Revolução Russa

'Paz, Terra e Pão': a volta de Lenin do exílio e as 'Teses de Abril'

Abril de 1917 foi ponto de virada na Revolução Russa, que encaminhou o processo revolucionário em direção ao socialismo

Brasil de Fato | São Petersburgo (Rússia) |
Estátua em homenagem ao líder revolucionário, Vladimir Lenin, em São Petersburgo - Serguei Monin / Brasil de Fato

No dia 3 de abril de 1917, Vladimir Lenin retornou do seu exílio para Petrogrado e, logo ao chegar, o líder da revolução russa elabora as famosas "Teses de Abril", que tinham três pilares centrais para direcionar o processo revolucionário: "Paz, Terra e Pão".

As palavras de ordem apelavam pela saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial, a implementação da reforma agrária e o fim da fome no país. O movimento ficou marcado como importante impulso para derrubar o governo provisório e reunir os trabalhadores para uma revolução socialista.

Após desembarcar na Estação Finlândia em Petrogrado, a atual São Petersburgo, para onde retornava após o seu exílio de nove anos fora da Rússia, Lenin foi recebido com euforia por uma guarda de honra, soldados, operários e membros do Soviete de Petrogrado. O país vivia a atmosfera dos primeiros meses após a Revolução de Fevereiro, que derrubou o czar Nicolau II e instaurou o governo provisório, uma coalizão de socialistas liberais e moderados.

No entanto, o apogeu da Revolução Russa só aconteceria em outubro daquele ano, a partir da vontade popular e da legitimação da autoridade dos bolcheviques. Daí a importância crucial dos acontecimentos de abril de 1917, que representaram um ponto de virada na Revolução Russa.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o historiador Alexander Reznik, pesquisador da Alta Escola Econômica de São Petersburgo, comenta hoje há um certo "consenso entre os historiadores" de que as revoluções de fevereiro e de outubro são estágios de um só processo da grande Revolução Russa. 

"É claro que a revolução de fevereiro foi mais uma revolta clássica, de perfil espontâneo, que tinha um caráter anti-monárquico, no qual o principal protagonismo, nas relações políticas, foi dos socialistas moderados, e não os bolcheviques. Mas, a partir do desenvolvimento do processo revolucionário na Rússia, que estava associado à falta de vontade das elites dominantes de resolver questões fundamentais, como a paz, a questão da terra, e, digamos assim, uma questão política, do constante adiamento da convocação de uma assembleia constituinte, acontece uma gradual radicalização da base social", explica. 

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Logo após o seu retorno à Rússia, Lenin faz o seu primeiro discurso na praça da Estação Finlândia, que hoje recebe o seu nome e onde há uma estátua que marca este momento histórico. As suas primeiras palavras aos trabalhadores e companheiros presentes deram o tom do processo revolucionário que Lenin lideraria a partir dali.

Em uma imagem de arquivo da televisão estatal de Leningrado um operário e membro do Partido Comunista da União Soviética, Vassily Petrovich Vinagradov, que testemunhou a chegada de Lenin a Petrogrado, relembra as palavras do líder revolucionários ao desembarcar na Estação Finlândia. 

"[Vladimir Lenin] disse que nós devemos passar para o próximo estágio da luta pela Rússia socialista. E terminou o seu discurso sob eufóricos aplausos dos camaradas presentes: ‘Viva a revolução socialista em todo o mundo!’", relembra.

A história dá conta que, ao chegar do exílio forçado junto com outros companheiros bolcheviques, Lenin se depara com a realidade de que os seus colegas do partido, incluídos no Conselho de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado (Petrosovet), estavam dispostos a cooperar com o Governo Provisório, liderado por Alexander Kerensky. Na contramão, Lenin acreditava que era necessário passar para a "fase proletária da revolução". 


Monumento em homenagem ao líder revolucionário, Vladimir Lenin, em frente à Estação Finlândia, em São Petersburgo / Serguei Monin / Brasil de Fato

Segundo o líder russo, a Revolução de Fevereiro não deu nada ao povo e o poder estava nas mãos da burguesia. O apelo de Lenin era por uma tomada do poder que visasse o interesse do proletariado e do campesinato, bem como o fim imediato da participação do país na Primeira Guerra Mundial. 

Assim, Lenin apresenta as suas principais ideias em discurso aos trabalhadores e, no dia seguinte, elabora e apresenta o que depois foi chamado de as "Teses de Abril", na qual Lenin encaminha as diretrizes do processo revolucionário russo. Este momento foi determinante para radicalizar o movimento, estabelecer legitimidade dos bolcheviques junto à população e dar impulso para derrubar o governo provisório em direção a uma revolução socialista. 

De acordo com o historiador Reznik, a elaboração das Teses de Abril surge em contexto de demanda por unidade nacional conciliatória, que existia na sociedade após a Revolução de Fevereiro. Essa demanda por “conciliação” vinha dos diferentes partidos políticos que queriam "suavizar todas as divergências de classe". Lenin se coloca radicalmente contra essa conciliação, afirmando “não poderia ter nenhuma concessão ao governo provisório, aos liberais e à burguesia, e os socialistas deveriam fazer a sua escolha em direção à ‘ditadura do proletariado’".

As Teses de Abril tinham como base três pilares: "Paz,Terra e Pão". A "Paz" representava a demanda pela saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial; "Terra", a defesa da realização de uma reforma agrária; e "Pão", a luta por comida para toda a população.

Neste projeto, Lenin apelava pela superação do regime burguês do governo provisório e defendia a entrega do poder para as mãos do proletariado e das camadas mais pobres do campesinato, representados pelos Sovietes, os conselhos populares.

"1) É impossível terminar a guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não violenta sem a derrubada do capital;  2)A transição da primeira fase da revolução, que deu o poder à burguesia devido à insuficiente consciência e organização do proletariado, para a sua segunda fase, que deveria entregar o poder nas mãos do proletariado e das camadas mais pobres da o campesinato", dizem as primeiras disposições das Teses de Abril.

Ainda em abril, é realizada a conferência do Partido Bolchevique de toda a Rússia, que determinou a linha partidária na nova situação histórica, em conformidade com as "Teses". Em particular, a resolução sobre a questão agrária exigiu o confisco imediato das terras dos latifundiários e a sua transferência para os comitês de trabalho camponês e agrícola, bem como a nacionalização de todas as terras do país. 

"Lenin então formula nesse período a célebre palavra de ordem ‘Todo o poder para os sovietes!’. Ou seja, a questão não é que algum dos partidos deveria tomar o poder […] ele dizia que a Rússia passava por um momento histórico, no qual a forma mais democrática de superação do direito burguês, do Estado burguês, surgiu ‘de baixo’, que os sovietes eram um poder popular, porque eram construídos de baixo para cima e seriam construídos pelo princípio de avaliação dos deputados em caráter permanente, ou seja, era uma estrutura orgânica", explica Reznik.

O historiado destaca, que neste momento, a insistência de Lenin é de que os "camponeses aprendam a ser sujeitos do poder político".

"Isso é muito importante. Em todas as suas declarações, toda a sua atividade neste momento, não está voltada para um ditadura ‘de cima’. Ele diz que sem uma organização de auto-gestão ‘de baixo’ nenhuma ditadura se sustenta. Ou seja, a ditadura do proletariado, em sua visão, era uma forma de democracia dos trabalhadores. Ele via dessa forma", acrescenta. 

"Não uma república parlamentar, mas uma de Sovietes de trabalhadores, trabalhadores agrícolas e deputados camponeses em todo o país, de baixo para cima. Eliminação da polícia, do exército, da burocracia", diz outro trecho das teses de Lenin.

