A Lei Antiterrorismo (nº 13.260), sancionada em março de 2016, no embalo do conservadorismo que se fortalecia no país à época, gerou desde então uma série de 36 outras propostas que hoje buscam alterar a norma. Ao todo, 31 delas tramitam na Câmara dos Deputados e outras cinco figuram na lista do Senado Federal.
O dado é do estudo “Repercussões Políticas e Legislativas sobre Terrorismo no Brasil”, publicado este mês pelos pesquisadores Thiago Trindade e Carla Guareschi, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB).
Juntos, eles analisaram o impacto da referida legislação, que nos últimos anos se tornou não só foco de investigação por parte de especialistas acadêmicos, mas também um dos principais pontos de preocupação de movimentos populares e outros segmentos do campo progressista.
Nas propostas localizadas pelos pesquisadores, chama a atenção o perfil geral dos textos que vieram após a nova lei: a maior parte deles toca a questão da liberdade de manifestação.
“São proposições que falam concretamente sobre abuso do direito de manifestação por parte de movimentos sociais, que tratam das ocupações de terra a partir de uma perspectiva de quem não conhece a luta do campo e da cidade como disputa por uma garantia constitucional de acesso à terra e à moradia, como um direito, e proposições que estão relacionadas com a bancada ruralista, numa lógica de enfrentamento dos movimentos do campo”, menciona Carla Guareschi.
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Dos 31 PLs que constam na Câmara, por exemplo, 20 seguem essa linha. “No Brasil, o terrorismo é um tipo penal com pena altíssima, que gera consequências muito fortes para o indivíduo, porque até o direito de defesa é restringido em algumas medidas por conta da gravidade do que é terrorismo. Colocar situações envolvendo esses grupos em uma perspectiva como essa significa sair de uma lógica de Estado democrático para uma lógica de Estado de exceção”, continua a pesquisadora.
O estudo realça que países que adotaram legislações semelhantes na história recente se tornaram alvo de críticas internacionais por conta dessas iniciativas. Foi o que ocorreu, por exemplo, de 2012 para cá com Canadá, Turquia, Arábia Saudita e Chile. Neste último, a norma antiterror chegou a ser utilizada contra indígenas da etnia Mapuche, o que fez com que o país recebesse uma contestação formal por parte das Nações Unidas.
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“O que os organismos internacionais têm apontado como semelhança [entre essas leis] não é nem necessariamente a forma como se conceitua terrorismo, mas sim como os conceitos são abrangentes. São países que não têm uma tradição histórica de enfrentamento ao terrorismo dentro da lógica de terrorismo que a gente imagina, na perspectiva globalizada pós-2001 e muito voltada para islâmicos atacando países do Ocidente", observa Guareschi.
Linha do tempo
Ao esmiuçarem os PLs em uma análise de ordem temporal, os pesquisadores do Ipol/UnB identificaram que a maior parte das propostas surgidas após a Lei Antiterrorismo com o objetivo de inserir modificação na norma surgiu depois da posse do presidente Jair Bolsonaro (PL). Foram 24 PLs (67%) entre 2019 e 2021 contra 12 (33%) surgidos no intervalo de 2016 a 2018.
O estudo pontua que o dado é emblemático especialmente a partir da observação de que, após março de 2020, a agenda política do país se voltou para as necessidades emanadas pela pandemia.
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Naquele momento, o Congresso Nacional concentrou forças em propostas voltadas às áreas de saúde pública e coletiva, questões trabalhistas e fiscais, liberação de orçamento para políticas públicas destinadas à contenção da crise sanitária, entre outras.
Olhando em retrospectiva, foram quatro PLs em 2017 e cinco em 2018, enquanto os anos de 2019 e 2020 viram brotar outras oito e 13 propostas, respectivamente. No caso deste último, o estudo assinala que os projetos em questão ampliam o tipo penal do terrorismo e que pelo menos 10 deles anunciam riscos concretos para os movimentos populares.
