Enquanto generais e ex-ministros militares do governo Bolsonaro e o próprio ex-presidente tiveram que prestar contas à Polícia Federal nos últimos dias sobre uma suposta tentativa de golpe para manter Jair Bolsonaro no poder em 2022, o coronel responsável por chefiar o Batalhão da Guarda Presidencial do Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro de 2023 está em viagem ao exterior a trabalho. Ele participa em Madri, na Espanha, de um curso de altos estudos militares por indicação do governo brasileiro e deve atuar como instrutor no país europeu.
Trata-se de Paulo Jorge Fernandes da Hora, que chegou a ser filmado discutindo com a tropa de choque da PM do Distrito Federal sobre a prisão dos manifestantes golpistas que haviam depredado o Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. Atualmente ele é um dos alunos da 21ª edição do Curso de Altos Estudos Estratégicos para Oficiais Superiores Ibero-americanos realizado no Ceseden (Centro Superior de Estudos da Defesa Nacional, em tradução livre), principal centro de formação das Forças Armadas da Espanha. Após o curso, ele deve atuar ainda como instrutor no centro. Procurado, o militar informou que não iria se pronunciar a respeito da viagem.
A reportagem tenta contato com o Ceseden por e-mail desde o fim de janeiro. Sem resposta do órgão, a reportagem contatou a embaixada da Espanha, que respondeu a algumas das perguntas. Questionada se o Ceseden tinha conhecimento sobre o episódio envolvendo o coronel brasileiro e porque aceitaram um militar que não impediu a depredação do Palácio do Planalto, a embaixada da Espanha respondeu que a seleção da turma do curso ocorreu dentro da "normalidade".
"Essa seleção ocorreu dentro do funcionamento normal e ordinário dos programas de intercâmbio e treinamento entre os Ministérios da Defesa da Espanha e do Brasil, de acordo com a atual estrutura jurídica bilateral e sempre sob proposta do Ministério da Defesa do atual governo brasileiro", afirmou a embaixada por e-mail.
Viagens pela Europa
Criado com o objetivo de aprimorar a formação de militares de alta patente dos países iberoamericanos e permitir o compartilhamento de experiências entre eles, o curso é dividido em seis módulos sobre o sistema de Defesa espanhol e europeu, que incluem debates sobre "Planejamento de Defesa", "Cultura e Sociologia da Defesa", "Economia e Indústria da Defesa", "Situação mundial, relações internacionais e panorama estratégico geral", além de visitas a unidades das forças armadas espanholas e da guarda civil daquele país.
A programação inclui pelo menos duas viagens pela Espanha, sendo uma delas para Salamanca, tradicional cidade universitária espanhola. La, os integrantes do curso participam de um seminário da Universidade de Salamanca que conta com a participação do Instituto de Defesa Nacional de Portugal.
A turma do curso do Ceseden é formada por militares de alta patente (coronéis, generais, almirantes e capitães de navio) indicados pelos seus países por meio de uma parceria entre o Ministério da Defesa espanhol e os ministérios das defesas dos demais países da América Latina e Europa. Na edição deste ano participam 36 alunos, sendo militares da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Paraguai, Peru, Venezuela, Uruguai, República Dominicana, além de Portugal e Espanha.
Também participam desta edição um diplomata espanhol e dois representantes da indústria de Defesa espanhola. O Ceseden não informou quem são.
Prestígio para promoções
A reportagem conversou com especialistas da área militar que veem a prática como um intercâmbio comum realizado entre países que adotam uma doutrina militar semelhante. "Estes tipos de cursos são normais entre forças armadas, para se ter troca de estratégias dentro de um mesmo espectro político. Eles são uma forma de indicar que um país é parceiro estratégico do outro", explica a professora aposentada da Unesp e pesquisadora do CNPq especialista na área militar, Suzeley Kalil.
Segundo a especialista, ainda que possam ser solicitadas em qualquer etapa da carreira, é mais comum que este tipo de viagem de intercâmbio seja feito por coronéis ou tenentes-coronéis, que estão já no fim da carreira militar e buscam esse tipo de qualificação para ajudar a pleitear postos de generais.
Pela programação do curso, as aulas são realizadas de 8h30 às 14h de segunda a quinta-feira e às sextas terminam as 13h. Além disso, estão previstas a participação dos alunos em foros de debate, conferências e colóquios, alguns na parte da tarde.
No caso do coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora a designação para o curso foi feita pelo comandante do Exército ainda em 2022 e foi mantida mesmo com os episódios do 8 de janeiro.
Segundo a embaixada espanhola, o coronel foi nomeado para participar do curso pela Chefia de Assuntos Estratégicos do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas em 1 de junho de 2023, menos de seis meses depois do 8 de janeiro. O curso começou no dia 18 de setembro do ano passado e, segundo a embaixada da Espanha, está previsto que o coronel participe do curso durante todo o ano acadêmico. O Exército, por sua vez, não informou quanto tempo ele ficará na Espanha
Paulo Jorge foi designado para atuar como instrutor do Ceseden após o fim do curso. A embaixada da Espanha, porém, não explicou como se dará essa atuação.
A reportagem questionou ao Exército brasileiro o motivo de Paulo Jorge ter sido enviado à Espanha. Em resposta, a Força apenas mencionou que ele foi designado para participar do curso no país europeu por uma portaria do Comandante do Exército de 20 de junho de 2022, e que essa escolha é uma discricionariedade do comandante do Exército. A reportagem também questionou o Ministério da Defesa sobre a escolha dele mesmo após a depredação ocorrida no 8 de janeiro. A pasta, porém, solicitou que a demanda fosse encaminhada ao Exército.
Militar teve que se explicar à CPMI
Se no Exército Paulo Jorge conseguiu seguir sua carreira sem percalços após o 8 de janeiro, fora dele o militar precisou se explicar sobre o bate-boca que teve com a tropa de choque da PM do DF, acionada para prender os manifestantes depois que os prédios da Praça dos Três Poderes haviam sido depredados. A CPMI do 8 de janeiro cobrou explicações do militar que, em ofício, afirmou que a discussão teria se dado pelo fato de a PM do DF ter lançado bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral depois que os manifestantes já estavam controlados no Palácio do Planalto.
"Após a situação ter sido controlada no interior do Palácio, uma fração da Polícia Militar do Distrito Federal adentrou às instalações sem coordenação prévia com o BGP, utilizando granadas de efeito moral e de gás lacrimogênio. Tal fato deflagrou uma discussão entre o Comandante do BGP e os policiais militares. Posteriormente, a situação foi contornada após um integrante do GSI ter informado que, por ordem do Ministro do GSI, a partir daquele momento, a PMDF passaria a realizar as prisões dos manifestantes que se encontravam no interior do Palácio", afirmou Paulo Jorge em ofício encaminhado à CPMI. O militar não figurou na lista das pessoas indiciadas pela comissão.
A reportagem enviou perguntas ao coronel por meio da assessoria de imprensa do Exército, que informou por meio de nota que ele não tem interesse em se pronunciar.
Edição: Thalita Pires