“A ditadura construiu isso”, disse o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador que se dedica a entender o surgimento e o crescimento das milícias brasileiras, especialmente as que atuam na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, há mais de 30 anos.
Esses grupos armados e poderosos foram responsáveis pela morte da vereadora Marielle Franco. Segundo o professor José Cláudio, autor do livro Dos Barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense, as milícias nasceram a partir dos grupos de extermínio da ditadura militar, criados, em um primeiro momento, para perseguir políticos que se opunham ao regime. Mas logo os militares se deram conta do potencial de lucro e de poder que conquistariam controlando os territórios.
O sociólogo recebeu os jornalistas Chico Alves e Heloisa Villela para conversar sobre a história e o domínio das milícias no Rio de Janeiro. Confira:
ICL Notícias: As milícias no Rio estão no centro da disputa fundiária e essa expansão nos territórios tem legitimação política e jurídica há anos.
José Cláudio Souza Alves: Esse é um projeto que deu certo, funciona, é secular desde que o Brasil é Brasil. Você montou essa estrutura de poder, só que ela tem agora características nossas, próprias. Acho que a partir do golpe de 64, ou seja, há 60 anos, se montou essa estrutura e ela vem evoluindo, ela vem avançando. O caso Marielle é uma espécie de umbral. Ele abre uma porta, uma janela, e te diz: olha esse negócio funciona, esse negócio dá certo. Aí não deu certo para os Brazão, o Rivaldo, porque houve uma determinação política que conseguiu revelar a estrutura toda.
Mas pela dimensão que é no Brasil como um todo, e eu estudo a Baixada, o Rio de Janeiro, mas com certeza tenho muitas informações de outros estados e outros conflitos que se desenrolam da mesma forma, essa estrutura é dominante no Brasil. Ela é a grande estrutura. Você tem, no caso do Brasil, terras para um monte de serviços urbanos. Você vai fazer uma urbanização miliciana. O tráfico é uma estrutura mais frágil. Normalmente são mortos e presos e vão se articular com a estrutura miliciana. São grupos armados que ficam por muito tempo no território, que vão gerar estruturas de poder muito eficientes, totalitárias, e você não consegue escapar dessa estrutura. Dá grana pra muita gente. E se fosse só grana… É grana e voto.
Esse é um ano eleitoral. Pra tocar numa estrutura dessa em um ano eleitoral. É fácil você pegar um caso emblemático como Marielle (fácil em termos) e trazê-lo à luz, identificar os culpados e condená-los. Mas quando vai em uma dimensão tão ampla como essa, com várias gerações, com voto, com grana, uma estrutura de poder consolidada há 60 anos, você está em outro cenário. Você tem disposição de fato para enfrentar essa estrutura? Você vai sobreviver? Vai enfrentar essa estrutura de poder que tem muitos votos e vai passar pela assembleia legislativa do estado, governo do estado, prefeituras, vai passar por câmara de vereadores…
Em 64 a gente não tinha fuzis nos morros. Em 85, quando termina a ditadura, a gente tem fuzil, várias armas vazadas dos quartéis. Isso, pra mim, é muito importante frisar. Como a ditadura propiciou esse crescimento?
Eu vou parafrasear o Darcy Ribeiro que dizia, sobre a educação, que não existia crise na educação e sim um projeto que deu certo. Não existe crise na segurança pública. Existe uma estrutura que deu certo. Ela funciona. E ela funciona porque dá muito dinheiro e muito poder a muita gente. A ditadura soube disso. A ditadura construiu isso. Primeiramente em uma tentativa de pegar os grupos políticos que eram inimigos, a contra insurgência. Esse era o projeto inicial.
Então o que eu estudo aqui na Baixada Fluminense são os grupos de extermínio que começam a se desenvolver após 1967, quando dão as características da PM como auxiliar, repressiva, cooperando com o regime militar, daí eles dão o salto. Eles deixaram de visar somente uma estrutura política de oposição e resolveram controlar territórios mesmo, em uma estratégia de eliminação sumária. Os militares.
Então eram grupos de extermínio que no princípio tinham um viés político?
Inicialmente houve um viés político de controle dessa oposição que foi a partir de cassações de prefeitos, vereadores, todos que tinham vínculos com partidos considerados de oposição, e isso naquele momento que ainda ia criar o bipartidarismo.
