A cena dura menos de um minuto. Conduzindo uma motocicleta, um jovem sem camisa nem capacete escapa desesperado pelas vielas de um bairro da periferia de São Paulo. Só é possível vê-lo de costas, pela câmera acoplada no peito do policial militar que, também de moto, o persegue aos gritos: "Para o barato aí!”.
Mas ele prossegue até perder o controle do veículo em uma bifurcação. Antes que possa fugir, correndo a pé, ele é contido pelas pernas de outro PM. A reação do entorno é imediata – e é possível ouvir os gritos da população, distante, pedindo para que os policiais não o matem. Então, um homem de meia idade, negro, de óculos, vestindo camiseta regata, calmo, aparece no filme com um documento de identificação nas mãos. "É o RG do meu filho”, diz, apontando para o chão. As pessoas ao redor seguem gritando, mas o policial tenta acalmá-las. "Aqui ninguém vai matar ninguém!”.
"Num momento como esse se vê a desconfiança que as pessoas têm com a polícia”, aponta o analista criminal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Guaracy Mingardi. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e com passagem por departamentos da Polícia Civil de São Paulo, ele é um dos nomes mais respeitados do Brasil no debate sobre segurança pública. "Muitas vezes a pessoa foge dos policiais não porque está praticando um crime ou porque é procurada da Justiça, mas simplesmente por questões administrativas, como um documento vencido, por exemplo”, continua ele.
É o que, de fato, acontece no fim do vídeo – com 4,6 mil visualizações e 200 comentários até a metade de março em um perfil de policiais militares no TikTok: ele tentava escapar apenas porque estava sem capacete (infração considerada "gravíssima” no Código de Trânsito Brasileiro).
Vídeos como esses pululam em redes sociais como Facebook, Instagram e TitTok, ora editados a partir das imagens registradas pelas câmeras que policiais levam acopladas no corpo, ora em cenas gravadas pelos próprios aparelhos celulares dos PMs, que depois as usam para alimentar perfis policialescos nas plataformas. Em ambos os casos, as publicações são ilegais.
Percepção de crise
Para especialistas ouvidos pela DW, a circulação de conteúdos como esses ajudam a explicar como a segurança pública voltou ao topo das preocupações dos brasileiros – e como isso deve pautar as eleições municipais marcados para o segundo semestre. Em setembro, uma pesquisa do Datafolha mostrou que, após 11 anos, a violência voltou a ser apontada pela população de São Paulo como o problema mais grave da cidade (22%), superando os gargalos da saúde pública, citados agora por 16% dos entrevistados.
Em dezembro, o instituto fez a mesma pergunta a nível nacional, reunindo áreas sob alçada do governo federal. Ouviu de 17% das pessoas que o desafio mais complexo do Brasil está na segurança pública, atrás apenas da saúde (23%).
Sensação de insegurança
Mas não são apenas os vídeos do TikTok ou os casos mais extremos de violência que mobilizam o eleitorado. "Alguns crimes ganharam outro significado de um tempo para cá, como o roubo de celulares, por exemplo”, explica a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi. "Antes, o prejuízo era apenas financeiro. Hoje isso se torna uma devassa na vida da vítima: ela perde contatos, sigilo bancário, anotações, tudo. Aumenta a sensação de insegurança, já que o impacto de sofrer essa violência tem sido muito maior”, completa ela.
Em nove meses de 2023, 45 ocorrências de roubo de celulares foram registradas todos os dias nas delegacias que atendem o centro de São Paulo. Foram 16,5 mil casos no período – o maior número desde que a Secretaria de Segurança Pública do estado começou a fazer a contagem, em 2001. Considerando toda a metrópole, porém, o índice de roubos caiu 6,7% em relação ao ano anterior, enquanto os furtos subiram 6,5%, com pouco mais de 250 mil ocorrências.
Números semelhantes foram registrados em capitais como Salvador, na Bahia, e no Rio de Janeiro.
Publicado há algumas semanas, com base no ano de 2022, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP, mostrou que 2,7 mil aparelhos celulares são subtraídos todos os dias no Brasil.
"Isso precisa ser resolvido no curto prazo. O celular é hoje o objeto mais visado em furtos e roubos nas áreas urbanas do Brasil e, só por isso, necessita de uma política específica – que não existe hoje”, aponta Mingardi.
