Ao declarar, em entrevista ao Jornal Nacional, que os cidadãos de Porto Alegre tiveram as suas casas alagadas por estarem morando onde “nunca deveriam morar”, o prefeito Sebastião Melo não tentou apenas transferir para as vítimas a responsabilidade da incúria da sua gestão. Ele estava antecipando a estratégia do seu governo para a reconstrução da cidade, algo que ficou claro com a contratação (sem licitação) da empresa Alvarez & Marsal para fazer a gestão dos recursos financeiros, estruturar um plano de recuperação e gerir o comitê de crise, entre outras funções.
Ao contratar uma empresa completamente distante da realidade local, Melo descarta renomadas instituições de pesquisa, como as universidades, o IPH e qualificados técnicos do município e do Estado, que possuem inestimável conhecimento acumulado.
Qual a razão que o faz desconsiderar o pioneirismo da capital gaúcha nas lutas ambientais — iniciadas por Lutzenberger e a Agapan —, assim como a sua tradição em gestão ambiental inovadora, que soube desenvolver um conhecimento fortemente enraizado no território, cuja síntese são o Atlas Ambiental de Porto Alegre e o Orçamento Participativo?
Essa decisão só pode ser explicada pela ação desta empresa na “reconstrução” da cidade de New Orleans, devastada pelo furação Katrina. Uma empresa que se auto define como “comprometida em dizer aos clientes o que é realmente necessário para transformar a mudança num ativo empresarial estratégico, gerir riscos e desbloquear valor em todas as fases do crescimento”, voltada para a lógica corporativa de grandes empresas no setor de gás, mineração, do sistema financeiro, etc., cuja prioridade é a maximização de lucros e a diminuição de gastos.
Foi priorizando a maximização de lucros e a diminuição de gastos que a Alvarez & Marsal atuou em Nova Orleans, estreitamente articulada com as autoridades na cidade e do estado de Louisiana.
Nesse conluio, o desastre climático passou a ser tratado como uma oportunidade de desregulamentar o mercado imobiliário e demolir os conjuntos habitacionais de aluguéis populares, substituindo-os por residências mais rentáveis para as grandes incorporadoras e, consequentemente, afastando os setores menos abastados para longe das zonas de maior interesse do mercado.
Outra iniciativa para “agregar valor” foi priorizar o “setor do turismo, com os planos para a construção de um novo aeroporto e de uma miríade de hotéis de luxo”, conforme escreveu o Le Monde Diplomatique em janeiro de 2019.
Ainda conforme a reportagem do Le Monde, “estendeu-se o tapete vermelho para os empresários, cobrindo-os de benefícios fiscais” e facilidades de investimento. A governadora, Kathleen Blanco, menos de duas semanas da passagem do furacão, sem qualquer pudor, afirmou: “Foi necessária a tempestade do século para criar a oportunidade do século. Não a deixemos passar”, sem conseguir conter a ganância e tratar a crise como oportunidade de fazer negócios, ou negociatas.
Essa conduta foi reverberada pelo ministro do meio ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles, ao defender que fosse aproveitada a atenção de todos com a pandemia do COVID, para “passar a boiada” nas leis e nas regras de preservação ambiental, fazendo da destruição da Amazônia uma oportunidade de negócios. Em toda a parte, os patifes neoliberais agem como patifes.
Curiosamente, o governo de Eduardo Leite, parceiro de Melo na cruzada para derrubar o sistema de proteção contra as cheias e no desmonte das leis ambientais, fez dois vultosos contratos com a mesma Alvarez & Marsal, também sem licitação, para preparar a privatização da CORSAN, que renderam R$ 10,4 milhões à empresa (Sintrajufe-rs).
Assim, é legítimo pensar que a contratação da Alvarez & Marsal por Sebastião Melo — que fez campanha denunciando a falta de manutenção do sistema de proteção contra as cheias da cidade e nenhum reparo fez depois de eleito —, seja parte de uma estratégia de reduzir a cidade ao papel de relés mercadoria e facilitar a sua entrega para as grandes corporações, tal como aconteceu com a CORSAN e com a cidade de Nova Orleans.
O campo democrático deve compreender que a direita negacionista das mudanças climáticas, que nada fez para mitigar as suas graves consequências — como a que o povo gaúcho está sofrendo — já construiu um modelo de ação espelhado na experiência de Nova Orleans: aproveitar as tragédias climáticas para criar condições favoráveis para impor um padrão de gentrificação inimaginável em condições normais.
Precisamos que isso seja entendido, para que a imensa mobilização da sociedade e do governo federal para a recuperação do Rio Grande do Sul não perca de vista que a questão ambiental é “intrinsecamente conflitiva e esses conflitos são expressão de tensões no processo de reprodução dos modelos de desenvolvimento”, como disse Henri Acselrad.
Para o campo democrático, as ações de reconstrução devem ser a afirmação dos princípios éticos, sociopolíticos e ambientais que compreendem as cidades como espaço da diversidade, da fruição da vida, da cultura e do bem-estar e não aceitam a segregação e a padronização dos espaços e territórios.
*Sociólogo, ex-secretário do meio ambiente de Porto Alegre e ex-presidente da Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente - ANAMMA
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida