A ideia da lagarta que passa ao casulo e dele se liberta para ganhar asas e voar orienta o Projeto Borboleta, concebido há 13 anos pela juíza Madgéli Frantz Machado e coordenado pela psicóloga Ivete Vargas na capital gaúcha.
Em 2021, a proposta, criada para proteger e apoiar as mulheres vítimas de violência doméstica, levou o primeiro prêmio para magistrados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desenvolvido em parceria com escolas, universidades, serviços de saúde e assistência social, voluntários, Senac, além de várias ONGs, o projeto trabalha com as vítimas, seus familiares e também com os agressores.
Em 2023 o Judiciário gaúcho emitiu 175.053 ordens judiciais de medidas protetivas, uma média de 479 por dia, um aumento de 28% em relação a 2022, quando houve 136.400 medidas. Entre janeiro e fevereiro de 2024 já foram 37.235. Os dados são da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Estado.
A juíza é também a titular do 1° Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de Porto Alegre, surgido em 2008. Neste mês de março de luta das mulheres, o Brasil de Fato RS conversou com Madgéli sobre os progressos do período.
Brasil de Fato RS - A Lei Maria da Penha dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. No Rio Grande do Sul, o primeiro juizado foi instalado em abril de 2008. Quais os avanços nesses anos de atuação?
Madgéli Machado - Desde 2006, logo após a criação da Lei Maria da Penha, o Tribunal de Justiça/RS (TJRS) criou projeto para atender, especificamente, os processos de violência doméstica, até que fosse possível a criação de unidade especializada, dependente de processo legislativo. E, em 2008, foi criado o 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em Porto Alegre, sendo a única unidade especializada na matéria no estado na época. A partir de 2014, Porto Alegre passou a contar com mais uma unidade especializada, o 2º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Cada um dos juizados tem dois (duas) magistrados(as), com competências diferentes: medidas protetivas de urgência e processos criminais, de forma a dar agilidade tanto ao sistema protetivo como ao processo criminal de violência doméstica.
Para além dos processos, desde 2011 os juizados contam com o apoio do Projeto Borboleta (por mim idealizado, e que tem como coordenadoras eu e a psicóloga Ivete Vargas), que desenvolve ações multidisciplinares em favor dos envolvidos em violência doméstica: das vítimas, seus dependentes e dos ofensores. São ações realizadas em parceria com a rede (ONGs, escolas, universidades, profissionais voluntários, serviços de saúde e assistência social, Senac, etc.), visando atender às disposições da Lei Maria da Penha, na busca da proteção integral da mulher e, de outra parte, da reeducação dos autores das violências.
Além disso, o Borboleta desenvolve ações nas escolas e na comunidade visando a prevenção da violência, através dos projetos Maria na Escola e Maria na Comunidade - Conversando sobre a Lei Maria da Penha.
A cada ano que passa vamos incrementando as parcerias, o que demonstra que, ao longo da nossa caminhada, a comunidade vem demonstrando sensibilidade para a temática e compromisso com o enfrentamento à violência doméstica contra a mulher.
O apoio do TJRS e da direção do Foro têm sido fundamentais para o avanço das ações que desenvolvemos, desde a ampliação dos espaços físicos, possibilitando a criação de layout humanizado, com salas privativas/especiais para as diversas atividades (para além das audiências), ao incentivo às ações desenvolvidas.
Algum caso, em especial, foi mais marcante?
Atuo no Juizado de Violência Doméstica desde abril de 2009. Muitos foram os casos marcantes. Cada caso tem as suas peculiaridades e deixa a sua marca em quem se aproxima dele. Justamente por isso, e vendo a necessidade de uma efetiva transformação na vida dessas pessoas, que chegam ao Poder Judiciário, é que foi criado o Projeto Borboleta. A partir dele, muitas são as histórias de transformação: mulheres que tiveram a oportunidade de retomar os estudos, de se qualificarem e ingressarem no mercado de trabalho, com geração de renda.
O restabelecimento da auto-estima e a assunção do protagonismo das suas vidas, como tem acontecido com a inserção de mulheres acolhidas pelo Borboleta em cursos profissionalizantes do Senac, curso técnico de enfermagem e curso de cuidador de idosos oferecidos pela Escola Profissional do Instituto de Cardiologia e no Curso de Direito, através de vaga oferecida pela FMP - Fundação Escola Superior do Ministério Público/RS, todos com bolsa integral.
O que a violência doméstica revela sobre os agressores e as vítimas?
Que a violência doméstica contra a mulher está disseminada na nossa sociedade. Não escolhe endereço, raça, cor, classe social, escolaridade, profissão, popularidade.
Entretanto, os impactos dessa violência, especialmente no que diz respeito às vítimas, são diferentes considerando os diversos marcadores sociais e as interseccionalidades, como gênero, raça e classe.
Como as leis como a Maria da Penha, a Lei do feminicídio e a Lei 14.188/21, que incluiu no Código Penal, no artigo 147-B, o crime de violência psicológica contra a mulher, impactam no combate da violência contra as mulheres?
A inserção no sistema penal de novos crimes atua, em primeiro lugar, como forma de chamar a atenção da sociedade de que essas condutas constituem crime e, por isso, serão punidas. É uma forma de prevenção da violência. E, em segundo lugar, apresenta a resposta punitiva para quem pratica as condutas criminosas. E, dessa forma, também impacta na prevenção à violência contra as mulheres.
Como avalia a violência de gênero no estado? Por que não conseguimos conter os índices de violência?
Acredito que temos que investir efetivamente na educação, pois esta é uma aliada potente na desconstrução do machismo, que produz a violência de gênero contra as meninas e mulheres.
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Além disso, importante pensar na acessibilidade aos serviços oferecidos. Muitas mulheres em situação de violência doméstica sequer têm à disposição passagem de ônibus para se deslocarem até a delegacia de polícia para registrar ocorrência policial e pedir medidas protetivas de urgência. E até mesmo para comparecer nas audiências.
Também temos que avançar na implementação de serviços e equipamentos especializados, pois isso faz com que as mulheres e meninas que ainda não acessaram os serviços, sintam-se em condições de fazê-lo.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko