A Assembleia Estadual do Ceará (Alce) aprovou, na quinta-feira (15), a proposta que cria o Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepin), colegiado que deverá incluir as pautas do segmento na gestão pública local e garantir um espaço oficial de engajamento para que lideranças do campo possam participar diretamente da elaboração e fiscalização de políticas públicas. Aprovado sob rejeição da ala bolsonarista da Casa, o projeto vai à sanção do governador do Estado, Elmano de Freitas (PT), e surge na esteira de outras iniciativas do tipo.
No ano passado, por exemplo, foi criado o Conselho dos Povos Indígenas do Paraná. Também houve a reativação do Conselho Estadual de Política Indigenista do Pará. O deputado estadual do Ceará Renato Roseno (PSOL), que preside a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alece e defendeu a aprovação da proposta que cria o conselho local, diz enxergar nisso um resultado do movimento global de conscientização ambiental. Ele acrescenta que as unidades da Federação podem prestar grande contribuição para a assistência do poder público ao segmento em suas diferentes necessidades.
“Os povos indígenas e seus direitos não devem estar circunscritos à esfera federal. Esse passo [de criação do Cepin] é importante e, agora, dá-se um passo além [diante da compreensão] de que esses povos têm que ser ouvidos na formação da sua própria política estadual, que vai os atingir desde a sua terra à sua educação, à sua escola, à sua língua, à culinária, à segurança. Muitas janelas de saída da crise serão criadas a partir da nossa escuta atenta e da afirmação de respeito a toda a sabedoria ancestral dos povos indígenas.”
Em conversa com o Brasil de Fato a respeito do sinal verde dado pela Alece à criação do conselho, Roseno menciona ainda a importância de o país possuir um sistema de colegiados do tipo que ajude a orientar as políticas. “Uma democracia mais altiva precisa de vários circuitos de participação”, evidencia. Confira a seguir a entrevista do deputado na íntegra.
BdF – Os direitos dos povos indígenas são protegidos por legislação federal, por isso diferentes pastas e órgãos da União se voltam para esse segmento, como a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça, a Funai e agora, mais recentemente, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Em que medida um conselho de nível estadual pode também contribuir para a garantia dos direitos desse segmento?
Essa pergunta é ótima. Em primeiro lugar, acho que temos que pensar que a responsabilidade pela afirmação dos direitos de povos indígenas deve ser compartilhada entre todos os entes – primeiro, por toda a sociedade. Nós temos uma necessidade de fazer a defesa e a afirmação, dado que o processo de colonização de mais de cinco séculos usurpou, expropriou, destruiu, assassinou a população indígena no Brasil, e que o processo de afirmação tem sido muito lento no reconhecimento dessa dívida. Os estados devem também ter políticas públicas para povos indígenas, também os municípios. Aqui no estado, a exemplo da criação do MPI, o governador Elmano criou a Secretaria de Povos Indígenas.
A ideia do conselho é de [se ter] um conselho paritário em que estarão as secretarias estaduais que fazem interface [com o tema], o que ocorre em Educação, Saúde, no instituto de terras, que é o Idace, na própria Secretaria de Povos Indígenas e também na Funai. Você vai ter aí 20 assentos governamentais e 20 da sociedade civil, dos quais quase a totalidade é composta por povos eleitos em assembleia própria e também por três ONGs que trabalham com povos indígenas. Esse conselho tem caráter deliberativo e também consultivo. Assim que for instalado, ele vai ter 180 dias para fazer a primeira Conferência Estadual de Povos Indígenas e definir uma política estadual de povos indígenas. E o que essa política tem que ter?
Ela tem que ter temas imediatos, obviamente, como educação, saúde, cultura, que cabem muito aos municípios e aos estados. Isso é muito importante. Os povos indígenas e os seus direitos não devem estar circunscritos à esfera federal. Mas, além disso, tem também questões relativas à demarcação, e acho que o exemplo do Ceará é sempre importante. A Funai fez um convênio – cujo lançamento contou com a participação da ministra Sônia Guajajara e também da presidenta da Funai, Joênia Wapichana – para que o Idace, o instituto de terras, empreste a sua estrutura e a sua expertise à Funai.