Depois que criou o bipartidarismo, todos os envolvidos com o MDB também passaram a sofrer cassações, perseguições políticas… Eles controlaram isso durante um tempo, com o Castelo Branco. Depois eles se deram conta de que isso era muito limitado e queriam muito mais eficiência. Prender e torturar guerrilheiros e grupos clandestinos armados ou não também era uma coisa limitada. Não era suficiente para controlar o que eles queriam controlar.
No caso da Baixada, e isso vale para o Brasil como um todo, os grupos de extermínio começam a operar o miúdo. As situações vulneráveis de segurança pública que o Brasil era cheio de problemas, como hoje. Não há emprego, não há renda, não há sobrevivência e o mundo do crime é uma alternativa. Sempre foi. Esse universo virou o grande universo dos grupos de extermínio. Esses caras começam a angariar poder. Mas muito poder. Como funciona o esquema? A estrutura policial, o aparelho policial, é que vai matar, os empresários e comerciantes que depositaram apoio na ditadura vão financiar esse controle, essa matança, e para fechar toda essa estrutura, o regime autoritário militar dava suporte político.
Vários casos que foram identificados na Baixada de policiais que mataram, que executaram pessoas, que chegaram inclusive a tribunal do júri, os militares iam em peso para os tribunais desses julgamentos para dar apoio explícito aos policiais.
Então estamos vendo uma linha do tempo com o mesmo pensamento que se reproduziu durante o governo Bolsonaro de “bandido bom é bandido morto”, porém esse sistema vem operando desde então. Ele só foi enaltecido no governo Bolsonaro.
Potencializou, mas ele sempre existiu. E eu não vejo que agora ele esteja refluindo, mesmo com o governo Lula. Não vejo sinal de que vá refluir, não vejo vontade política. Uma coisa é você identificar os assassinos da morte de uma vereadora e aí tem que dar os parabéns, tem que comemorar. Outra coisa é perceber as dimensões todas que eu vejo o tempo todo aqui na Baixada e no Brasil como um todo.
As eleições vão chegar daqui a pouco e essa estrutura toda funciona para a eleição. Você vai ganhar muito voto, muito dinheiro, você tem controle territorial dessas áreas. Você está disposto a confrontar essa estrutura? Eu não vejo isso. Porque se quer fazer um consenso, um acordo. Porque se faz com os militares que são os autores dessa estrutura toda porque é deles que vem.
“Ah, estão enfrentando o 8 de janeiro”. Beleza, vai prender meia dúzia de generais. Mas você continua tutelado pelos militares, se subordinando aos interesses deles. Você vai continuar nesse projeto? Não vai confrontar? Para confrontar milícia no Rio, Rota em São Paulo, você vai ter que bater de frente com governadores, com deputados estaduais, porque eles estão envolvidos nessa estrutura, eles têm representantes… Antigamente eu só via matadores vereadores aqui na Baixada. No máximo chegavam a prefeito. Hoje esses caras estão em todos os lugares. São deputados federais, são deputados estaduais. É uma estrutura que tem crescido, que tem se desenvolvido.
Agora a insegurança miliciana se espalhou pela Baixada Fluminense. É inimaginável para quem não é do Rio a diferença que faz juntar a Zona Oeste do Rio, que já é grande, com a Baixada. É um negócio gigantesco! E nos últimos 10 anos me parece que avançou muito. Pode-se dizer que é fenômeno recente?
Nem é tão recente. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] faz esse processo de migração, e quando vão para a Baixada, as milícias vão para o mesmo movimento. Eu costumo chamar o Comando Vermelho de um bioindicador. Crime-indicador. Onde o Comando Vermelho se estabelece a milícia vai estabelecer disputa ali também, porque sabe que tem mercado, tem grana, tem tráfico, tem interesses ali.
O Terceiro Comando Puro é menor, vai fazer parceria em grande parte com a milícia. Hoje mudou um pouco isso porque a milícia da Zona Oeste tem feito parcerias com o Comando Vermelho em comunidades mais na Zona Oeste do Rio e não na Baixada. Isso está se reconfigurando. Mas essa estratégia dos grupos armados de disputar territórios e avançar nesses territórios já ocorre a algum tempo. E a chacina lá atrás, da Baixada, 29 mortos, lá em 2005, ainda não era esse momento. Era uma disputa de grupos de extermínio. Mas quando você vai para o início dos anos 2000, principalmente depois da UPP, aí você tem exatamente o que você falou. A milícia se espalhou, ela cresce e vai disputando com o tráfico e esses grupos começam a estabelecer relações entre si e com a estrutura policial. Isso não está isolado.
