PASSADO SUJO

Instituto Butantan produziu veneno para ditadura chilena assassinar opositores

Documentos inéditos revelam que junta militar chilena visitou Butantan em segredo com oficiais do regime brasileiro

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Fotos mostram que comitiva de militares foi transportada ao heliponto do Butantan em helicópteros da FAB - Agência Pública

Por meio de análises forenses, um dente pode recontar a História. Em fevereiro de 2023, laboratórios do Canadá, Dinamarca e Chile anunciaram que vestígios de toxina botulínica foram encontrados num molar do poeta Pablo Neruda, reforçando uma antiga tese de que o escritor, senador e diplomata chileno pode ter sido assassinado pela ditadura.

Neruda faleceu há pouco mais de 50 anos, em 23 de setembro de 1973, apenas 12 dias após o golpe militar no Chile que depôs o presidente eleito Salvador Allende. Amigo do mandatário, o poeta pretendia viajar para o México, onde faria oposição política. Todavia, internado numa clínica em Santiago, Neruda faleceu na véspera do embarque, após ter recebido uma injeção. Apesar de ele estar com câncer na próstata, seu antigo motorista e parte de sua família sempre suspeitaram de envenenamento.

No final de fevereiro de 2024, a Justiça chilena determinou que a morte seja novamente investigada. Mas o que ainda não entrou no radar dos investigadores é que o episódio pode guardar relação com um evento que conecta um dos centros científicos mais importantes do Brasil — o Instituto Butantan — e a ditadura de Augusto Pinochet.

Por que isso importa?

Um dos mais renomados institutos científicos do Brasil, o Butantan esconde sua história de proximidade com a ditadura militar brasileira, que incluiu visitas oficiais e perseguição a cientistas. Toxinas produzidas pelo Butantan eram enviadas para a ditadura chilena em malotes diplomáticos, que não deixavam rastro, e foram usadas para envenenar opositores
Trata-se de um polêmico caso de prisioneiros chilenos contrários ao regime que foram envenenados por toxinas botulínicas oriundas do Brasil, em 1981. A toxina é um dos venenos mais potentes conhecidos.

“A botulina afeta todo o sistema neurovascular e causa morte por ataque do coração ou asfixia”, descreve em entrevista à Agência Pública o ex-preso político Guillermo Rodríguez, uma das vítimas do episódio. Ele e outros sete detentos, sendo quatro presos políticos, ingeriram alimentos envenenados quando estavam na Cárcere Pública, em Santiago.

Conhecido como “El Ronco”, ele ganhou o apelido devido à rouquidão crônica adquirida como consequência do envenenamento. “Tenho sequelas até hoje em minha vista, aparato respiratório e voz.”

Uma sentença judicial proferida em 2021 pela Suprema Corte do Chile determinou que a toxina utilizada no presídio era originária do Brasil. E que fora enviada ao país por malote diplomático à chancelaria no palácio presidencial.

Detalhe: o único local a produzir o soro antibotulínico no Brasil era o Instituto Butantan.

Agora, uma investigação de seis meses da Agência Pública revela depoimentos inéditos e novos documentos que comprovam a proximidade do Butantan com os militares brasileiros e chilenos, incluindo fotos da visita de uma comitiva de altos oficiais ligados a Pinochet à sua sede, em São Paulo.

Procurado pela reportagem, o Instituto reafirmou, por nota, “seu compromisso absoluto com a democracia e seus valores e com a liberdade de opinião de seus pesquisadores para que realizem com tranquilidade e segurança seu trabalho em prol da ciência e da saúde pública do país”.

Os presos da Cárcere Pública

No dia 7 de dezembro de 1981, um mês após ter sido condenado à prisão perpétua por um Conselho de Guerra, Guillermo Rodríguez Morales, líder do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), e Ricardo Aguilera, simpatizante, convidaram seus colegas de cela para um almoço, após terem recebido carne e legumes enviados por suas famílias.

Horas depois, sete detentos apresentaram sintomas de intoxicação grave: vômitos, febre alta, problemas de visão, fala e respiração, convulsões e invalidez muscular. Tratada como gastrite aguda, nenhum deles recebeu tratamento adequado.