A gente sabe que, depois do desgoverno Bolsonaro, a Funai ficou muito sucateada e ela não tem até agora as condições técnicas para fazer todas as demarcações físicas que devem ser feitas. Então, o instituto de terras, que aqui se chama oficialmente Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará, o Idace, faz, através desse convênio, a demarcação física dos territórios em nome da Funai. E ele obviamente faz isso a partir de um convênio legal com Funai. Isso é muito importante. Além disso, vai ser lançado também um decreto específico para a demarcação de território de populações tradicionais – estou abrangendo um pouco mais aqui pra gente informar o nosso ouvinte. Então, isso é importante porque é um exemplo de como os estados podem contribuir e muito [com a garantia de direitos indígenas], como ocorre com as políticas de educação, saúde, segurança alimentar, cultura e esportes, como nos jogos esportivos indígenas, a infraestrutura.
Todos nós sabemos que o grande objetivo é avançar nas demarcações definitivas dos territórios, mas, em paralelo, há várias outras lutas que precisam se concretizar em políticas como essas que eu estou mencionando. Várias políticas hoje estão fazendo interface com a cultura de povos indígenas – as políticas de desenvolvimento econômico, de arranjos produtivos. Isso, para nós, é muito importante e deve estar dentro da política estadual. Outro destaque que eu queria fazer – e que tem sido algo dramático em todo o Brasil – é a questão da segurança das terras indígenas. Existe um senso comum equivocado de que só a Polícia Federal poderia contribuir para essa segurança. Isso não é verdadeiro. As polícias locais podem e devem também concorrer para essa segurança, em especial quando se trata de organizações criminosas que ameaçam lideranças indígenas. Então, é muito importante também se afirmar o papel da segurança do estado.
BdF – O Ceará tem 14 povos indígenas espalhados por 18 municípios do estado, todos eles com muitas demandas. Como o senhor lembrou, são demandas não só ligadas a demarcações de terra, mas a outras necessidades. Para onde a gente pode imaginar que o Cepin vá olhar na sua primeira fase de atuação? É possível apontar demandas mais urgentes que podem ser tratadas por esse conselho?
Sim. Vou citar aqui três. A primeira delas é a demarcação. Nós tivemos agora, lamentavelmente, algumas decisões judiciais muito ruins para povos que estão já na quarta fase da demarcação, como os Tapebas, que estão na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Inclusive, eu estou indo na Funai nacional, no ministério e também no tribunal [tratar disso] e nós vamos lutar muito com os povos para fortalecer essa defesa.
O segundo aspecto é o da segurança. A presença de organizações criminosas armadas tem sido um desafio muito grande nos territórios. A ministra Sônia sabe disso, já tive audiência com ela para tratar especificamente de segurança. Ela e o Flavio Dino fizeram um exercício que pode ser um piloto importante para todo o Brasil de uma cooperação para a segurança de povos indígenas.
Depois eu citaria a segurança alimentar, que pra nós também é muito importante. É preciso engajar [as autoridades] – e o estado tem o programa Ceará sem Fome, do atual governo – e dar centralidade ao enfrentamento à fome. E você tem uma contribuição muito grande de vários povos indígenas a partir da sua cultura, do seu saber, de toda a sua cultura no enfrentamento à fome.
Então, a garantia da terra, a garantia do ecossistema, que é também uma proteção ambiental muito importante, tem muito a contribuir para o enfrentamento à insegurança alimentar. Acho que o conselho pode e deve dar uma contribuição. Ele vai ter 180 dias, a partir da sua instalação, para desenvolver a conferência e dela criar um plano que vai criar a política estadual pra povos indígenas. O que a gente quer é que mais estados do Brasil repitam essa iniciativa.
Nós aprovamos [o projeto de criação do conselho] com maioria e com votos contrários apenas da bancada alinhada ao bolsonarismo. Eu lamento muito, mas é isso. Bolsonaro era o presidente que disse que não iria demarcar nem um centímetro de terra indígena e os seus deputados, do PL e do União Brasil, que até hoje o defendem e o representam, votaram contra a criação do conselho. É importante compreender que esse segmento da política até hoje está fazendo essa guerra contra os povos indígenas, mas nós aprovamos.
