Com o ano legislativo ganhando velocidade após o Carnaval, a bancada da bala prepara um combo de pautas para tentar emplacar na Câmara dos Deputados a contragosto do governo. As medidas tramitam em diferentes trincheiras. Uma das frentes de atuação do grupo é o plenário, onde deve ser votada até a próxima semana a proposta que acaba com as saídas temporárias de detentos do sistema prisional, conhecidas popularmente como “saidinhas”, objeto do Projeto de Lei (PL) 2253/2022.
O texto já havia sido aprovado pelos deputados no ano passado, mas sofreu modificações ao receber o aval do Senado, em fevereiro, por isso retornou à Câmara para avaliação. Para ajudar na aprovação final da matéria, a oposição conta agora com o retorno temporário de Guilherme Derrite, que foi exonerado temporariamente na terça (13) do cargo de secretário de Segurança Pública de São Paulo para reassumir o mandato de deputado federal pelo PL e relatar o projeto no plenário. O então parlamentar também relatou a proposta em 2022, quando houve a primeira análise do tema da Casa.
O analista político Antônio Augusto de Queiroz, conhecido como Toninho, vê na articulação em torno da pauta da “saidinha” uma armadilha política para o presidente Lula (PT) num momento em que o petista enfrenta queda de popularidade. A defesa da matéria também ganha fôlego político em meio ao cenário pré-eleitoral. “A oposição tem utilizado os episódios pontuais de fugas de presos para tentar desgastar o governo fazendo colar a ideia de que ele seria supostamente conivente com a prática de crimes, o que cria uma situação muito ruim para o governo, ainda mais num momento em que a sociedade brasileira segue muito fragmentada e polarizada. Com a queda de popularidade do Lula, a oposição busca associar à figura do presidente coisas tidas como socialmente negativas. É um jogo.”
A pauta do fim da saidinha tem contado ainda com outras articulações. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), pousou na capital federal esta semana para ajudar nas costuras políticas. Entre diferentes agendas, o mandatário se reuniu com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ocasião em que foram discutidas ainda outras pautas de teor conservador. A tentativa dos opositores de obter um aval final ao PL 2253 se soma ainda à ideia de imprimir velocidade aos planos do grupo em outros campos de batalha. Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), por exemplo, a oposição tenta aproveitar a presença de Caroline de Toni (PL-SC) no comando do colegiado para levar adiante uma série de medidas de endurecimento penal.
Entre elas, figuram uma proposta que impõe um mínimo de 25 anos de cadeia para criminosos que reincidam pela terceira vez (PL 986/2019); outra que modifica o Código Penal para endurecer penas de diferentes crimes (PL 464/2022), entre eles o estelionato; e uma medida que converte em área de segurança os espaços que abrigam complexos prisionais federais, distritais e estaduais (PL 1292/2021), esta última endossada também pela fuga de detentos da Penitenciária Federal de Mossoró (RN), que há cerca de um mês vem desafiando o governo Lula, especialmente o Ministério da Justiça (MJ).
O MJ, inclusive, também está na mira da bancada da bala no âmbito da Comissão de Segurança Pública (CSP) da Casa. Tramitam no colegiado três requerimentos que pedem a presença do ministro Ricardo Lewandowski na Câmara para prestar esclarecimentos aos deputados sobre a fuga no Rio Grande do Norte e outras questões, como o avanço do crime organizado no país. Um outro requerimento pede que o ministro apresente à CSP o planejamento da pasta para ações previstas para 2024.
Na última terça (12), os documentos figuravam na pauta do colegiado, mas foram retirados da lista de votações do dia depois de Lewandowski chamar o presidente da comissão, Alberto Fraga (PL-DF), para uma reunião na mesma data. O deputado também preside a Frente Parlamentar da Segurança Pública, nome formal da bancada da bala, e por isso batalha por outras medidas. Uma delas é a revisão do decreto federal que restringiu o comércio de armas no país, iniciativa do governo Lula para tentar frear o movimento de facilitação do acesso a esse tipo de artefato durante a gestão Bolsonaro.
Outra medida de interesse de Fraga e correligionários é a reforma do Código de Processo Penal (CPP), que já foi alvo de uma comissão especial, mas não teve o relatório final avaliado. A proposta, que condensa 377 projetos sobre o tema, tornou-se depois objeto de análise de um grupo de trabalho (GT) criado em 2021 na Câmara, mas ficou fora do radar dos parlamentares nos últimos tempos e pode, então, voltar à tona em 2024, a depender do grau de sucesso das articulações da bancada da bala.
Aliança
Intenções paralelamente manifestadas pela bancada ruralista também cruzam o caminho da bancada da bala, cujo presidente já emitiu sinais nesse sentido. Tendo ambos os grupos uma linha política punitivista e conservadora, a Frente Parlamentar da Segurança Pública irá ajudar a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) a alavancar o que o líder da FPA, Pedro Lupion (PP-PR), tem chamado de “pacote anti-invasão”, um conjunto de quatro projetos que buscam endurecer o olhar do Estado diante de ocupações de terra.
O primeiro deles, o PL 1198/23, pune quem participar de iniciativas do tipo por meio do veto à entrada em programas federais. Medida semelhante está prevista no PL 1373/2023, que proíbe ocupantes de terra de serem incluídos no Programa Nacional de Reforma Agrária, bem como em políticas de regularização fundiária ou de linhas de crédito que tenham subvenções econômicas. Uma outra proposta, batizada de PL 8262/2017, autoriza que fazendeiros acionem força policial para a retirada de ocupantes de terra dessas propriedades sem necessidade de ordem judicial.