Quando a situação se agravou, em 9 de dezembro, os enfermos foram enviados ao Hospital do Centro de Readaptação Social. Guillermo seguiu na ambulância atado a Victor Corvalán Castillo, um preso comum que já estava morto.

Somente após diagnóstico de intoxicação botulínica pelo médico Jorge Mery, eles foram transferidos a outros hospitais. Após dias em coma, o detento comum Héctor Pacheco Díaz também morreu, no dia 20 de dezembro.

Apenas depois da chegada de equipamento e antídoto vindo da França, EUA e Argentina, os demais cinco presos envenenados — Guillermo, os irmãos Ricardo e Elizardo Aguilera Morales, Adalberto Muñoz Jara e Rafael E. Garrido Ceballos — receberam alta.

De volta ao presídio, necessitaram de um mês de terapia para voltar a andar. Rodríguez necessitou de traqueostomia e, em abril de 1982, teve suas cordas vocais paralisadas.

Entre os depoimentos das vítimas, Adalberto Muñoz revelou que, dias antes, um funcionário do presídio o aconselhara a não almoçar com os presos políticos.

Ricardo Aguilera considera que eles foram utilizados como cobaias: “Não nos escolheram para nos matar por nossa importância, mas como ‘porquinhos da Índia’ para provar a efetividade de um agente tóxico”.

A Suprema Corte condenou quatro membros do Exército chileno e um funcionário do presídio pelos assassinatos. O processo logrou estabelecer que o envenenamento se verificou “pela ingestão de uma substância derivada do microrganismo Clostridium botulinum, que foi obtida pelo diretor do Instituto Bacteriológico, egressa do Brasil, e que chegou ao Chile via malote diplomático, sendo recepcionado na Chancelaria e logo enviado a um laboratório secreto que dependia da Direção de Inteligência do Exército (Dine)”.

Determinou também que “a toxina botulínica foi introduzida na Cárcere Pública devidamente liofilizada, lugar onde proporcionaram a determinados internos alimentação contaminada com a dita toxina, o que provocou a morte de dois destes, resultando em outros cinco reclusos com lesões de caráter grave”.

Fundado em 1901, o Instituto Butantan é reconhecido internacionalmente por suas pesquisas nos campos de herpetologia, microbiologia e imunologia. Ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, é responsável por grande parte da produção de soros e vacinas utilizadas no país, além de ter sido fundamental no combate à gripe H1N1 e à covid-19.

Já na década de 1970, o instituto tinha enorme reputação como centro científico de excelência.

Em 1972, o Brasil se tornou o quinto país do mundo a produzir o soro antibotulínico, feito a partir da cepa da variante A da bactéria anaeróbica Clostridium botulinum, cuja toxicidade produz paralisia muscular progressiva, inclusive do diafragma.

No mesmo ano, foram iniciados estudos sobre o poder tóxico da variante E, o mesmo tipo encontrado 50 anos depois na ossada de Neruda.

“Não se pode descartar o manejo da bactéria e da toxina com fins de produção no Chile”, declarou à Pública a doutora Gloria Ramírez Donoso, coordenadora do Painel de Especialistas Internacionais de investigação da causa da morte do escritor. “Insisto que se requeira por parte de advogados solicitar registros de documentos de antes e depois de 11 de setembro de 1973 sobre a produção, venda nacional, exportação e importação de produtos químicos e biológicos do Instituto Bacteriológico do Chile.”

“É uma pista importante”, avalia. “Creio que as informações sobre o Brasil deveriam ser apresentadas pelos advogados de defesa [da família].”

O instituto parceiro de Pinochet

Pouco noticiada por aqui, a relação da ditadura de Augusto Pinochet com o instituto paulista é descrita há tempos pela Justiça e pela imprensa chilenas.

No início do regime militar no Chile, a Direção de Inteligência Nacional (Dina) criou o Projeto Andrea, que usou toxinas para eliminar opositores, como veremos. Gás sarin, toxina botulínica, toxina estafilocócica – esta, produzida no Butantan desde a década de 1930 –, tálio, entre outros venenos, constavam do arsenal do projeto.

Durante o governo de Pinochet houve, oficialmente, 3.225 mortos e desaparecidos.