É a mesma coisa com os chamados crimes digitais, como fraudes em meios de pagamento, que cresceram significativamente desde a pandemia. Um estudo publicado no ano passado pela fintech Silverguard mostrou que 1,7 milhão de golpes foram aplicados no país em 2022 apenas com Pix, plataforma em vigor há quatro anos. "Nesse caso, a percepção da insegurança é ainda maior, porque independe de onde a vítima está. Você não precisa estar em uma rua isolada à noite: pode estar sentado no sofá da sua casa e ser roubado”, explica Pollachi.
Discursos vs. Realidade
Números como esses reforçam uma percepção comum entre especialistas sobre as promessas feitas nas campanhas eleitorais recentes e a experiência cotidiana dos brasileiros com a violência: a de que os investimentos públicos têm se concentrado somente em ações "visíveis”, que tendem a ser menos efetivas. "Muitos recursos foram colocados no aumento de efetivo policial e tecnologia”, observa o pesquisador Marcelo Batista Nery, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP. "É uma polícia ostensiva que tenta inibir o crime ou agir depois que ele aconteceu, mas que não considera a necessidade da prevenção”.
Já para Mingardi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o problema é de ordem política – uma percepção comum em vários setores do país. O combate mais efetivo à violência no Brasil passaria por políticas públicas de longo prazo, envolvendo desde enfoques sociais com a juventude até investigação mais robusta sobre mercados paralelos. "O problema é que o enfoque de curto prazo, de caráter policial, não resolve nada. Há muitas operações, mas poucas políticas”, lamenta.
Um exemplo disso, para ele, é o fluxo de investimentos em compras de viaturas policiais: o Rio de Janeiro gastou R$ 96 milhões em quatro centenas de automóveis ao longo do ano passado. Em São Paulo, foram 324 novos veículos em 2023 que, embora destinados à Polícia Civil, foram planejados para ajudar no patrulhamento. O mesmo movimento aconteceu com as aquisições de armas e equipamentos.
"São medidas ruins, porque se preocupam mais com a retórica, com aparência, do que com questões reais. Não há uma estratégia contínua e, por isso, não há mudança expressiva na situação”, critica Mingardi. "Os governos precisavam mudar de atitude”, acrescenta.
Além disso, muitas plataformas eleitorais apresentam propostas que, na prática, são praticamente impossíveis de serem aplicadas. "Os candidatos não deixam as ideias tão claras, e as pessoas sabem que elas não terão a mesma importância depois da eleição. Mas, com a urgência do tema, eles têm tentado vincular a violência ao centro de suas campanhas”, observa Nery, do NEV.
Medidas positivas
Na contramão, algumas medidas, porém, têm sido elogiadas – embora não sem seus próprios dilemas. A principal delas foi a implementação de câmeras acopladas nos corpos dos policiais em operação, como forma de materializar relatos dispersos em ocorrências, principalmente as que envolvem mortes. Adotada em 2020 em alguns batalhões de São Paulo, a medida reduziu em 50% a letalidade da polícia no estado desde então, segundo o Instituto Sou da Paz.
"O mais importante é que as câmeras diminuem o número de mortes sem que isso aumente os índices de crimes. Em alguns batalhões, os casos de pessoas mortas pela polícia chegaram a cair 70%. É muito significativo”, aponta Pollachi. "Tirá-las é uma ideia dos grupos que querem apenas ‘mão dura'. Só que não tem efetividade nenhuma”, prossegue, apontando para o debate atual sobre o fim da tecnologia – que tem, entre seus adeptos, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Desde o fim do ano passado, essa discussão ganhou força em meio à Operação Escudo, da PM paulista, na região da Baixada Santista. Iniciada em julho, depois do assassinato de um soldado do grupamento especial da instituição, a Rota, as incursões já mataram 39 pessoas, segundo dados oficiais. Em meio à operação, encerrada oficialmente em setembro, mas mantida na prática, a polícia pediu à Justiça para não usar mais as câmeras – e foi atendida.
De acordo com o jornal O Globo, apenas 6% das polícias brasileiras usam câmeras hoje.