Por fim, o último projeto caracteriza ocupações de terra como “terrorismo”. A medida tramita como PL 149/2003 e está parada na CCJ da Câmara aguardando a apresentação do parecer. Ainda não está claro, no cenário político, o quanto cada uma dessas pautas deve prosperar, mas a tendência é que ajudem a fazer barulho e criar atritos com o governo Lula e setores da esquerda, tradicionalmente contrários a esse tipo de medida, como os movimentos populares do campo.
Como de praxe, o jogo deverá depender também do humor e dos interesses de Arthur Lira diante da gestão, uma vez que cabe ao presidente da Casa a decisão final sobre colocar ou não um projeto em pauta no plenário. Nesse cenário, o analista político Toninho vê um Arthur Lira que tende a buscar algum equilíbrio entre uma postura mais pró-governo e o atendimento a pautas desses grupos mais conservadores.
“Eu diria que, se fôssemos fazer um balanço de pautas no campo dos costumes, da segurança pública e outras medidas de linha mais conservadora, nesse campo o Lira tem sido mais pró-governo do que pró-oposição. Se a gente verificar, o Pacheco fez mais sinalizações aos setores da direita – que querem pautar no Senado coisas como restrição de poderes do STF, criação de CPIs, etc. – do que o próprio Lira”, observa.
O analista destaca que, pelo seu histórico e perfil parlamentar, Lira tem mais entrada entre esses grupos conservadores do Legislativo do que o presidente do Senado, o que o ajuda na hora de promover diálogo e costurar acordos. “Mas não se sabe até que ponto ele vai conseguir segurar isso, embora esteja dependendo agora do governo para o período pós-vencimento do mandato dele”, acrescenta Toninho, ao ressaltar que Lira tenta garantir algum espaço político de relevância a partir do ano que vem, quando deixa a presidência da Câmara.
Embaraços
Para o atual governo, as dificuldades criadas pela bancada da bala são latentes e reais: a administração do PT vive embaraços diante dos temas patrocinados pelo grupo porque a agenda punitivista do segmento tem caráter apelativo e midiático e mexe com temas sensíveis para a população, especialmente no cenário de massificação da violência no país nas últimas décadas. Assim como tem ocorrido em diferentes eleições, a tendência é que novamente o assunto ganhe destaque no contexto do pleito deste ano, apesar de a segurança pública não ser competência municipal, o que amplia as preocupações da gestão diante do combo de propostas que vem sendo preparado pela frente parlamentar.
O consultor e analista político Thiago Queiroz observa que tais pautas criam um ambiente movediço para o governo no jogo legislativo porque conquistam grandes públicos através de narrativas baseadas em ideias pré-concebidas e na cultura do medo. “Nos últimos anos, ficou mais evidente que uma parte considerável da sociedade brasileira defende valores conservadores. Isso se tornou algo mais vocal com a agenda bolsonarista, então, são pautas identificadas de maneira dogmática. Elas têm bastante audiência e são tipicamente ligadas ao senso comum, ou seja, que as pessoas não analisam de uma maneira racional ou com base em estudos e estatísticas. É basicamente pelo achismo”, examina.
Sociedade civil
Para além das questões matemáticas e políticas que permeiam o jogo entre os diferentes grupos do Congresso, as movimentações da bancada da bala e sua tentativa de acelerar a agenda punitivista vêm preocupando setores da sociedade civil que acompanham tais temas. É o caso da Rede de Justiça Criminal, que observa com atenção a tramitação do PL que põe fim às saídas temporárias nos presídios e outras medidas. A entidade reúne nove organizações que lutam contra a política de encarceramento em massa, assunto em que o Brasil se tornou referência negativa no mundo por ter uma das maiores populações carcerárias.
O advogado Leonardo Santana, que atua como advocacy da entidade no Congresso, vê perdas democráticas para o país na tentativa de se pautar um combo de medidas ligadas ao populismo penal, especialmente no atual cenário, em que parte da sociedade se vê inclinada a aderir a pautas mais extremistas, o que pode imprimir retrocessos à legislação brasileira.
“Vejo um prejuízo muito grande para a democracia. A democracia tem vários aspectos e um deles é a previsibilidade sobre as normas. É sobre de que forma a gente acessa o poder, de que forma a gente regula e de que forma a gente legisla. A forma como o processo legislativo está acontecendo conduz [o país] a uma perda de substância democrática. Não posso dizer que seja antidemocrático que exista uma maioria de policiais e pessoas ligadas a órgãos de segurança pública legislando, já que eles são um grupo que se constitui dentro do marco democrático, mas posso dizer que a forma como está acontecendo é preocupante.”
Para Santana, falta a consideração, por parte do parlamento, de estudos de impacto e dados estatísticos relacionados às medidas punitivistas que habitam os planos dos grupos mais conservadores no Legislativo. Ele destaca a preocupação com a tentativa de se acabar com a saidinha, medida que tem percentual de fugas considerado baixo em relação aos ganhos de ressocialização trazidos pela política – no Natal de 2023, por exemplo, quase 57 mil presos foram liberados para passar a data com a família no país e menos de 5% deles não retornaram à unidade prisional.
“O que nos preocupa é que tratem pautas dessa natureza da área de segurança pública com base em um negacionismo completo dos dados que são realmente relevantes para o debate. O processo legislativo, da forma como está colocado, tem rejeitado a ciência, a posição da academia, pois o tempo todo esse conhecimento tem sido rejeitado em nome de uma suposta experiência das pessoas que tomam a frente dessa discussão. E há também uma interdição dos debates através de medidas como requerimentos de urgência para apressar certas pautas, muitas vezes com uso desenfreado e sem cabimento. Tudo isso é lamentável em termos democráticos”, lamenta o advogado.
Edição: Vivian Virissimo