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Filha da Raul Castro, Mariela, é referência em Cuba no combate ao patriarcado

Filha de Vilma Espin e Raul Castro conta sobre a história da luta das mulheres na Revolução Cubana

Habana (Cuba) |
Mariela Castro Espín - Nieves Molina Fleites

Mariela Castro Espín cresceu em uma família que dedicou toda a sua vida à Revolução Cubana.  Apesar dos constantes ataques promovidos pela imprensa internacional, ela carrega o duplo sobrenome de sua família com orgulho e admiração.  

Filha do ex-presidente Raúl Castro e da falecida Vilma Espín, fundadora e líder da Federação das Mulheres Cubanas. Sendo muito jovem, Mariela se interessou pela política revolucionária de seu país.  

Sentada em uma grande sala no primeiro andar do Centro Nacional de Educação Sexual, Mariela olha para uma icônica foto de sua mãe pendurada na parede, enquanto ri dizendo que, como em todas as famílias  as discussões políticas às vezes também se tornavam acaloradas aos domingos. A semelhança com o sorriso de Vilma é inconfundível.

Comenta que, quando ainda era criança, aprendeu que Fidel Castro era muito mais do que seu tio. O que lhe causou, até hoje, uma distância de respeito e admiração. Embora não esconda o carinho com que fala toda vez que o menciona. 

"Cresci em uma época privilegiada, rodeada de um povo em revolução. Me sinto muito grata por isso, pois em todo lugar havia um professor ou um mestre que me ensinava alguma coisa. Cada vez que acompanhava minha mãe a algum lugar, alguém aparecia na rua para cumprimentá-la e então ela me contava alguma anedota dos anos da clandestinidade ou da guerra revolucionária", diz Mariela Castro Espín ao Brasil de Fato.   

Desde o ano 2000, Mariela é diretora do Centro Nacional de Educação Sexual (CENESEX). Explica que o centro é "o resultado do trabalho realizado ao longo de muitos anos pela Federação de Mulheres Cubanas em seus esforços para gerar consciência crítica sobre o que herdamos como uma cultura patriarcal, homofóbica e transfóbica". 

Fundado em 1988, como uma unidade especializada do Ministério da Saúde, o CENESEX tem como objetivo promover a educação sexual com base no "paradigma emancipatório do socialismo", considerando as perspectivas sócio-históricas da sexualidade, bem como suas bases biológicas. 

Ao longo do ano, realiza atividades de conscientização e sensibilização sobre vários tópicos relacionados à saúde sexual, identidade de gênero e diversidade sexual.

"O objetivo do nosso trabalho leva em conta que as leis, por si só, não garantem direitos e não transformam consciências. Embora as leis sejam indispensáveis, transformá-las e atualizá-las é essencial, mas isso deve ser acompanhado de um processo muito mais rigoroso e permanente de educação e comunicação", enfatiza Mariela.

Primeiros passos   

Com base nas experiências adquiridas pela Federação de Mulheres Cubanas desde meados da década de 1970, Vilma Espín começou a promover espaços destinados a aumentar a conscientização sobre os direitos de identidade de gênero e diversidade sexual. Sua intenção era abrir debates tanto na sociedade quanto no próprio Partido Comunista Cubano. 

"Minha mãe era uma mulher realmente criativa. Ela era uma das pessoas que sabia ouvir e articular o que vinha das preocupações populares para levá-las à organização e, de lá, ao partido. Ela tinha uma sensibilidade especial para colocar essas preocupações na política", diz Mariela. 

Consciente dos vários avanços que haviam sido feitos em diferentes partes do mundo em termos de identidade de gênero e direitos de diversidade sexual, Vilma entrou em contato com profissionais da República Democrática Alemã, que questionavam a patologização da homossexualidade.

Entrou em contato e convidou professores, sexólogos, médicos, pedagogos que trabalhavam com essas questões. E assim foram publicados livros que ajudaram a conscientizar a população sobre essas questões. Ou, pelo menos, começaram a discuti-las. 

Assim, apesar dos preconceitos ainda existentes, conseguiu que na década de 1980, a educação sexual fosse introduzida nas escolas de pedagogia, seja para formadores de professores, educadores de círculos infantis ou professores de institutos de ensino superior. 

Nessa mesma época, em 1988, uma equipe de especialistas cubanos realizou com sucesso a primeira cirurgia de redesignação genital em uma pessoa transexual. No entanto, a notícia gerou um alvoroço público de reclamações e discussões na sociedade. Isso levou a uma interrupção dessas operações por vários anos. 

Em 1988 o CENESEX foi criado e Mariela começou a trabalhar no centro na década seguinte até se tornar sua diretora em 2000. Naqueles anos, foi a primeira vez que ela entrou em contato com comunidades transgênero. 

"No início, muitas pessoas transgênero vinham como pacientes, para tomar medicamentos ou para receber aconselhamento", lembra Mariela. Foi esse contato diário com as comunidades que lhe despertou a vontade de trabalhar com o tema.

