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Brasil ainda não possui uma política de saúde mental para grandes desastres, aponta especialista

Catástrofe climática no RS vai gerar aumento de demanda e exigir capilaridade e atendimento em rede

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Estados de estresse pós-traumático e transtornos de adaptação aparecem em 10% a 25% das pessoas que passaram por esses eventos - Nelson Almeida/AFP
O SUS chega onde outros serviços não chegam, mas precisa ser mais equipado

Na extensa lista de desafios que o Rio Grande do Sul e o Brasil vão enfrentar para reconstrução do estado após a tragédia das chuvas, os problemas de saúde mental têm potencial de atingir níveis nunca observados na região.

Dados relativos a outros grandes desastres que ocorreram no Brasil apontam aumento de doenças dessa natureza, diretamente ligadas ao trauma da catástrofe. A condição afeta não só a população, mas também trabalhadores e trabalhadoras que atuam na assistência às comunidades atingidas.

Uma pesquisa realizada em Mariana (MG), três anos após o rompimento da barragem da Vale e da Samarco, apontou que 74% das pessoas entrevistadas tiveram piora nas condições de saúde.

Depois da tragédia, 28,9% da população desenvolveu sintomas de depressão, índice cinco vezes maior do que a média brasileira. O estudo também identificou que 12% dos atingidos e atingidas apresentaram sinais de estresse pós-traumático e 32% de transtorno de ansiedade generalizada.

O risco de suicídio foi identificado em 16,4% dessas pessoas. Também foram observados relatos de insônia, crises de raiva, pesadelos recorrentes, apatia, sintomas somáticos e até casos de delírios e alucinações.

Cenário semelhante foi observado em análises sobre a população atingida pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), empreendimento também de responsabilidade da mineradora Vale.

Um estudo divulgado em 2022 e realizado em parceria entre os Institutos Guaicuy e Olhar demonstrou aumento expressivo na demanda por atendimentos de transtornos mentais.

A análise da situação de dez municípios localizados ao longo da Bacia do Rio Paraopeba identificou prevalência de depressão em 22,5% da população adulta, índice superior aos 10,2% da média nacional. Já o diagnóstico de ansiedade ou problemas do sono foi reportado por 33,4% dos entrevistados com mais de 18 anos de idade.

Em outro exemplo, uma pesquisa da Universidade Federal de Alagoas avalia as consequências do afundamento de bairros inteiros na capital Maceió (AL) sobre a saúde mental da população. O estudo é parte da formação de mestrado da pesquisadora Priscilla Souza dos Santos, que atua na área da enfermagem.

O fenômeno do afundamento é consequência direta da mineração de sal-gema pela empresa Braskem e já causou o deslocamento forçado de mais de 60 mil pessoas. Segundo resultados preliminares da pesquisa, casos de ideação suicida aumentaram de 2,0% para 27,5% após a remoção dos bairros de origem.  

Em conversa com o podcast Repórter SUS a psicóloga e Coordenadora da Comissão Regional Especial de Emergências e Desastres do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Victoria Gutiérrez, afirma que o Sistema Único de Saúde (SUS) tem papel primordial no atendimento psicossocial a essas populações.

“A presença do SUS é imprescindível. Ele é extremamente importante, por causa da capilaridade. Ele chega onde outros serviços não chegam. Mas, mesmo assim, ele precisa ser mais equipado.”

Gutiérrez ressalta, no entanto, que o Brasil está atrasado no planejamento das políticas para esses cenários. Ela alerta que é preciso garantir formação contínua para as equipes de saúde lidarem com vítimas de grandes tragédias.

“O sistema não está preparado. Os profissionais de saúde não estão preparados para trabalhar com esse tipo de demanda. Precisamos começar a ter mais cursos e que as secretarias e os gestores comecem a se interessar por essa educação continuada de suas equipes.”

O que fazer? 

O Guia Prático de Saúde Mental em Situações de Desastres, da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), também aponta que a resposta a questões de saúde mental ocasionadas por grandes calamidades não pode ser apenas imediata.

É preciso buscar ações a longo prazo e ter foco na coletividade. O caminho mais comum, normalmente, é o do atendimento individualizado, mas é necessário ampliar esse olhar.

"Grandes catástrofes têm um impacto na saúde mental a médio e longo prazo; as lesões psicológicas não são curadas tão facilmente quanto as feridas. Portanto, deve-se prever o trabalho de recuperação após a fase crítica.”

O manual também ressalta que é importante garantir formação a equipes de assistência dos primeiros momentos pós-tragédia para que identifiquem precocemente o risco de problemas psicossociais.  

O encaminhamento para especialistas deve ocorrer a partir de sintomas persistentes ou agravados, dificuldades significativas na vida diária e risco de complicações como o suicídio. Todo o atendimento deve ocorrer com respeito e consideração a características culturais, modos e costumes das populações atingidas

Enchentes 

Embora seja a maior tragédia com enchentes em termos de extensão já registrada no Brasil, a situação do Rio Grande do Sul não é incomum para o país. Nas últimas décadas, cheias catastróficas foram registradas em diversos estados, a exemplo de Bahia, Santa Catarina, Maranhão, São Paulo e Rio de Janeiro. 

A região serrana fluminense, inclusive, tem o registro de maior número de mortes em desastres dessa natureza da história do país. Em 2011 mais de 900 pessoas perderam a vida com as fortes chuvas que atingiram cidades como Nova Friburgo, Teresópolis, Sumidouro, São José do Vale do Rio Preto e Petrópolis. 

Uma pesquisa da Fiocruz avaliou 70 estudos do mundo todo para reunir conclusões sobre enchentes e saúde pública. A análise revela que uma parte significativa das pesquisas aponta os impactos sobre a saúde mental e emocional das populações expostas às enchentes.

Foram observados estados de estresse pós-traumático e transtornos de adaptação em 10% a 25% das pessoas que passaram por esses eventos. Os problemas afetam mais intensamente mulheres, famílias de áreas rurais, crianças e população idosa. 

Mais especificamente, os estudos também apontam distúrbios no sono, ansiedade, fobias, pânico, depressão, fadiga, pensamentos suicidas, memórias repetidas sobre o evento, amnésia, dificuldade de concentração, irritabilidade, entre outros. Também foram relatados casos de violência familiar e abuso no consumo de álcool e medicamentos. 

A análise da Fiocruz avaliou ainda que a maior parte das consequências se manifestou durante o período de chuvas e logo após as enchentes. Mas também há relatos que apontam problemas de saúde mental relacionados à quebra da rotina familiar e social e durante o período de reconstrução. Um dado que aponta que a jornada pela saúde mental da população gaúcha será longa.

"O trabalho continua, principalmente depois que  mídia saí. É um trabalho longo, por isso o SUS é tão importante. É ele que vai ficar no território. Por  isso o fortalecimento, o financiamento e a valorização do SUS são imprescindíveis, porque é com ele que a população vai contar", finaliza Victoria Gutiérrez.

*O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). 

Edição: Matheus Alves de Almeida