No começo de fevereiro, um avião venezuelano da companhia estatal Emtrasur que estava retido havia um ano e meio na Argentina foi apreendido pelos Estados Unidos e levado para a Flórida. Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que todas as etapas da apreensão, desde as acusações, até as medidas tomadas pelos governos argentino e estadunidense, desrespeitam as normas do direito internacional.
O voo para os EUA foi apenas um dos episódios de uma tensão diplomática que pode virar disputa judicial nos próximos meses. O Boeing 747 foi retido no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, em junho de 2022 por causa de um tratado de cooperação judicial entre a Argentina e os EUA.
O avião foi impedido de abastecer e voltar para a Venezuela. Precisando de combustível, a tripulação tentou ir para o Uruguai, mas teve o pouso negado no país. Nesse momento foi a primeira violação à Convenção da Aviação Civil Internacional, que regula o transporte aéreo. Para deixar Buenos Aires e ir à Montevidéu, o avião teve autorizado seu plano de voo pela Rede Fixa de Telecomunicações Aeronáuticas (AFTN), o sistema internacional para comunicação de aeronáutica.
De acordo com o anexo 11 da convenção, a comunicação e aprovação do plano de voo deve ser cumprido pelas partes. A aeronave então retornou a Buenos Aires e lá ficou presa até ser apreendida pelos Estados Unidos.
::O que está acontecendo na Venezuela?::
Para Jorge Alvarez Mendez, professor de direito internacional da Universidade Católica Andrés Bello e ex-piloto de avião, o avião estava regularizado e tinha todas as condições para receber combustível e deixar a Argentina.
“O avião cumpriu todas as normas que se exigem. Pediu seu plano de voo, cumpriu seu plano de voo, a mercadoria era a que aparecia descrita nos manifestos de carga, a tripulação tinha suas licenças autorizadas pela autoridade aeronáutica da Venezuela. Então como explicamos a conduta que se seguiu com o avião? Como entender que o convênio da aviação civil internacional é um conjunto de leis mortas? Não. A segurança se respeita. Nós nos guiamos sempre pelas normas internacionais”, disse.
Tripulação iraniana
O primeiro argumento para a apreensão da aeronave foi que os 5 iranianos integrantes da tripulação do avião haviam participado de um atentado ao prédio da Associação Mutual Israelita Argentina que ocorreu em Buenos Aires, em 1994, e matou 85 pessoas. Eles ficaram presos em um hotel próximo ao aeroporto de Ezeiza. A acusação não se comprovou e eles foram liberados com os outros 14 tripulantes.
Outro motivo alegado para a retenção da aeronave é porque o Boeing 747 foi fabricado nos EUA, vendido para a França, revendido ao Irã e depois à Venezuela. De acordo com a advogada e especialista em direito internacional Ana Cristina Bracho, os EUA não reconhecem a venda do Irã para a Venezuela por serem dois países sancionados, o que é importante para entender essa disputa. A aeronave, no entanto, está regularizada junto à Associação Internacional de Aviação Civil.
“A Venezuela já demonstrou em vários momentos a posse dessa aeronave e de que as transações foram feitas. Já explicou também que a presença de iranianos na tripulação se deve ao fato de que a transação foi feita recentemente e que havia uma transferência tecnológica, um know how, porque a Venezuela não tinha um avião dessa tecnologia. Os EUA de fato mencionaram que vão transformar (o avião) em sucata, e disseram que para eles é uma ação exemplar de como países que eles consideram inimigos não podem se beneficiar de tecnologias ou objetos que foram criados por eles”, explica a advogada.
Acordos e tratados
Um elemento crucial nesta história é a cooperação judicial entre Argentina e EUA. A Venezuela não faz parte do acordo entre esses países, o que gera outro problema jurídico.
Segundo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, “um tratado não cria obrigações nem direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento”. O texto assinado em 1969 que regula os procedimentos para acordos e tratados internacionais,
Bracho também enfatiza que o artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura o trânsito de pessoas para sair e voltar ao próprio país.
“Quando eu gero esse tipo de medida sobre a aviação civil, estou condicionando o direito de comércio de um país, mas também da sua população, da capacidade de sua população de se deslocar. Essa é a diferença talvez em relação a outros casos que têm precedentes dos EUA já terem tomado um navio petroleiro de outra bandeira”, disse ao Brasil de Fato.
Crise diplomática
O conflito acentuou a crise diplomática entre Venezuela e EUA. O ministro das Relações Exteriores venezuelano, Yván Gil, chamou a decisão dos EUA de “roubo” do avião. Disse que foi um ato de “pirataria internacional” e reforçou que não há justificação jurídica.
A relação entre Argentina e Venezuela também ficou estremecida com esse episódio. Para Ana Cristina Bracho, não havia nenhum conflito entre os dois países, que estavam cultivando boas relações diplomáticas. De acordo com ela, a única coisa que levou a uma tensão entre os países foi a negativa de Buenos Aires de abastecer o avião. Com isso, os EUA pediram a abertura de uma investigação no tribunal de Columbia sobre a aeronave.
“Não havia antes uma medida estadunidense específica sobre a aeronave. Se aplicou uma das medidas que EUA vêm impondo à Venezuela. Isso ajuda a entender como funcionam os bloqueios modernos que se dão através de medidas coercitivas unilaterais. Não funcionam no sentido de que o país que as impõe nega ou restringe algo ao país sancionado. Elas ainda garantem que esse país que sanciona será o único país que terá relações comerciais ou de qualquer outra natureza com o país sancionado”, afirmou Bracho.
Para tentar ter o avião de volta, a Venezuela pode entrar com uma ação na Corte Internacional de Justiça. Até agora, o país adota a estratégia de fazer uma denuncia junto ao Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU - coletivo de 17 países liderado pela China que defende as resoluções das Nações Unidas.
Para Ana Cristina Bracho, a apreensão do avião serve como um recado dos Estados Unidos para os países sancionados.
“Nunca se conseguiu encontrar um elemento de delito neste voo. O que se conseguiu é uma lição dos EUA para afirmar que as sanções não se podem deixar de lado e o recado de que não podem haver relações sobre bens que eles não autorizam”, disse Bracho.
Edição: Rodrigo Durão Coelho