"Uma das primeiras coisas que fizemos foi nos aproximar delas e sugerir que elas mesmas fossem promotoras de saúde sexual na prevenção de doenças como o HIV nas comunidades. E, com o passar do tempo, começamos a nos oferecer para começar a trabalhar no ativismo dos direitos da diversidade sexual", lembra ela.   

"Muitas vezes as pessoas dizem que o mundo não pode ser mudado, que é uma loucura. Quantas mulheres já foram chamadas de loucas? Até mesmo, muitas vezes, dentro das forças de esquerda, as mulheres revolucionárias foram rotuladas como loucas, ou mulheres que tinham ideias muito avançadas. E, no final das contas, ser revolucionário é lutar por coisas que parecem impossíveis.

Sem mulheres não há revolução

Apenas cinco meses haviam se passado desde o triunfo revolucionário quando, em maio de 1959, a Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) fez um convite para que Cuba participasse do Primeiro Congresso Latino-Americano de Mulheres. O evento seria realizado em Santiago do Chile, em novembro daquele ano, com o objetivo de alcançar pontos de vista comuns sobre as lutas das mulheres. 

Naqueles dias, Cuba era um verdadeiro caldeirão. A efervescência popular estava em toda parte. Praças, ruas e locais de trabalho haviam se transformado em cenários de debates fervorosos. Camponeses, operários, donas de casa, desempregados e estudantes faziam parte dos milhares de pessoas que se reuniam para discutir o destino de sua nascente revolução.

As mulheres combatentes que haviam participado da guerra revolucionária começaram a fazer cursos de primeiros socorros. Procuravam encontrar meios para reunir mulheres que quisessem colaborar com a revolução. Também começaram a oferecer cursos de costura para donas de casa, para que pudessem aprender um ofício com o qual pudessem trabalhar e se tornar economicamente independentes.  

Foi nesse contexto que Vilma Espín utilizou o convite para participar do Congresso Latino-Americano de Mulheres como oportunidade para ampliar redes de participação entre grupos de mulheres que estavam próximos ao movimento revolucionário. Tanto no campo como nas cidades, foram criados "comitês patrocinadores do congresso chileno" que, na prática, começaram a funcionar como espaços para discutir as necessidades e os problemas das mulheres. 

A delegação cubana foi a maior dentre as que viajaram para a reunião em Santiago do Chile. Com uma representação de 88 mulheres, a delegação era chefiada por Vilma Espín, Aleida March, entre outras combatentes. Todos os relatos da imprensa sobre o congresso mostram o interesse das diversas delegações em conhecer em primeira mão a nascente revolução que estava ocorrendo naquela pequena ilha do Caribe. 

Por outro lado, apesar dos relatos sobre a "revolução dos homens barbudos", a presença dessas guerrilheiras demonstrou que as mulheres não se limitaram a acompanhar o processo revolucionário, mas, acima de tudo, foram protagonistas.

A reunião permitiu que a delegação cubana se conectasse com "as tendências globais na luta pela igualdade de direitos para as mulheres", explica Mariela Castro Espín. 

Em seu retorno a Cuba, a delegação participante criou o Congresso de Mulheres Cubanas pela Libertação da América Latina. Uma associação que reuniu todas as organizações de mulheres revolucionárias cubanas para dar continuidade aos acordos feitos em Santiago do Chile.
 


Celia Sanchez com Vilma Espin / Arquivo Cubadebate

Uma revolução dentro da revolução

Em 23 de agosto de 1960, a Federação das Mulheres Cubanas (FMC) foi formalmente constituída como a união de todos os grupos de mulheres revolucionárias pré-existentes. A celebração foi realizada no teatro Lázaro Peña, em Havana, onde Vilma Espín foi eleita a primeira presidente da nascente Federação. 

"Todo esse primeiro período foi uma grande incorporação das mulheres à participação política", diz Mariela. 

"A Federação das Mulheres foi criando medidas em favor dos direitos das mulheres e, ao mesmo tempo, facilitava a participação das mulheres nas transformações revolucionárias. Eram medidas que vinham delas mesmas, propostas por elas mesmas. Isto provoco enorme avanço na participação e na autonomia das mulheres como sujeitos de direitos”. 

Assim, surgiram várias iniciativas para tratar os graves problemas de saúde enfrentados pelas mulheres, especialmente as mais pobres que, na época, constituíam a grande maioria da população. 

"Uma das primeiras coisas em que a Federação trabalhou foi a educação sobre saúde reprodutiva. A maioria das pessoas, principalmente entre os pobres, não conhecia os métodos contraceptivos. Estimava-se que a taxa de mortalidade entre as mulheres era gigantesca. Portanto, comunidade por comunidade, a Federação, juntamente com o Ministério da Saúde Pública, começou a fazer um trabalho de conscientização e educação".

Cuba foi o primeiro país da América Latina e do Caribe a descriminalizar o aborto. Em 1965, foi criada a base legal para que as mulheres pudessem fazer aborto no sistema público de saúde. A extensão da educação sexual, a aquisição de métodos contraceptivos e, finalmente, a legalização do aborto no sistema público levaram a uma redução significativa da mortalidade entre as mulheres: a mortalidade materna, que em 1959 era de 120 por 100 mil nascidos vivos, em 1966, apenas um ano após a adoção das medidas, havia caído para a metade, 60.