As Teses de Abril enfrentaram muita resistência nas fileiras partidárias naquele primeiro momento, mas após intensas discussões sobre o direcionamento dos pontos apresentados, Vladimir Lenin e seus apoiadores viraram a maré a favor dos bolcheviques e as "Teses de Abril" foram apoiadas na conferência dos bolcheviques em toda a cidade de Petrogrado, realizada de 14 a 22 de abril de 1917. Com base nos resultados do relatório de Lenin sobre a conjuntura e com base nas "Teses de Abril", foram elaboradas resoluções sobre a atitude em relação ao Governo Provisório e à guerra. 

As sementes teóricas plantadas em abril de 1917 determinaram o processo revolucionário dos próximos meses na medida em que este processo selou a recusa de concessões ao governo provisório e aos socialistas moderados. E, assim, as "Teses de Abril" representaram não só um caminho teórico para derrubar os interesses do governo provisório, mas determinaram a prática, a aplicação das políticas na Rússia, após o triunfo dos bolcheviques em outubro. 

Os anos seguintes seriam de muita turbulência para a Rússia, mergulhando o país imediatamente em uma guerra civil, provocada por forças contra-revolucionárias apoiadas por potências ocidentais. E, posteriormente, após a morte de Lenin, entra em cena a era Stalin, o período das grandes repressões, a Segunda Guerra Mundial e as suas tragédias, etc. O que é indiscutível é que o mês de abril de 1917 alterou a rota de todo o século 20, na Rússia e no mundo.  

Qual o eco da Revolução na Rússia de hoje?  

O triunfo de Lenin e dos bolcheviques na Revolução de Outubro determinou o rumo da história, mas o eco da revolução e da importância de Lenin na Rússia de hoje é bastante silenciado na política. Segundo o historiador Alexander Reznik, as elites políticas russas dão à história um "caráter puramente instrumental".

"A história, para as nossas elites, carrega um caráter puramente instrumental, usando-a exclusivamente para legitimar as suas ações. O conteúdo da história não interessa nem um pouco", explica. 

De acordo com ele, o processo revolucionário que aconteceu em 1917 é marginalizado em detrimento da ideia de força do Estado, mais representada pelo período de Stalin, e os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. "Porque há um tema sagrado, que é a Grande Guerra Patriótica (como é chamada a 2ª Guerra Mundial na Rússia), esse é o nosso tema", afirma Reznik, comentando o processo de silenciamento da Revolução de Outubro.

"Na Rússia acabou se desenvolvendo um certo consenso ‘anti-revolucionário’. O que diz a sociologia é que praticamente todos os [atuais] partidos políticos dominantes falam sobre os danos da revolução. Do ponto de vista das nossas elites, a Rússia deveria ter ficado no lugar dos vencedores, entre os países imperialistas, que teriam recebido suas vantagens desta guerra [Primeira Guerra Mundial]. E do ponto de vista das elites dominantes, o imperialismo não é algo ruim, é apenas um estado natural", afirma o pesquisador. 

Ele destaca ainda que, naquele momento, nos meses que antecederam a Revolução de Outubro, "as possibilidades democráticas que surgiram entre as pessoas de frente foram sem precedentes”. Assim, segundo ele, a ideia de que em algum momento na história uma massa popular determinou o seu próprio destino, que na Rússia houve um dos mais democráticos sistemas em determinado período de tempo, “isso é muito impopular". "Porque a posição do nosso governo (de hoje) é de que nós não precisamos de uma política não controlada", afirma. 

O pesquisador também observa que o momento posterior à revolução bolchevique, marcado pela Guerra Civil, levou ao fato de que o componente democrático do período revolucionário "foi cada vez mais se reduzindo".

"Em uma guerra civil que veio na esteira da partir da Primeira Guerra Mundial, quando as pessoas já se cansaram de tanto viver em condições tão difíceis, é muito difícil o apoio de ideias democráticas", completa.

Edição: Rodrigo Durão Coelho