Em 2008, a cientista chilena Ingrid Heitmann Ghigliotto encontrou no porão do Instituto de Saúde Pública do Chile (antigo Instituto Bacteriológico), onde era diretora, duas caixas com ampolas de toxinas botulínicas provenientes do Instituto Butantan, uma quantidade, segundo ela, suficiente para “exterminar metade de Santiago”.

Os químicos, que permaneceram em segredo por 27 anos no subterrâneo do instituto, foram descobertos e incinerados em 2008, sem que isso fosse informado ao governo de Michelle Bachelet. “Não pensei que pudessem ser importantes para um processo judicial”, explicou a cientista sobre a decisão de queimar o material. “Poderia matar muitíssimos.” Segundo ela, faltavam algumas ampolas nas caixas encontradas.

O Instituto Butantan informou à Pública que não localizou nenhum documento relacionado ao Instituto de Saúde Pública chileno.

Contudo, fotos e documentos recentemente disponibilizados pelo Centro de Memória do Butantan sugerem o contrário: durante a ditadura civil-militar, o instituto possuía uma estreita conexão com militares estrangeiros, inclusive com a Junta Militar que governou o Chile por 17 anos. Duas dezenas de fotos obtidas pela Pública comprovam, inclusive, uma visita do comandante-chefe da Força Aérea chilena, Fernando Matthei, membro da Junta de Governo e ex-ministro da Saúde, junto com o cônsul-geral chileno a São Paulo, ao Butantan em 1o de junho de 1979.

A guinada à direita do Butantan

A relação com a ditadura de Pinochet parece ter sido o ápice de uma guinada à direita do Butantan durante a ditadura militar.

Dez dias após o golpe de 1964, em 10 de abril, um manifesto de apoio foi lançado por cientistas, médicos e universitários brasileiros. Ao mesmo tempo, uma perseguição política, com apoio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a polícia política, e do Serviço Nacional de Informação (SNI), foi promovida contra cientistas considerados “comunistas”, gerando demissões e exílio no exterior.

“Havia uma liderança de direita muito forte no Butantan na época”, diz Vera Bohomoletz, física e filha do bioquímico Sebastião Baeta e da pesquisadora Olga Bohomoletz, prestigiados cientistas que foram destituídos de seus cargos durante o regime.

Dois dos signatários do manifesto – a doutora Jandyra Planet do Amaral e o médico veterinário paraguaio Bruno Soerensen Cardozo – tornaram-se posteriormente diretores do instituto. Durante suas gestões, outros signatários, o bioquímico Edison Paulo Tavares de Oliveira, o biomédico Reynaldo Schwindt Furlanetto e o veterinário Raymundo Rolim Rosa envolveram-se com a pesquisa de toxina botulínica. Soerensen ainda participou da visita dos altos militares chilenos, conforme apurou a reportagem.

“Essa relação não parece fortuita. Os fatos se interligam”, considera Vera Bohomoletz.

Ela entregou à Pública uma pasta com documentos nunca publicados, que incluem um manifesto de apoio ao golpe de 1964 e uma carta de um importante cientista da instituição delatando funcionários para o regime militar.

A carta dos cientistas

Membro fundador da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o hematologista Gastão Rosenfeld redigiu, ao lado dos colegas Alphonse R. Hoge, Eva Maria A. Kelen e Adolpho M. Penha, o Manifesto de Cientistas e Universitários de São Paulo aos Governantes e Forças Armadas do Brasil. Endereçado ao II Exército, teve 32 signatários entre integrantes do Butantan, da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Biológico.

“Os Cientistas e Universitários abaixo assinados vêm fazer uma manifestação de solidariedade aos governadores e militares que tiveram a iniciativa de levantar-se em defesa da democracia que vinha sendo solapada demagogicamente pelos que gradualmente iam instalando a ditadura comunista […] A luta será subterrânea, nos ambientes de trabalho onde os vermelhos e rosados sabotarão de mil e uma maneiras sutis àqueles que com eles não comungam […] o nosso apoio a todos aqueles que preservaram e querem preservar o regime democrático brasileiro, o nosso elogio aos que tomaram essa iniciativa e a manifestação de nossa opinião contrária à implantação do comunismo russo, chinês, cubano ou outro que seja no Brasil.”