Thiago Trindade, professor e pesquisador do Ipol que assina o estudo sobre a Lei 13.260/2016, destaca que a postura de se associar tais organizações civis ao terrorismo é anterior a Bolsonaro. Ele pontua, no entanto, que o cenário político gestado pelo presidente oportunizou a multiplicação de medidas legislativas conservadoras que tentam enquadrar movimentos populares considerados incômodos ao governo de plantão.
“De 1988 para cá, é a primeira vez que um chefe de Estado adota o discurso oficial de associação dos movimentos com o terrorismo porque, mesmo no governo FHC, quando houve o massacre de Eldorado dos Carajás, esse discurso não estava incorporado no chefe do Executivo, pelo menos não dessa forma explícita, de falar abertamente”.
Trindade lembra a constante ligação que Bolsonaro tenta costurar entre a prática política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o conceito de terrorismo, confundindo a população sobre o que seriam, por exemplo, as ocupações de terra.
Forma de atuação típica do campesinato, as ocupações constituem um ato político e simbólico de intervenção em áreas rurais que são alvo de especulação de terras por parte de grandes fazendeiros. O objetivo dos agricultores que participam dessas ações é reclamar uma distribuição democrática do uso da terra e a implementação da reforma agrária.
“Eu diria que o MST sempre foi o alvo primário das forças conservadoras do Brasil nessa tentativa de associar desordem, movimento social e terrorismo. O Bolsonaro representa uma janela de oportunidade porque personifica o discurso dessa parte das elites nacionais”, observa o pesquisador, ao falar em “fetiche do presidente” contra a organização, que é publicamente conhecida pelo caráter combativo.
PL 1595/2019
Os pesquisadores chamam a atenção para o Projeto de Lei 1595/2019, que tramita atualmente na Câmara dos Deputados. A proposta, que teve o regime de urgência rejeitado pelo plenário no último dia 8, fixa redefinições conceituais para atos de terrorismo e contraterrorismo e é alvejada por especialistas que a acusam de ser genérica e perigosa para a garantia de liberdades civis asseguradas pela Constituição.
O texto é de autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), mas foi concebido inicialmente por Jair Bolsonaro quando o ex-capitão atuava como parlamentar na Câmara. O PL preocupa pesquisadores por oficializar o uso de ferramentas de monitoramento, inteligência e controle da sociedade, abrindo caminho também para a criminalização de lideranças populares e entidades civis.
“A falta de coragem de discutir, com seriedade, os limites entre ações legítimas e democráticas de movimentos sociais e os crimes por suas alas radicais cometidos, muitos dos quais extremamente próximos conceitualmente do que seria o terrorismo, deixa turvo o âmbito de atuação dos órgãos estatais envolvidos na prevenção e no combate ao terror, entre tantos outros argumentos”, argumenta Vitor Hugo, no texto em questão.
Situada em um campo de conflito ocupado também por entidades da área de segurança pública contrárias à medida, o PL poderá, na visão dos estudiosos do Ipol/UnB, jogar o país em uma jornada de volta ao passado, colocando em xeque direitos hoje assegurados pelo avanço democrático experimentado no pós-ditadura.
“Preocupa ainda mais o fato de ser discutido e negociado em um ambiente de restrição do acesso da sociedade civil às casas legislativas”, destacam Trindade e Carla Guareschi na pesquisa, ao lembrarem o atual esquema de participação social no Congresso Nacional.
“De alguma forma, esse PL tenta oficializar algo que já existe na prática, que são os esquemas de vigilância sobre ativistas, sobre figuras de oposição. Desde as manifestações de 2013 esse aparato de segurança foi sendo desenhado nessa perspectiva. Apesar de essa polícia secreta já existir, se isso for aprovado, vai ser a maior tragédia para a sociedade brasileira”, calcula Trindade.
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Edição: Vivian Virissimo