"Nessa primeira fase, as transformações se concentraram na melhoria da saúde das mulheres, no fim do analfabetismo e na incorporação delas ao mundo acadêmico e profissional em cargos considerados masculinos. Nesse processo, as mulheres foram incorporadas maciçamente à vida social e política, lugares onde, até então, não lhes era permitido estar", diz Mariela. 

Como em qualquer processo histórico, as mudanças sociais e culturais também geraram resistência. "Muitas pessoas, principalmente homens, tinham contradições com essas mudanças que estavam ocorrendo. Há inúmeras crônicas narradas nas canções de Los Van Van ou no cinema cubano da época que refletem o desconforto ou as tensões que os homens sentiam diante dos avanços das mulheres. Isso é normal.

Apesar das grandes conquistas alcançadas, Mariela ressalta que ainda há muito a ser feito. O machismo ainda faz parte da cultura. Enquanto a divisão sexual do trabalho ainda significa que o trabalho de cuidado na vida familiar continua recaindo principalmente sobre as mulheres. 

 


Mariela Castro Espín / Nieves Molina Fleites

Que o amor seja a lei    

Após vários anos de intensas discussões, com campanhas a favor e contra, no final de setembro de 2022, Cuba realizou um referendo popular no qual foi votada a modificação do Código da Família, que estava em vigor na ilha desde 1975. O novo código introduziu uma série de direitos ampliados que reconhecem a diversidade das famílias existentes. 

Mas o processo de debate também mostrou a força que o neoconservadorismo conseguiu alcançar no país. Poucas vezes Cuba passou por uma disputa política pública tão acirrada como a que marcou o referendo sobre o Novo Código da Família. 

"Vivi o processo com muita tensão. Acompanhei de perto cada debate, tudo o que saiu nas redes sociais, até mesmo cada artimanha suja que grupos contrarrevolucionários ou algumas igrejas nos pregaram com mentiras para que não conseguíssemos aprová-lo", lembra Mariela. 

Antes de ser finalmente redigido, o Código das Famílias teve 25 versões. Ao longo de três anos e meio, o texto foi debatido com diferentes ativistas da sociedade civil para introduzir modificações até que o texto fosse finalmente votado.

Depois de muito debate e construção de consenso entre os setores favoráveis à expansão dos direitos, o texto final reconhece o direito ao casamento para pessoas do mesmo sexo e à adoção homoparental, ao mesmo tempo em que concede direitos multiparentais, a proibição explícita de todos os tipos de discriminação com base na identidade de gênero, o reconhecimento da possibilidade de barriga de aluguel (apenas como um gesto de solidariedade), o reconhecimento progressivo da autonomia das crianças, entre outras coisas.

"Entre o código de família de 1975 e o código de família de 2022, a mudança cultural é enorme. Eu sempre digo que a diferença entre os dois é que o novo código de família pensa nas famílias no plural", reflete ela.    

Mariela se lembra do nervosismo enquanto aguardava os resultados. As lembranças de todos os anos à frente do CENESEX trabalhando em processos de conscientização e sensibilização. Todos os companheiros de viagem com quem ela compartilhou tantas lutas na esperança de construir um pedacinho de futuro melhor. Suas histórias de vida, sofrimentos, sonhos e esperanças com os quais ela construiu tão intensamente. "De vez em quando, eu me perguntava o que faria se eles votassem contra", lembra. 

Finalmente, em 25 de setembro de 2022, o "Sim" ao novo Código representou 66,85% dos votos válidos. Dessa forma, Cuba deu um passo importante na luta pela igualdade. 

"Quando o código da família foi aprovado, é claro que a primeira coisa em que pensei foi em minha mãe. Depois de tudo pelo que ela trabalhou, senti que finalmente havia conseguido", diz com uma voz que se comove.

"Meu pai estava muito emocionado. Ele disse que todas essas eram tarefas nas quais a minha mãe havia se envolvido muito: tentando influenciar com todas as suas forças, especialmente dentro do partido, para que fosse entendido que era necessário avançar nessas questões e, ainda assim, o processo havia sido muito enriquecido. Ele foi muito além do que minha mãe estava propondo. A população contribuiu. As pessoas escreveram esses documentos, com seus corações, suas mãos e sua sabedoria. 

Mariela não duvida quando lhe perguntam sobre o futuro. Ela diz que sempre há mensagens a serem trabalhadas e mudanças a serem feitas. Repetidamente, ela afirma que o desafio mais difícil que a luta pelo socialismo enfrenta é o de transformar as subjetividades.  

"Da mesma forma que nós, como povo, temos muito orgulho de nossas conquistas revolucionárias, também temos consciência e somos críticos em relação ao que não conseguimos fazer, ao que não conseguimos resolver. O que temos que mudar nas circunstâncias atuais. Se não formos críticos, não seremos revolucionários".

Edição: Rodrigo Durão Coelho