Meses depois, Gastão Rosenfeld enviou uma carta-denúncia ao então secretário da Segurança do Estado de São Paulo, general Aldévio Lemos, com cópia para o II Exército, descrevendo “atividades comunistas de assistentes do Butantan”. A carta cita os pesquisadores Olga Bohomoletz Henriques, Sebastião Baeta Henriques, Saul Schenberg e o então diretor Aristides Vallejo-Freire, entre outros.

Ambas as cartas estavam em uma pasta intitulada “Revolução”, encontrada no final dos anos 1990 na clínica de Rosenfeld e entregue à Pública por Vera Bohomoletz.

Sebastião Baeta foi alvo de uma comissão de investigação na Escola Paulista de Medicina a mando de Otto Bier, diretor do Butantan nos anos 1940 e 1970. Sob a alegação de ser comunista, a comissão levou à exoneração do cargo de professor em abril de 1964. Ele e a esposa, Olga Bohomoletz, militante do PCB — pais de Vera —, tiveram seus cargos cassados no Butantan e foram compulsoriamente aposentados em 1969. A família viveu exilada no exterior e só retornou ao país após a anistia.

A pasta continha também um memorando de convocação de funcionários para depoimento acerca de atividades políticas de seus pares e recortes de jornais relacionados a investigações do Dops sobre o Butantan.

Funcionária do Butantan por 50 anos e signatária do manifesto de apoio ao golpe militar, a pesquisadora Sylvia Lucas reagiu com surpresa à reportagem. “Muito me admiro que na época eu fosse favorável aos militares. Era muito nova e não me ocupava com a política do instituto. Assinei a carta, talvez sem pensar ou por me sentir constrangida se não assinasse”, disse à Pública. “Creio que no período havia certo temor entre os funcionários que ocorresse uma invasão militar.”

Algo semelhante ocorreria depois. Durante as décadas de 1970 e 1980, o Butantan recebeu a visita de inúmeros grupos de militares, fosse a pretexto de aulas sobre ofidismo, campanhas de vacinação, cerimônias ou reuniões com diretores.

Por ocasião dos 80 anos de fundação do Butantan, em 1981 foi criada a medalha com o nome da instituição. Em cerimônia com participação do governador biônico (nomeado pela ditadura) Paulo Maluf, ocorrida em 11 de junho, Bruno Soerensen condecorou membros da entidade, presidentes da Central de Medicamentos (Ceme) e os chefes da Polícia Militar, Marinha, Aeronáutica e Exército. Um dos homenageados foi Léo Etchegoyen, general do Estado-Maior do II Exército, supervisor do temido DOI-Codi e apontado pela Comissão Nacional da Verdade como um dos militares envolvidos com torturas e mortes na ditadura.

 

Diretores do Instituto Butantan com militares chilenos e brasileiros

 

Entre soros e toxinas

Em 1972, ano da Conferência do Comitê de Desarmamento da ONU que proibiu o uso de armas bacteriológicas, o Butantan começou a fabricar o soro antibotulínico do tipo A. Não havia nenhuma emergência de saúde pública que justificasse a produção: o último surto de botulismo ocorrera em 1958, no Rio Grande do Sul, com sete mortes numa mesma família. Mas, na época, o país enfrentava a epidemia desenfreada de meningite, negligenciada pelo governo militar.

A sugestão para a pesquisa sobre o soro partiu do professor Reynaldo S. Furlanetto, enquanto a responsabilidade pelo teste e fabricação da substância coube ao bioquímico Edison Paulo Tavares de Oliveira. No mesmo ano, Edison iniciou a pesquisa da variante E.

A biologista Ivone Yamaguchi, que entrou na instituição em 1978, participou da fabricação do soro antibotulínico em várias fases. “O custo de produção era alto, mas era necessário ter o soro em reserva para o caso de alguma emergência”, explicou à Pública.

A diretora-geral em 1972 e 1973 era Jandyra Planet. Cientista renomada, bem relacionada com governantes e militares, Planet ganhou medalhas da Marinha e da Base Aérea de São Paulo.

Entre 1978 e 1979, já sob a direção de Bruno Soerensen, Edison P. T. de Oliveira passou a produzir o tipo B do soro antibotulínico. Ex-diretor do Serviço de Bacteriologia, Soerensen acumulou as funções de diretor-geral e diretor da Divisão de Microbiologia e Imunologia — onde o soro era produzido.

Em sua gestão, recebeu a visita de várias delegações de militares e homenageou oficiais.

Ivone Yamaguchi esclarece que não havia protocolos de produção, segurança, registro, estocagem ou rastreabilidade para os soros, o que foi ocorrer só em 1990. Segundo ela, Bruno Soerensen “pedia para nos afastarmos dos tais comunistas”.

A impressão é compartilhada pela colega Sylvia Lucas: “Bruno abertamente sempre foi amigo dos militares e da sua turma do Paraguai”.

As fotos de uma visita não noticiada

Em 1º de junho de 1979, Bruno Soerensen, ao lado de outro signatário do manifesto, o belga Alphonse Hoge, diretor da Divisão de Biologia, recebeu uma comitiva que envolvia três brigadeiros da Força Aérea Brasileira (FAB), quatro oficiais da Força Aérea do Chile (FACH) e o cônsul-geral daquele país.

Encabeçada pelo comandante-chefe da FACH Fernando Matthei, um general condecorado pela FAB e que dirigiu o Chile ao lado de Pinochet e da Junta de Governo até 1990, a delegação chilena fez uma visita pública à Embraer um dia antes, mas não teve sua ida ao Butantan noticiada pela imprensa, na época ainda sob censura prévia. A visita tampouco foi registrada no relatório anual do instituto – apesar de ter sido documentada em fotos, encontradas pela reportagem nos arquivos da instituição e publicadas agora pela primeira vez.

Disponibilizadas há poucos meses, as fotos da comitiva foram encontradas em meio a outras de Bruno Soerensen. Sem identificação dos membros presentes, e apenas com um livro de assinaturas como referência, a reportagem fez uma pesquisa em arquivos da FACH para o reconhecimento dos oficiais.

O grupo era formado pelo cônsul-geral chileno em São Paulo Patrício Rodríguez Rentería, além de três oficiais da FAB liderados pelo major-brigadeiro Waldir de Medeiros, comandante do IV Comando Aéreo (Comar), que se tornaria chefe do Estado-Maior das Forças Armadas em 1983.

As fotos demonstram ainda que a comitiva foi transportada ao heliponto do Butantan em helicópteros da FAB.

Entre os militares chilenos estavam também figuras de expressão da Força Aérea daquele país: o general de brigada Enrique Escobar Rodríguez, futuro ministro dos Transportes e Telecomunicações; o coronel de aviação Gonzalo Pérez-Canto Sáez, subsecretário de Aviação; e o comandante de grupo, Jayme A. Estay Viveros, primeiro piloto chileno a ultrapassar a barreira do som e o primeiro a pilotar o caça Hawker Hunter, usado no bombardeio ao Palácio de La Moneda durante o golpe militar.

Matthei e Pérez-Canto, reconhecido torturador, atuaram na Academia de Guerra Aérea (AGA), local usado para cárcere e tortura onde foi morto o general Alberto Bachelet, pai da ex-presidente Michelle Bachelet.

Poucos meses após a reunião, Bruno Soerensen recebeu uma medalha do general da Segunda Divisão do Exército Henrique Beckmann — primo do presidente Ernesto Geisel e responsável por ações contra a Guerrilha do Araguaia —, enquanto Edison P. T. Oliveira viajou para uma conferência científica no Chile para falar dos antígenos botulínicos.

“Se o diretor do instituto recebeu os militares para uma reunião, foi porque houve ordens superiores”, comenta o diplomata Antônio Mesplé, ex-membro da Comissão Nacional da Verdade.

Consultada, a assessoria de comunicação do IV Comar informou não possuir registro da visita dos oficiais chilenos.

A visita ocorreu cinco meses depois de um conflito territorial com a Argentina que mobilizava as energias do governo chileno. Em função do conflito, um programa de guerra bacteriológica foi desenvolvido pelo Exército chileno como instrumento de dissuasão em caso de guerra: o Projeto Andrea.

Ex-membros do regime admitiram importação de cepas letais

Em 1981, o Departamento Bacteriológico do Exército chileno, chefiado pelo médico militar Eduardo Adolfo Arriagada Rehren, encomendou cepas ao Instituto Bacteriológico (atual ISP).

Vindas do Brasil por malote diplomático entre 22 de julho e 7 de agosto, elas foram enviadas à chancelaria no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago. Malotes diplomáticos são expedidos por missões diplomáticas ou repartições consulares, por meio de nota verbal, o que facilitaria a remessa das toxinas pela embaixada, consulado ou diretamente pelas Forças Armadas.

“O coronel Arriagada Rehren, acompanhado de um veterinário que disse ser o futuro chefe do Departamento de Guerra Bacteriológica, me solicitou cepas de Clostridium botulinum. Como o instituto não as possuía, foram solicitadas ao Brasil”, declarou o coronel Joaquín Larraín Gana, diretor da instituição, em depoimento judicial em 2004.

“Solicitei a um dos três institutos que se encontravam na cidade de São Paulo, um de nome Butantan. Não é possível encomendar essas cepas de forma particular, é necessário fazê-lo por meio de um organismo como o Instituto Bacteriológico.”

Incumbido pelo coronel Jaime Fuenzalida, chefe de segurança, de retirar a encomenda na chancelaria, o químico-farmacêutico Marcos Poduje Frugone relatou surpresa maiúscula ao descobrir um tubo com a legenda “toxina botulínica”. O pacote foi entregue ao laboratório secreto do Exército chileno.

Conforme declaração de Arriagada Rehren, em 1978 ele foi procurado pelo general Héctor Orozco, da Dine, que assinalou que a situação internacional do Chile era complicada, especialmente com Peru e Argentina, e era necessário realizar investigação e elaboração de antídotos para bactérias como a que causa o antraz.

“Pediram ao Bacteriológico, através de seu diretor, que se solicitassem cepas de Clostridium Botulinum ao Brasil (Butantan).” Tempos depois, ele relembra que o coronel Larraín o avisou de que um pacote havia chegado do Brasil: “era uma caixa comum como as que se ocupa para guardar sapatos e não tinha nenhuma medida de segurança necessária para manipular estas bactérias – inclusive um dos tubos de ensaio estava quebrado”, foi o que ele disse em seu depoimento à Justiça.

Em 2021, Eduardo Arriagada Rehren foi condenado a dez anos de reclusão por executar com uma injeção de venenos um locutor de rádio chileno, crítico de seu trabalho e do regime, em novembro de 1973.

Projeto Andrea eliminou opositores

Rehren não foi o único a assassinar desafetos com veneno. O Projeto Andrea também foi usado para esse fim.

Polícia política da ditadura chilena, a agência Dina montou o Projeto Andrea no início de 1975, a fim de produzir armas químicas: gás sarin, soman, Clostridium botulinum, estafilococo dourado, antraz, tálio, entre outras substâncias bacteriológicas e derivados químicos, constariam do arsenal chileno.

O laboratório do projeto ficava instalado num andar do casarão de Michael Townley, em Santiago. O americano, agente da Dina, foi um dos protagonistas do laboratório e, segundo seu chefe, Manuel Contreras, também pertenceria à CIA. Outro nome importante no projeto era o químico Eugenio “Hermes” Berríos. Ambos haviam participado do Pátria e Liberdade, grupo paramilitar neofascista que recebeu apoio da CIA e de empresários brasileiros e fez treinamento no Brasil antes do golpe no Chile.

Em 2003, Michael Townley revelou à Justiça chilena que através do Projeto Andrea foram assassinados vários opositores, cujas mortes foram apontadas depois como suicídios ou casos raros de câncer. Ele afirmou que adquiria a matéria-prima para os venenos na Europa e EUA e utilizava um vidro de perfume Chanel nº 5 contendo gás sarin, veneno usado pelos nazistas, incolor e inodoro, cujas vítimas apresentam sintomas de um ataque do coração.

Ele não deu nomes, mas um dos primeiros episódios de envenenamento parece ter sido o do general Augusto Lutz, desafeto de Pinochet e de Contreras, ainda em 1974. Internado no Hospital Militar para tratar uma suposta infecção intestinal, Lutz faleceu de septicemia dias depois. Sua família desconfia de assassinato. Segundo ela, que não pôde visitar o militar, ele teve um mal-estar logo após ter participado de um banquete oferecido pelo ditador.

