A tragédia no Rio Grande do Sul com as enchentes e alagamentos atingiu 2,3 milhões de pessoas. A cada 10 gaúchos, dois sofrem com o impacto das chuvas. Milhares tiveram suas casas, móveis, eletrodomésticos, livros e memórias destruídos. Morreram 157 pessoas e 88 ainda estão desaparecidas. As cidades atingidas chegaram a 463 (93% do total). Cerca de 180 mil pontos estão sem energia elétrica.
Essa é a fotografia do desastre vivido pelo povo gaúcho com as fortes chuvas, que tiveram seus primeiros registros no final de maio, com alertas para os riscos da onda de calor no centro do país, que canalizava a umidade para o sul. Uma tragédia dessa magnitude não é apenas um acidente natural, como alguns querem fazer crer, mas consequência de um modelo de desenvolvimento econômico, do processo político-institucional e da forma de exploração dos recursos da natureza.
A razão estrutural é a fase neoliberal do modo de produção capitalista no mundo e no Brasil, que intensifica as mudanças climáticas. Os desdobramentos desse sistema são a destruição da natureza com o consumo acelerado de energia e o avanço do modelo do agronegócio, a especulação imobiliária nas grandes metrópoles, a flexibilização da legislação urbana e ambiental por governos e pelos parlamentos, em todas as esferas.
A questão central da crise climática é a lógica da reprodução ampliada do capital, que precisa se expandir de forma acelerada e contínua para a reprodução do sistema, como tem apontado o professor aposentado do Departamento de História da Unicamp, Luiz Marques, autor do premiado livro Capitalismo e Colapso Ambiental.
As principais razões para as mudanças climáticas — a expansão da queima de combustíveis fósseis para sustentar a matriz energética e o avanço do desmatamento como meio de ampliar as fronteiras agrícolas e a globalização do sistema alimentar — fazem parte dessa dinâmica do capitalismo.
Por isso, o modo de produção capitalista não tem condições de colocar um limite nessas atividades e de efetivamente restringir a acelerada exploração dos recursos naturais e a emissão de um volume estratosférico de gases de efeito estufa jogados na atmosfera, que ameaçam a vida da humanidade.
Destruição da natureza
Os números da expansão do agronegócio no Rio Grande do Sul evidenciam a marcha da destruição que está em curso. Em menos de 40 anos, a agropecuária absorveu 12,41% do território do estado para as suas atividades, de acordo com dados do Mapbiomas.
A área do agronegócio cresceu de 34,8% (1985) para quase metade (47,22%) em 2022 no estado. Uma área de 35 mil km², ocupada anteriormente por campos, banhados e florestas, foi substituída por plantios e pastagens. Somente a área de campos, banhados e áreas rochosas perdeu 30% para, sobretudo, as pastagens e a monocultura de soja e milho.
A monocultura da soja aumentou em cinco vezes no período, passando de 13,6 mil km² em 1985 para 63,5 mil km² em 2022, de acordo com o Mapbiomas, que considera o número subestimado. O governo gaúcho, por sua vez, estima que o plantio de soja em 2023 superou 84 mil km².
Especulação imobiliária
A dinâmica do capital nas cidades — com a expansão dos responsáveis pela especulação imobiliária, como as empresas da construção civil, empresas imobiliárias, investidores e fundos de investimento —, também está na raiz da tragédia.
Metrópoles como Porto Alegre sofrem e sucumbem à pressão do capital imobiliário por uma generalizada desorganização do território, com a desestruturação das políticas de planejamento urbano. De 1960 para cá, a capital gaúcha passou por um processo de crescimento urbano e aumento da densidade populacional. Nesse período, a população da cidade duplicou, passando de 600 mil habitantes para 1,3 milhão.
Os impactos negativos para o conjunto da população e para a infraestrutura urbana se aprofundaram com a aplicação das políticas neoliberais no município, com a flexibilização do planejamento urbano (o chamado Plano Diretor), as restrições fiscais para adequação da infraestrutura e as privatizações de órgãos, estruturas e serviços públicos.
Falência das instituições
Diante da pressão do grande capital, governos, parlamentos e Judiciário, nas diversas esferas, se submeteram e criaram uma “institucionalidade” para viabilizar a expansão do projeto das grandes empresas no campo e nas cidades.
O governo federal tem sustentado o crescimento do agronegócio desde o começo dos anos 2000. O país passou por um processo de desindustrialização, enquanto o modelo de produção agrícola em monocultura com utilização excessiva de agrotóxicos para exportação de commodities se tornou pilar da economia dependente do mercado externo.
O investimento do governo federal no agronegócio subiu de R$ 59 bilhões em 2002/2003 para R$ 256,5 bilhões em 2015/2016, em valores corrigidos pela calculadora do Banco Central. Foi um aumento de 335%. Assim, o Estado brasileiro tem financiado a substituição da vegetação nativa, fundamental para controlar as mudanças de temperatura com a crise climática, pela produção de soja, açúcar, milho, celulose e pastagens para a pecuária.
O Congresso Nacional fez uma ofensiva para flexibilizar a legislação ambiental e limpar o terreno para a expansão do agronegócio. As mudanças no Código Florestal, aprovadas em 2012, por exemplo, desmontaram os marcos regulatórios da preservação da vegetação nativa. Levantamento publicado por O Globo estimou que ao menos 11 leis aprovadas reduziram a proteção ambiental nos últimos anos.
Na esfera estadual, 480 normas do Código Ambiental do Rio Grande do Sul foram alteradas em 2020, no começo da gestão do governador Eduardo Leite. O desmonte das leis estaduais de proteção ambiental foram aprovadas pela Assembleia Legislativa do estado e sancionadas pelo governador.
A irresponsabilidade com a população das autoridades locais, o governador Eduardo Leite (PSDB) e o prefeito Sebastião Melo (PMDB), é evidente pelas suas próprias declarações e pelos estudos de órgãos que administram, que anunciavam a tragédia que destruiu casas, pertences e parte da história de milhares de pessoas.
A tragédia no Rio Grande do Sul tem responsáveis que precisam ser apontados para que sejam enfrentadas as causas da crise climática, que ameaça a população em centenas de cidades e a vida da humanidade. O modelo de produção capitalista, com a necessidade de expandir permanentemente, não tem como se adaptar ao imperativo da mudança da forma de organização e produção da sociedade. Que não seja necessário esperar mais um desastre de grandes dimensões.
* Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares. @igorfelippesan nas redes sociais.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida