A família da artista venezuelana Julieta Hernández vai a Manaus neste domingo (19) para pressionar para que a morte da artista que viajava sozinha pelo Brasil seja classificada como crime de feminicídio. Os assassinos confessos são um casal da cidade de Presidente Figueiredo (AM), que responde por latrocínio.
A irmã de Julieta, Sophia Hernández, articula o movimento jurídico no Brasil. Para ela, é fundamental diferenciar a classificação do crime por questões jurídicas e para explicar a real justificativa do ato.
"O problema que temos agora é que o caso não está sendo considerado como feminicídio. Ela foi violada, torturada e sequer foi enterrada pelo casal. Colocaram ela a 5 metros de onde ela foi morta. Os advogados dizem de forma concreta que essas questões qualificam o crime de feminicídio", disse Sophia Hernández ao Brasil de Fato.
A Justiça brasileira classifica latrocínio como um roubo ou tentativa de roubo em que tem também um resultado de morte, independente da ordem dos fatos. A pena prevista é de 20 a 30 anos de prisão. Já o feminicídio é determinado pelo Código Penal como "o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino" e envolve "violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher". A pena prevista é de 12 a 30 anos de prisão.
Julieta estava viajando de bicicleta do Rio de Janeiro a Puerto Ordaz, na Venezuela, para reencontrar sua mãe depois de 4 anos. A artista vivia uma vida nômade, trabalhando em diferentes cidades com sua bicicleta. Quando chegou na cidade amazonense de Presidente Figueiredo, Julieta parou no Centro Cultural Mestre Gato para dormir. Pagou R$ 10 por uma noite e decidiu ficar mais um dia depois de conhecer e ajudar os 5 filhos do casal. O lugar estava sendo administrado pelo casal havia sete meses e foi lá que – segundo confessaram – eles mataram Julieta.
Ativismo
Sophia Hernández também promove uma articulação com movimentos sociais e congressistas brasileiros para discutir a criação de leis que deem proteção às mulheres ciclo-viajantes.
“A ideia é discutir ferramentas de proteção às mulheres que trabalham com arte e que viajam de bicicleta. Vamos discutir de que forma é possível ter lugares para que elas possam pernoitar com intercâmbio cultural e atividades. Também uma proteção às mulheres cis, não binárias e trans que viajam por todo o Brasil, uma forma de que elas sejam rastreadas estando vinculado a órgãos de segurança”, afirmou.
A política pública ainda está em fase de elaboração e não será pauta dessa viagem. Os debates estão sendo articulados pela deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP). O objetivo é levantar o debate sobre o nomadismo ligado à arte e aos migrantes e criar um aplicativo que ajude no rastreamento dessas pessoas pelos órgãos de segurança.
Para isso, Sophia está encabeçando uma articulação com diversos movimentos. Desde o Instituto Marielle Franco até a União Brasileira de Mulheres, a irmã de Julieta terá uma série de encontros para discutir questões que envolvem mulheres, artistas e migrantes no Brasil. Ela conta com o apoio das vereadoras do Rio de Janeiro Mônica Benício e Luciana Boiteux (ambas do Psol), que concedeu a Medalha Chiquinha Gonzaga à Julieta na Câmara do Rio.
Sophia Hernández também tem a intenção de encontrar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para falar sobre o caso. Ela afirma ter recebido suporte do governo venezuelano para fazer o traslado até Puerto Ordaz e pagar o velório em Manaus. A irmã de Julieta também conversou com a embaixada brasileira na Venezuela, que apoiou o caso. Ela entende que é importante conversar com o presidente para visibilizar a importância da pauta.
Erros da Justiça e da imprensa
Quando Sophia Hernández chegou a Manaus em janeiro, depois do desaparecimento de Julieta, ela se surpreendeu com a forma que a Polícia Civil do Amazonas estava divulgando informações. Muitos jornais locais tinham uma série de informações difusas, antes mesmo de os familiares serem comunicados sobre o andamento do caso.
“Foi uma falta de respeito total da polícia e da imprensa sensacionalista do Brasil. Minha irmã foi encontrada em Presidente Figueiredo. Nós nem tínhamos chegado à cidade e a imprensa já tinha sido convocada. Eles tiveram informações antes da família. A imprensa foi responsável por colocar informações terríveis sobre minha irmã a cada minuto. A imprensa deu muitas informações como se a autópsia já estivesse pronta, e não estava”, disse Sophia Hernández.
A irmã de Julieta viu muitas reportagens serem publicadas, tanto no Brasil quanto fora, sem sequer uma consulta. De acordo com ela, a abordagem dos jornalistas em Manaus foi “a pior possível”.
“Nós íamos para a polícia, tinha jornalistas do lado de fora, no velório também, mas nunca ninguém me chamou para uma entrevista com calma. As perguntas eram muito sensacionalistas: “é verdade que queimaram ela viva?”. Coisas muito terríveis”, afirmou.