Outra morte que foi investigada, mas segue sem conclusão, ocorreu simultaneamente ao episódio da Cárcere Pública.

Em novembro de 1981, às vésperas de embarcar para um encontro internacional, o ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva decidiu operar uma hérnia de hiato que lhe provocava refluxo. Foi internado na Clínica Santa María, a mesma onde esteve Neruda. Inicialmente simples, a cirurgia teve complicações que o obrigaram a se submeter a uma segunda operação em 6 de dezembro. Entretanto, um quadro infeccioso o levou a nova intervenção cirúrgica, dois dias depois.

Em 18 de janeiro de 1982, Frei Montalva faleceu, vítima de septicemia. O médico que o operou era o mesmo que esteve com o general Lutz.

No ano de 2000, a família do ex-presidente solicitou a investigação de sua morte como homicídio. Numa primeira análise, a investigação sobre Montalva detectou a presença de tálio e gás mostarda em amostras de seus tecidos. Porém, em agosto de 2023, quando apreciada na segunda instância, a sentença foi anulada por alegados resultados inconclusivos dos exames.

Justiça

A decisão relativa à Cárcere Pública expedida em 2021 pela Justiça chilena foi revisada e finalmente ditada pela Corte Suprema em 29 de dezembro de 2023. Os médicos e ex-oficiais Eduardo Arriagada Rehren e Sergio Rosende Ollarzú e o ex-oficial Jaime Fuenzalida foram condenados a penas de 15 anos e um dia de reclusão, enquanto o alcaide Ronald Bennett Ramírez, como cúmplice, a 10 anos e um dia de presídio.

Rehren e Ollarzú tiveram seus cargos de médicos cassados. Joaquín Larraín Gana, condenado à pena de 15 anos, faleceu durante o processo.

Após a ordem de prisão despachada em janeiro para cumprimento da pena, Arriagada Rehren, que clinicava até meses atrás, não foi encontrado e se tornou foragido da Justiça.

“No nosso caso, os participantes de homicídios e tentativas de homicídios foram condenados em primeira e segunda instância”, relata Guillermo Rodríguez.

Ele diz que um terceiro preso comum, Edgardo Flandes Soto, faleceu há alguns anos e seu corpo foi encontrado sem identificação no necrotério.

“A hipótese é que foi ele quem contaminou a comida, dado que foi descartado como intoxicado, e posteriormente foi assassinado para cortar o fio de investigação.”

Flandes Soto faleceu em 2008, mesmo ano em que a cientista Ingrid Heitmann encontrou as caixas de toxinas no porão do ISP.

Hoje um escritor com vários livros publicados, o ex-militante diz carregar problemas crônicos de saúde, como distúrbios respiratórios que requereram operação com laser em sua garganta. “As sequelas foram câncer de cólon em 2010, pancreatite em 2015, e até hoje problemas na visão por úlcera de córnea.”

Considerado “uma operação especial de inteligência” e “um crime com caráter de lesa-humanidade”, o episódio na Cárcere Pública é por ora o único caso comprovadamente de uso de Clostridium botulinum advindo do Butantan.

A possível ligação do Instituto com a morte de Pablo Neruda é um “ponto interessante”, segundo Gloria Ramírez Donoso, coordenadora do Painel de Especialistas Internacionais de investigação da causa da morte do escritor.

Uma injeção misteriosa levanta suspeitas sobre a morte de Neruda

Há 11 anos ocorreu a primeira exumação dos restos mortais de Neruda, após seu motorista, Manuel Araya, ter revelado que o poeta fizera uma chamada da clínica. “Às 16h, Neruda ligou para o único telefone em Isla Negra, na hospedaria em frente à sua casa, e relatou que aplicaram injeção em seu abdômen, lugar não habitual para usar um suposto analgésico”, descreve a dra. Gloria Ramírez. “Ele sobreviveu aproximadamente por seis horas”, detalha.

