em abrigos, cuidados com a saúde mental das crianças é uma preocupação - Rafa Neddemeyer / Agência Brasil

A tragédia climática no Rio Grande do Sul por causa das fortes chuvas desde o início do mês já afetou mais de 2 milhões de pessoas. E mais de 637 mil ficaram desalojadas ou desabrigadas.

Além de todos os problemas que paralisaram o estado e que exigem um trabalho de reconstrução, um tratamento especial deve ser dado às crianças. Isso porque elas ficaram expostas a traumas coletivos, como são os desastres e guerras, explica o pedagogo Reinaldo Nascimento.

Cofundador da Associação Pedagogia de Emergência, ele falou sobre o assunto, nesta segunda-feira (27), no jornal Central do Brasil. A chamada pedagogia de emergência utiliza ferramentas da pedagogia Waldorf e recursos terapêuticos ampliados pela antroposofia para atuar no processo de recuperação do trauma.

Integrantes da associação estão no Rio Grande do Sul e Reinaldo explica como é feito esse trabalho, não apenas com crianças que estão nos abrigos, mas também com pais e familiares, além de voluntários que podem seguir ajudando no processo.

Confira abaixo a entrevista do cofundador da Pedagogia de Emergência:

Brasil de Fato - O que é a pedagogia de emergência e como é feita a intervenção com as crianças?

Reinaldo Nascimento - A Pedagogia de Emergência é uma busca para responder o que fazer pedagogicamente com crianças que estão passando por eventos traumáticos. As crianças são muito vulneráveis. Tem um grande autor que estuda muito o trauma chamado Gabor Maté. Ele fala que a criança não fica traumatizada pela ferida em si, ela fica traumatizada por ter que caminhar sozinha com essa própria dor. Então, a pedagogia de emergência tenta explicar, principalmente pros responsáveis dessa criança, que todos os comportamentos que, neste momento, parecem loucos, parecem irreais (por que essa criança se comporta assim? Por que ela não está dormindo? Por que ela não come? Por que ela não pensa direito? Por que ela fica chorando?) na verdade são comportamentos normais. Não é a criança que está ficando louca. Louco é o que está acontecendo com ela nesse momento.

Nós, pedagogos de emergência, oferecemos várias possibilidades artísticas para que ela tenha uma possibilidade de se expressar. Talvez ela não consiga nem explicar o que está acontecendo, porque ela é muito pequena. Mas isso às vezes aparece no desenho, na aula de teatro, num passeio, numa aula de euritmia. A gente usa a pedagogia Waldorf, porque ela é muito artística. Ela traz todos esses elementos que apoia realmente nessa dissolução.

Quando essa tensão é muito forte, o que ajuda muito é ter um espaço bonito, ritmos seguros, saber que quando nós chegamos a gente faz isso, isso, isso, isso e a gente vai embora. E que no outro dia a gente volta. E que depois a gente volta de novo, a gente tem esse processo. E também as relações seguras. As crianças ficam super desconfortáveis – "nossa, eu tive que deixar minha casa, estou num abrigo, eu não conheço ninguém, as pessoas estão cozinhando, todo dia chega uma pessoa nova". E os voluntários são incríveis, são pessoas maravilhosas que estão chegando, mas elas ficam inseguras.

Para a gente também, essa relação é muito importante. E que elas tenham um tempo de digerir o que está acontecendo, de entender todos os processos, para que lá no futuro elas não fiquem doentes por causa desse evento que aconteceu.

Quais são os sinais perceptíveis numa criança que está passando por esse tipo de situação traumática?

De forma geral, a gente entende que após um evento traumático – quando aquilo que aconteceu ameaça a minha existência –, as minhas habilidades, aquilo que eu acreditava ser forte, assim, não é mais suficiente. Então eu sucumbo, eu não sei como fazer. E esse "não saber o que fazer" é que muitas vezes nos paralisa.

O que normalmente acontece? As pupilas se dilatam nesse primeiro momento, o coração acelera, as pernas ficam bambas. São reações bem normais que deveriam passar bem rápido, no máximo dois dias. Se isso não passa, a gente começa a perceber aquilo que nós chamamos de reações pós-traumáticas.

Então, a criança não consegue dormir e quando relaxa um pouquinho, quando dorme um pouquinho, tem pesadelos. Ela não tem fome. Ela tem dor de cabeça, não consegue pensar direito, não consegue sentir direito, não sabe realmente como agir. Ela se sente muito triste, muito sozinha, uma sensação de abandono, começa a ter aquilo que a gente chama de flashbacks. Não é que ela lembra do que aconteceu, ela sente novamente o que aconteceu.

Por exemplo, algumas crianças não querem ir ao banheiro. E a gente fica pensando por que não quer ir ao banheiro. Porque ela não quer dar descarga, porque o barulho da descarga pode trazer esse flashback, da lembrança de uma chuva muito forte, da lembrança de ter que passar por tudo isso de novo. Então essas reações são muito normais.

A criança fez xixi no colchão, o pai fica chateado porque talvez só tenha aquele colchão, mas pra ela significa eu ainda não estou lidando com isso. Os pais podem acolher, podem abraçar, ou podem gritar com ela e provavelmente ela vai fazer mais xixi. Por isso que a gente sempre tenta trabalhar com as crianças, com os adolescentes, com os jovens, com os professores e com os pais, para que todos entendam essas reações. Que ela não consegue estudar mesmo, porque na cabeça dela ela está pensando onde ela vai dormir a noite.


Escola em Porto Alegre (RS) foi uma das primeiras a receber as práticas pedagógicas que também estão em abrigos / Foto: Cainan Silva/Ascom Seduc

Como andam os trabalhos de pedagogia de emergência hoje no Rio Grande do Sul? Quem são os responsáveis pelas ações e como tudo está sendo conduzido?

Já tem uma semana que o time está lá, nós temos uma previsão de ficar pelo menos 30 dias. Estamos trabalhando em vários abrigos, e nesses abrigos nós estamos ficando três dias, porque a demanda é muito [grande]. A gente gostaria de ficar mais tempo em cada abrigo, mas são mais de 700 abrigos. Então a gente tem recebido convites, a gente vai, fica três dias com as mesmas crianças, com os mesmos pais, com os mesmos voluntários, para que eles possam depois continuar o trabalho.

Então hoje a gente tem um programa trabalhando com as crianças, adolescentes, pais, professores e voluntários também, porque a gente percebeu que existe uma quantidade enorme de voluntários super engajados, mas que também estão ficando doentes. Porque trabalhar com crianças traumatizadas e pessoas traumatizadas, é muito cansativo. Com crianças traumatizadas ainda é mais difícil, porque mexe muito com a gente.

E muitas crianças estão nas escolas. Elas ficam assim "nossa, aqui eu estudava, agora eu durmo, agora eu faço isso". Elas ficam confusas. Então a nossa ideia é ficar esses 30 dias, mas a gente acredita que o processo no Rio Grande do Sul possa durar pelo menos um ano. A gente quer pensar na possibilidade de ficar acompanhando todo esse processo até que o estado se recupere totalmente.

Levando em conta que desastres como esse são cada vez mais comuns, você acredita que os governos poderiam se beneficiar com a inclusão da pedagogia de emergência em planos de prevenção e contenção?

Isso é fundamental. Para nós, pedagogos de emergência, é muito claro. Existem coisas que nós pedagogos podemos fazer, que é esse trabalho pedagógico, por exemplo, nas duas primeiras fases do trauma, que nem eu expliquei, até essas reações. Antes que essa tristeza vire depressão. Quando esse medo se transforma em transtorno do pânico, quando essa falta de apetite [se transforma]  numa anorexia, a gente precisa de um terapeuta.

Eu, por exemplo, gosto muito dessa frase assim: "nem um ser humano traumatizado deixa de ser um ser humano, nem uma criança traumatizada deixa de ser humano, nem toda criança traumatizada deixa de ser uma criança, nem deixa de ser o meu aluno". Essas parcerias são fundamentais. Vai acontecer? Vai acontecer. Como preparar as escolas? Eu fico imaginando: nessa escola não dá para ter uma sala para colocar os colchões, deixar sempre guardado? Porque as coisas estão acontecendo.

Existe uma porta de entrada, uma porta de saída para ataques escolares, por exemplo? Num ataque escolar, muitas vezes a gente não sabe retirar as crianças, porque tem muitas grades nas janelas e tudo isso. Eu acho que a gente precisa sentar junto, todas as pessoas, todos os envolvidos, o governo, médicos, terapeutas, arquitetos, os responsáveis pelas construções das escolas, e entender que a maioria das escolas são os abrigos hoje. E muitas delas não estão preparadas.

Você pode ver a entrevista completa, feita pela apresentadora Luana Ibelli, e outros assuntos na edição desta segunda-feira (27) do Central do Brasil, que está disponível no canal do Brasil de Fato no YouTube.

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O Central do Brasil é uma produção do Brasil de Fato. O programa é exibido de segunda a sexta-feira, ao vivo, sempre às 13h, pela Rede TVT e por emissoras parceiras.
 

Edição: Nicolau Soares