Ex-ministra

Sem ter provado supostas denúncias, Damares volta a falar sobre abuso sexual no Marajó

Ministério dos Direitos Humanos, Ministério Público e ONG local condenam exploração política da situação na região

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
No Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves criou um programa para o Marajó que acumulou denuncias de irregularidades - Vinicius Loures/Câmara dos Deputados

A ex-ministra dos Direitos Humanos e senadora Damares Alves (Republicanos-DF) voltou a falar sobre suspeitas de abusos sexuais de crianças e adolescentes na Ilha do Marajó, no Pará, após uma música gospel sobre a região ganhar repercussão nas redes sociais.

A senadora, porém, nunca provou relatos que fez em 2022 sobre abusos na região. Diante da retomada do assunto, autoridades e ONGs que atuam no Marajó condenaram a postura de pessoas e autoridades que exploram a situação da região para ganhar visibilidade. 

"O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reforça a prioridade aos direitos humanos e à voz da população marajoara e, nesse sentido, enfatiza o compromisso em não associar imagens de vulnerabilidade socioeconômica ou do próprio modo de vida das populações do Marajó, em especial, crianças e adolescentes, ao contexto de exploração sexual. A realidade de exploração sexual na região sabe-se preocupante e histórica, mas não autoriza sua utilização de forma irresponsável e descontextualizada", afirmou o Ministério dos Direitos Humanos em nota divulgada nesta sexta-feira, (23). 

O Ministério Público do Estado do Pará (MP-PA), responsável por conduzir as investigações sobre abusos sexuais na região, também divulgou nesta sexta uma extensa nota em que detalha os tipos de ocorrências investigadas na região e, sem mencionar a senadora, condena a divulgação de informações sem estudos e dados oficiais.

"Discussões que enfatizem a violência sexual sem estudos e dados oficiais e, sem propósito de efetivar políticas necessárias ou, pelo menos a apuração de casos concretos, em nada contribuem para mudar a realidade social tão sofrida da população marajoara", diz a nota. De acordo com os dados do MP-PA, foram registrados em 2022, ano do levantamento mais atualizado, o total de 550 crimes contra crianças e adolescentes na região do Marajó. A maior parcela deles corresponde a estupro de vulnerável. Segundo o órgão, este crime ocorre no contexto do cenário de precariedade e baixo IDH da região e também é, dentre os crimes envolvendo menores de idade, o mais cometido em outras cidades do Estado. 

Já a ONG Observatório do Marajó, que atua na região, soltou uma nota intitulada "Não acredite em tudo que vês na internet" na qual ressalta que a população marajoara não normaliza a violência contra crianças e adolescentes e condena a postura da senadora ao abordar o tema. "Enquanto ministra de Estado, Damares Alves não destinou os recursos milionários que por diversas vezes prometeu para a região, para fortalecer comunidades escolares. Ao invés disso, atentou contra a honra da população diversas vezes, espalhando mentiras, e abriu tais políticas públicas para grupos privados de São Paulo que defendem a privatização da educação pública", diz o texto.

Procurado, o Ministério Público Federal reiterou a posição que já havia divulgado quando Damares fez afirmações sem provar sobre supostos crimes na região.

Damares responde na Justiça por denúncias nunca provadas 

Em 2022 a então ministra Damares Alves afirmou, durante um culto religioso, ter ouvido relatos de tráfico de crianças que eram submetidas a torturas e práticas desumanas, como ter os dentes arrancados para exploração sexual. O MPF, que tem a atribuição de investigar os crimes de tráfico internacional de pessoas e crianças, solicitou então informações sobre os supostos crimes e os encaminhamentos que a pasta de Damares teria dado aos casos. 

Em resposta ao MPF, o Ministério informou que, entre 2016 e 2022, o quantitativo de registros somava 251 denúncias, encaminhadas às autoridades competentes. Para o MPF, porém, os relatos estavam desorganizados e eram genéricos, não configurando os tipos de crimes que a ministra havia relatado no culto. Além disso, o próprio MPF divulgou nota ano passado afirmando que, em 30 anos, o órgão nunca recebeu denúncia sobre tráfico de crianças.

De acordo com o órgão, a procuradoria da República no Pará chegou a atuar de 2006 a 2015 em três inquéritos civis e um inquérito policial instaurados a partir de denúncias sobre supostos casos de tráfico internacional de crianças, que teriam ocorrido desde 1992 no arquipélago do Marajó, no Pará. "Nenhuma das denúncias mencionou nada semelhante às torturas citadas pela ex-ministra Damares Alves", afirmou a nota divulgada em 2022. 

Diante disso, o MPF entendeu que a fala de Damares Alves no culto religioso ocorreu em razão do contexto eleitoral daquele ano, como forma de apoiar inclusive a candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro. Para os procuradores, as graves violações na região não justificam "a utilização sensacionalista da vulnerabilidade social daquela população, associada à divulgação de fatos falsos, como palanque político e eleitoral em benefício do então presidente da República e da própria ministra".

Neste contexto, o MPF acionou Damares na Justiça Federal para que ela seja condenada a pagar, junto com a União, R$ 5 milhões em danos morais à comunidade local a título de danos morais e sociais coletivos. O caso está em tramitação na Justiça Federal no Pará. Já no âmbito do Ministério Público do Estado do Pará (MP-PA), o órgão afirmou em não há, entre as denúncias recebidas e investigadas por eles, "qualquer notícia de crimes relacionados a tráfico de órgãos". 

Senadora revive polêmica 

Aproveitando o sucesso de uma música que aborda a difícil situação da região e que foi compartilhada por artistas famosos, Damares voltou a postar na quinta-feira, (22), em seu perfil oficial no X sobre o assunto do Marajó. Sem explicar ou mesmo comprovar as denúncias que fez em 2022, ela condenou as "instituições".

"Ainda hoje ouço e leio relatos de abusos na região. Isso me parte o coração e espero, sinceramente, que esta música acorde nossa sociedade, acorde o Brasil. Para que quem denuncia os abusos na região não seja silenciado. Para que as instituições dediquem menos tempo com a polarização política e na perseguição a supostos adversários, e estejam mais engajadas em apresentar respostas concretas a este problema", afirmou a parlamentar.

A reportagem questionou a assessoria de Damares sobre esses supostos relatos de abusos na região que ela mencionou e quais providências ela teria tomado. A assessoria porém informou que não iria responder ao Brasil de Fato.

Reportagem desta sexta-feira do Brasil de Fato mostra como, em meio à mobilização da extrema-direita envolvendo a região, Damares chegou a criar o programa "Abrace o Marajó" durante sua gestão no ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos.

O programa, porém, ficou marcado por uma série de denúncias de órgãos de controle e pelas fake news que fizeram com que ele fosse extinto no ano passado pelo governo Lula. Em seu lugar, foi criado outro programa, o "Cidadania Marajó", que desenvolve ações na região para combater casos de abuso e exploração de crianças e adolescentes. 

Edição: Matheus Alves de Almeida