A estrutura de segurança pública é toda permeada por esse interesse de grupos armados. O estado vai negociar o monopólio da violência e a sua soberania a partir desses grupos armados e com isso se constrói o que muitos vão chamar de governança criminal. Você começa a estabelecer um conjunto de ações que vão controlar aquelas populações a partir do crime. Se um grupo armado fica 30 anos em um determinado lugar, como é o caso em vários lugares aqui da Baixada, esquece. São eles que vão controlar tudo ali. Vão dar status, poder, resolução de conflitos, vão dar grana, vão dar voto. Eles passam a gerenciar aquele território. Os Brazão são isso.
A Marielle morre porque ela e as lideranças do PSOL não foram capazes de perceber a evolução dos Brazão. O que eles atingiram na CPI das milícias em 2008, 10 anos antes da morte de Marielle, não eram os Brazão que 10 anos depois mandaram assassinar ela. Por quê? Houve uma evolução dessa estrutura toda. Eles tinham muito mais poder, muito mais dinheiro. Dominavam territórios com vários mecanismos de ganhos e muito mais apoio. Eles cresceram. Começaram a comprar estrutura policial, estão dentro da estrutura política, foram crescendo. Eles talvez não esperassem que houvesse uma repercussão e uma mudança na estrutura política, como houve, e acabou atingindo eles. Mas a Marielle e o PSOL não foram capazes de perceber o risco que estavam correndo ao se confrontar com essa estrutura que é muito mais poderosa. Se não puder controlar, eles matam.
Foi quase um enfrentamento ingênuo?
Eu estava na Câmara dos Vereadores no dia do enterro. Eu fui pra lá. E vi vários conhecidos. E perguntava a vários conhecidos: ninguém foi capaz de perceber isso? E todos eles disseram que não. Não havia nenhuma denúncia… Mas eles não eram uns carinhas quaisquer. Havia um ambiente ali que acho que ela não teve noção do que estava enfrentando.
Levando em conta a evolução desses grupos de extermínio, desde a ditadura militar, olhando pra frente, teremos o que, a situação de El Salvador? Das Filipinas?
Talvez o México… Eu acho que temos nosso próprio modelo. Ninguém vai nos repetir e não vamos copiar ninguém. O pessoal fala em máfia. Eu digo não. Máfia é família, é pré-estado italiano. Tem outra estrutura. Uma estrutura familiar. Secular. Não dá para comparar milícia com máfia. Mas é grupo de extermínio e milícia com estrutura armada dentro do estado que passa a estabelecer controle territorial em parceria com outros grupos armados. Esse é um modelo muito nosso. Talvez possamos nos equiparar em número de mortos com alguns países. Mas no México a população se organizou para se proteger. Aqui não, as populações atingidas são destruídas. Não tem suporte, apoio, não se organizam, não temos a construção social e cultural do México.
O que se diz é que os Brazão não têm uma milícia. Estão associados. É isso? Eles não são líderes? Essa investigação teria chegado aos mandantes do crime e aí se diz que é a milícia. Se são os Brazão, então são milicianos…
Eles se servem dos serviços dos milicianos. Os bicheiros do Rio de Janeiro todos se servem dos serviços de milicianos e policiais militares, ou grupos de extermínio em uma fase anterior.
Eles se servem da estrutura da milícia e dão legitimidade política e jurídica para essas violências. É isso?
A gente está focado no crime, no assassinato de Marielle, mas a coisa mais dura e mais difícil é o que não é crime e não é Marielle. As dimensões não criminais disso tudo. Há estruturas que passam por legalizações dentro da estrutura das prefeituras, do governo de estado, prestadores de serviços, organizações sociais, na área da saúde… Por exemplo: você quer fazer uma obra em uma prefeitura. Você abre licitação como a legislação exige. Aí tem lá o primeiro, o segundo, o terceiro colocado. O primeiro vai tentar assumir, mas o quarto vai e diz que ele é quem manda naquela região. O cara tenta ir pra lá fazer a obra e percebe que não vai conseguir. É ameaçado, não tem gente pra trabalhar pra ele, sofre acidentes que não são acidentes… O segundo também etc. e o quarto vai assumir. Isso já me foi relatado várias vezes aqui na Baixada. É uma estratégia “legal”, aparentemente legal. Ninguém vai denunciar.