O cinema, como espaço, é o lugar onde estamos juntos para assistir a um filme. Ou não necessariamente um filme, mas, para compartilhar as emoções, ainda que seja por duas horas. É esse aspecto que faz ter sentido a proposta de exibições a céu aberto no fluxo da Cracolândia.
Algumas vezes é preciso pedir licença para conseguir passar pela multidão com o carrinho de supermercado que usamos para levar os equipamentos. O local da projeção quase nunca pode ser demarcado sem negociação.
Levamos projetor e caixa de som. Uma bateria de moto adaptada evita a necessidade de fazer uma gambiarra para conseguir energia. A pipoca é ótima, a água fresca. Nem tudo isso, mesmo em uma noite quente e sem chuva, define o sucesso da sessão.
O filme em si também só é essencial à medida que fortalece a conexão. Nós só temos certeza que a exibição deu certo quando o público cuida do espaço da tela. Quando todo mundo se incomoda com os desavisados que atravessam a luz do projetor. Nesse momento temos a nossa mágica do cinema.
A principal diferença entre uma sala comercial, é que a conversa é bem-vinda. Pode ter a ver com a projeção ou não. Pode ser antes, depois ou durante, de canto, sem entrar na frente de ninguém.
Essa é a essência da construção do coletivo "A Craco Resiste". É a partir desses vínculos que desenvolvemos nossas estratégias de atuação, onde o se misturar tem sentido prático. Mesmo que a mistura contenha abismos, incompreensões, temores e a infinidade de diferenças entre um ser humano e outro.
Estar ali, seja numa sessão de cinema, ou numa contrinha de futebol, é permitir que a vida se desenrole. Tipo quando a caixa da padaria não é apenas a funcionária que faz a cobrança, mas a Joana, casada com Roberval, e que anda de cabeça quente porque não descobre a causa da alergia de pele de sua filha, Marina. E que hoje teve motivo pra puxar papo, porque o Santos tá na final do Paulistão.
Quero dizer, quando "estar" despretensiosamente presente se transforma em diálogo, olhar, respeito, devoção. Chamamos isso de redução de danos. Materializar o poder de um vínculo de afeto e onde ele pode parar, não é coisa simples. Mas a gente confia.
E tem uns que chamam isso de máfia da miséria. Máfia: "métodos inescrupulosos para fazer prevalecer seus interesses ou para controlar uma atividade".
Nós não temos controle de nada. Não temos interesse em votos ou verbas públicas. Queremos construir em conjunto possibilidades de resistência & existência. Enfrentar a colonização como projeto que distorce as percepções intelectuais e emocionais.
Na formação da mente colonizada há a negação da diversidade, da diferença e do conflito. Essa é a construção da opressão, que opera a partir da violência e exclusão.
Fora da distopia do projeto civilizatório da colonização, dos corpos que encarnam o poder colonial, estamos à mercê. Somos o lado fraco da corda. É pra cima da gente que a coisa desanda, que a conversa muda de tom.
Mas a Luz tá ali, brilhando. Tremulante, em movimento. A luz vem dali, da entrega, no quentinho do escuro. Tal como Rita disse, "no escurinho do cinema", útero materno de sonhos e imagens em movimento. "Na criação somos todos iguais", diria dona Nise.
Em criar, em desenvolver, em pulso - quadro a quadro - movimentamos o estático, faiscando, som reverberando em harmônicos e harmonias, no simples ato do assistir e ser assistido. Forma-se o sentido. Segue o fluxo, em Cine qua non, que ça.
A Craco Resiste.
* Aline Yuri Hasegawa é mãe, pesquisadora e produtora.
* Daniel Mello é militante d’A Craco Resiste e compõe a organização da Marcha da Maconha. É autor do livro Gargalhando Vitória - poemas da cracolândia (Editora Elefante)
* Luca Meola - fotógrafo documental, formado em Sociologia. O foco do seu trabalho são corpos e territórios marginalizados. É colaborador da comunidade The Everyday Projects. Desde 2018 acompanha o cotidiano da Cracolândia de São Paulo
* Ricardo Paes Carvalho - educador social de rua e jornalista. Militante d’A Craco Resiste.
* Verena Carneiro: jornalista, pós-graduada em jornalismo literário. Redutora de danos pela Craco Resiste e integrante dos times mistos de várzea de São Paulo União Lapa e Rosanegra ADF -, ambos com atuação política e social por meio do futebol.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida