Cerca de cinco meses depois de terem erguido, em mutirão, uma grande casa de reza circular no território retomado de Kunumi Verá, na cidade de Caarapó (MS), indígenas Guarani Kaiowá organizam-se para construí-la inteira de novo. Na última quinta-feira (22), a oga pissy (casa de reza, em guarani) foi queimada e reduzida a pó. Os autores do incêndio ainda não foram identificados.
A comunidade de Kunumi construiu a casa ao longo de três meses para, em novembro do ano passado, sediar a Aty Guasu (grande assembleia Guarani Kaiowá) em homenagem a Marçal de Souza Tupã’i, no marco dos 40 anos de seu assassinato. Morto a tiros em sua casa no Mato Grosso do Sul, Marçal foi um dos pioneiros da organização dos povos indígenas como movimento social no Brasil.
Agora, com uma campanha de contribuições voluntárias pelas redes sociais, os Guarani Kaiowá arrecadam recursos para botar de pé, uma vez mais, a casa de reza que tinha sua inauguração oficial prevista para julho.
"Foi uma luta imensa para a gente construir e acabou que a gente não chegou a inaugurar. Queimaram antes", lamenta Simão Kaiowá, uma das lideranças responsáveis pela construção. "Não temos dinheiro o suficiente para reconstruir. Então a gente precisa muito de apoio. Mas vamos reerguer", garante.
Esta oga pissy foi feita, entre outras, por mãos de sobreviventes do Massacre de Caarapó. Simão é um deles. Foi neste mesmo local que, em 2016, em resposta à retomada de um território tradicional sobreposto pela Fazenda Yvu, indígenas foram atacados por cerca de 70 pessoas armadas.
Os pistoleiros se encontraram na sede da Coamo, uma das maiores cooperativas agroindustriais da América Latina. O ataque foi feito a mando dos fazendeiros Nelson Buainain Filho, Virgílio Mettifogo, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga. O indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi assassinado, outros seis se feriram e um foi preso.
Para Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a construção da casa de reza neste território faz parte, inclusive, de um processo de cura daqueles que vivenciaram o episódio.
"A partir delas que se anda"
"A casa de reza é muito importante para nós. Quando se queima, queima a nossa vida, nossa alegria, nossa tradição", explica Simão Kaiowá.
"As casas de reza são o epicentro do mundo Kaiowá, é a partir delas que se anda", resume Hampel. "Para além de um templo espiritual, como a gente faria em uma analogia tentando aproximar do nosso mundo, ela é o local de transmissão de conhecimento, que conta histórias, que ensina, que abriga os encantados que harmonizam o mundo."
Avanço do agro e das igrejas
Esta é a 17ª casa de reza incendiada no Mato Grosso do Sul em apenas quatro anos. "É por isso que tem que falar das casas de reza que estão queimando. Porque aqueles que querem continuar com o esbulho dos povos indígenas, ao impedir o caminhar de suas formas tradicionais, buscam fazer com que não entrem na linha de frente contra as monoculturas que estão sobre seus territórios", avalia.
Assim, para o indigenista, a recorrência dos incêndios e a perseguição a rezadores é impulsionada e se alimenta, por um lado, pelo avanço do agronegócio sobre territórios indígenas, em especial por práticas de arrendamento.
Por outro lado, complementa Hampel, "tem um aspecto ideológico, que é o da teologia da prosperidade, professado por indígenas e não indígenas ligados a igrejas neopentecostais".
"Uma coisa dá sustentação para a outra e acaba montando um mecanismo propulsor desse processo de dessacralização do território, tentando colocar sobre ele essa lógica da prosperidade e do lucro", sintetiza.
"O importante é que, para além de qualquer expectativa de que algum golpe será grande o suficiente para parar a determinação desse povo, isso jamais acontece", ressalta o integrante do Cimi: "Assim os Kaiowá têm feito também com suas próprias vidas. A cada massacre, a cada golpe, se levantam, ficam de pé e caminham".
Edição: Matheus Alves de Almeida