De acordo com ela, a família conseguiu ter acesso aos autos em fevereiro por meio de um advogado. Sophia diz que os erros dos jornais começaram com a origem do caso. Diversos veículos disseram que ela pediu para dormir na casa do casal. Mas segundo o que Julieta relatou para a família, ela não dormiu na casa dos autores do crime, mas no centro cultural Mestre Gato, administrado pelo casal e indicado pelos moradores da região.
Ela questiona também a condução das investigações. De acordo com Sophia, o celular de Julieta não foi verificado pela Justiça para ajudar nas investigações. Em entrevista ao canal de YouTube Beto Ribeiro, o delegado do caso, Valdinei Silva, disse que a polícia não periciou o aparelho, que foi devolvido para a família logo no início do inquérito.
A própria indicação de que Julieta teria resistido à uma tentativa de roubo do seu celular não faz sentido para a família de Julieta porque ela já tinha andado por diversos espaços diferentes e lidou com muitas situações: “Ela tinha experiência em viagens e não era apegada a bens materiais. No depoimento, a autora do crime diz que não houve resistência”.
"A sequência de fatos também está errada. Notificamos e denunciamos o desaparecimento da Julieta em 27 de dezembro e a imprensa publicou que ela desapareceu em 4 de janeiro. A polícia começou a buscar em outras áreas e nos davam informações falsas de que ela já havia atravessado a reserva indígena. Nós e os movimentos que conheciam Julieta diziam que não acreditávamos nisso. Ela sempre dizia onde estava. Como é possível que a polícia demorou para encontrá-la em um lugar pequeno como Presidente Figueiredo?", questiona Sophia.
Por todo este contexto, Sophia Hernández também entende que é importante colocar em pauta a xenofobia que envolve o crime e a investigação sobre a morte da artista. Julieta já havia relatado para os familiares episódios de violência que envolveram migrantes em algumas cidades pequenas do Norte do país. Desde ataques e xingamentos, os moradores também negaram café e água para a ciclo-viajante na região de Presidente Figueiredo.
“Temos 100% de certeza de que foi um ato de xenofobia, desde o assassinato até a investigação. Os assassinos sabiam que, apesar de ela falar muito bem português, era venezuelana. Eles achavam que ninguém ia buscá-la, que ela era uma pobre que viajava de bicicleta, tanto que eles ficaram na casa em que estavam. Estamos falando de uma zona que há um grande tráfico de mulheres e muitas delas venezuelanas”, disse.
Sophia também sente que a polícia foi negligente também por ela ser uma venezuelana no Brasil. “Eles queriam acabar com o caso rápido. Os assassinos confessaram e pronto, encerrado. Não foram ouvidas outras testemunhas. Nem o dono do centro cultural foi ouvido. Eles não fizeram questão de dar continuidade para explicar a investigação”, afirmou.
Quem é Julieta
Palhaça, música, nômade, ciclo-viajante, vegana, feminista e veterinária. Como ela mesma dizia, Julieta era a “utopia”. Nascida em 1985 na cidade de Guri, estado Bolívar, a artista se dizia venezuelana-colombiana pela herança de sua mãe, Julia Emma Martínez de Hernández, que nasceu no país vizinho. Grande parte de sua inspiração foi seu pai, Víctor Hernández. Comunista, o pai de Sophia e Julieta desde sempre trouxe a influência musical para casa. A principal delas, o cantor Ali Primera.
Formada em veterinária pela Universidade Central da Venezuela, Julieta fazia tudo com sua bicicleta. Viajou por todo o país e, em 2008, saiu pela pela vez para uma viagem de longo prazo. Foi até a Patagônia argentina e voltou. Mais tarde, em 2016, foi ao Rio de Janeiro para estudar o Teatro do Oprimido, método teatral de Augusto Boal influenciado na Pedagogia do Oprimido do educador Paulo Freire.
Ela, no entanto, não tinha dinheiro para pagar o curso do Centro de Teatro do Oprimido. Foi chamada por um amigo para fazer um processo seletivo na Escola Livre de Palhaços do Rio de Janeiro. Aprovada, começou a estudar e, mais tarde, foi chamada para trabalhar no próprio Centro de Teatro do Oprimido. Foi nos metrôs e trens da capital fluminense onde ela criou seu personagem Miss Jujuba.
Julieta tinha uma visão contundente sobre a importância da união dos povos da América Latina. Durante a pandemia, criou o espetáculo América 2, que tinha como pano de fundo a importância da integração dos países latinoamericanos.
“Ela sempre teve essa percepção de pátria grande de união dos povos, mas também ficava inconformada em como Brasil, que está ao lado da Venezuela, não está conectado como deveria, como está tão isolado de toda a América Latina. Por falar outro idioma e por não se sentir como irmãos. Ela também ficava chocada como as pessoas falavam que ela era estrangeira, ela dizia: ‘nós somos iguais, eu não sou estrangeira’”, conta a irmã.
Sophia também é artista. Formada em cinema na Universidade dos Andes, se mudou para a França para fazer mestrado em Arte em Espaços Públicos. Ela e Julieta cresceram juntas e por isso, mesmo à distância, sempre foram muito próximas. De acordo com ela, as duas compartilhavam trabalhos e faziam sugestões. “Julieta realmente era utopia”, conclui Sophia.
Edição: Thalita Pires