Gloria Ramírez considera o fato de o Butantan pesquisar o tipo E da toxina no mesmo período da morte de Neruda um “ponto interessante”, pois, “quando o antigo Instituto Bacteriológico foi assumido na época do golpe militar, ocorreram diversas mudanças de diretor civil para militar, depois alteração de nome, de regulamentação e linha de produção”, conta. “Deve haver em algum registro físico do Congresso Nacional os papéis que respaldam os itens de produção, exportação, importação e insumos como material microbiológico, por exemplo, do Butantan. Até hoje não temos evidências disso.”

“É uma pista importante”, avalia. “Creio que as informações sobre o Brasil deveriam ser apresentadas pelos advogados de defesa.”

O terceiro painel de investigações de cientistas liderado por ela descartou o câncer como causa de falecimento do poeta e indicou que o genoma da bactéria preservado em seu único molar intacto era da cepa Alaska E43. Não se sabe se a cepa chegou a ser utilizada no Butantan, uma vez que não foram encontrados nos arquivos do instituto registros das cepas tipo E estudadas em 1972 e 1973.

Cabe ressaltar que a CIA manteve botulina e armas químicas estocadas, mesmo após o tratado de 1972, segundo documento desclassificado dos EUA.

Em 19 de fevereiro, a Corte de Apelações de Santiago ordenou a reabertura da investigação da morte de Neruda. Eduardo Arriagada Rehren está intimado a declarar sobre seu trabalho de inteligência relacionado a Clostridium botulinum.

A ex-senadora Carmen Frei aguarda o desfecho dessa causa para reabrir o caso de seu pai.

Comissão da Verdade pesquisou a toxina na morte de Goulart

Clostridium botulinum esteve na pauta da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e foi uma das substâncias procuradas na análise pericial dos restos mortais do ex-presidente João Goulart, em 2014.

“Apesar da primeira análise da exumação ter sido inconclusiva, houve a presença de um composto que não poderia estar ali”, declara João Vicente Goulart, que diz possuir documentos que relacionam a morte de seu pai à Operação Andrea. Segundo o pesquisador Jair Krischke, especialista em Operação Condor, o composto seria tetranitrato de eritritol, usado também como vasodilatador.

Goulart faleceu de ataque cardíaco na Argentina, em 6 de dezembro de 1976, ano das mortes do presidente boliviano Juan José Torres, do diplomata chileno Orlando Letelier e do ex-presidente brasileiro Juscelino Kubitschek. Um ano antes, o chefe da Dina Manuel Contreras (também ligado à CIA) enviou uma carta ao então chefe do SNI João Baptista Figueiredo, alertando que JK e Letelier poderiam influenciar a “estabilidade no Cone Sul”.

Um relatório da CNV registrou que o nome de Jango constava de uma lista da Operação Condor. Na época, dois agentes da operação, ligados à Central Nacional de Informação (CNI), trabalhavam na embaixada do Chile em Brasília.

Um dos membros-chave do Projeto Andrea, o químico Eugenio Berríos foi associado à suspeita morte de Goulart, no decorrer das investigações da CNV.

Para Adriano Diogo, ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, “o Butantan pode ter produzido substâncias usadas em Neruda”.

“Por causa da Operação Condor, levantou-se a hipótese de os venenos feitos no Chile terem sido usados em vários casos, como no [ex-presidente chileno] Frei Montalva, em João Goulart e Carlos Lacerda”, diz ele, complementando que as investigações foram inconclusivas.

Ex-governador de Guanabara, Carlos Lacerda compunha uma frente de oposição à ditadura com Jango e JK e morreu de infarto numa clínica meses após os ex-presidentes.

Documentos do SNI demonstram que toxinas e soros estavam de fato no radar do órgão, segundo levantamento feito pela reportagem da Pública no Arquivo Nacional.

Nesse caso, apesar de destruídos em 1980, seus títulos foram mantidos numa lista pelo SNI que hoje está em posse do Arquivo Nacional.

Em meio a documentos eliminados sobre Allende, Neruda, Jango e Contreras, despontam enunciados como “Uso toxinas atividades SDS EUA”, “Proveniente da Sec 2 Ativ Laboratórios Farmacêuticos Americanos” e “CEME Fabricação Soro Efeitos Pirogênicos”.