Esperamos agora a sanção do projeto e a criação do conselho com todas essas secretarias pra se fazerem a política mais abrangente [de apoio aos indígenas]. E vamos fazer a luta também no terreno judicial de várias demarcações que estão sendo atacadas sobretudo pelo agronegócio. A gente quer que o presidente Lula avance nisso porque o que dá segurança aos povos indígenas é a demarcação definitiva.
BdF – O senhor mencionou o interesse na replicação dessa iniciativa de criação do conselho por parte de outros estados. No ano passado, por exemplo, foi criado o Conselho dos Povos Indígenas do Paraná. Também houve a reativação do Conselho Estadual de Política Indigenista do Pará. Olhando para essas experiências, o senhor vê um cenário mais favorável para se discutir direitos indígenas no Brasil?
Acho que é um cenário internacional. O futuro é indígena. Nós estamos vivendo uma crise ambiental planetária e ela não é mais algo para daqui a 30 anos. É agora. Essa crise nos coloca a seguinte situação: que tipo de sociedade nós temos que buscar ser para que a gente possa conviver com a natureza? A gente tem que agradecer muito pelo fato de que povos ancestrais estavam aqui muito antes do capitalismo, da Revolução Industrial, e sobreviveram milhares de anos porque aprenderam a respeitar e a conviver com a natureza.
Eu não estou dizendo que a gente vai voltar centenas de anos atrás. Eu estou dizendo que a gente tem que aprender. A ministra Sônia tem uma frase importante: “Não tem planeta B”. Então, para nós, é muito importante que a gente compreenda que a transição energética, a produção do alimento, tudo isso tem que ser feito em respeito à natureza.
Tem uma parcela da sociedade brasileira que acha que a demarcação é simplesmente uma reparação do massacre do passado. Se fosse isso, já seria uma justificativa necessária, mas é mais do que isso. Onde tem terra demarcada tem natureza protegida. Quando a natureza não é protegida, ela é atacada, em especial, como a gente vê no Norte do país, pela atividade ilegal do garimpo. Por isso para nós é muito importante compreender que o ambiente internacional vai olhar pro Brasil com uma grande expectativa.
Durante o período Bolsonaro, o Brasil virou um pária internacional. Ele pode voltar a ser um país importante se estiver na linha de frente da transição energética, do desmatamento zero, da mitigação das mudanças climáticas e para tudo isso, obviamente, a afirmação dos saberes ancestrais das culturas indígenas é fundamental. O nosso futuro passa necessariamente por valorizar as culturas, os saberes de povos que foram massacrados pela colonização, pelo capitalismo, pela força do dinheiro, mas que resistiram e que estão aqui e podem inclusive dizer para nós “olha, tem um jeito de viver que pode ser bom para todo mundo, pra humanidade, pra natureza”. Os povos ancestrais não estão com o pires na mão. Eles estão dizendo o seguinte: “Nós temos algo que pode servir para toda a humanidade e isso pode ser ofertado generosamente como cultura para o nosso reencontro com a natureza”.
A sociedade do capital operou a separação do humano em relação à sua própria natureza. Nós temos que reencontrar a natureza que há em nós e isso tem que tem que ir para além do capital, para além do mundo da mercadoria. A natureza não pode ser uma mercadoria. Os seres humanos não podem ser mercadoria. O saber humano e a cultura não podem ser mercadoria. Essa é a política que eu defendo. O Brasil tem que ir nesse rumo para que de fato nós sejamos uma liderança global para produzir uma nova prática de sociedade, novas alternativas de sociedade que nos permitam conviver conosco e com a natureza.
BdF – Voltando ao assunto da criação do Cepin, o senhor defendeu a aprovação do projeto na Alece argumentando que um dos interesses da democracia é o de que as políticas públicas sejam definidas por conselhos dos quais participem aqueles cidadãos que têm interesse direto nessas ações. Diante de um colegiado como o Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Ceará, o que caberá ao governo do estado? O Conselho terá o poder de indicar prioridades nas políticas públicas ou de barrar alguma ação governamental considerada prejudicial, por exemplo? Quais limites a atuação dele terá?
O conselho é deliberativo e consultivo e nele estarão 19 secretarias de Estado. Então, queremos que assim seja, que ele barre porventura [algumas ações]. Vamos pensar o seguinte: o governo [local] tem contradições, né? A mineração é um exemplo. Por exemplo, sou absolutamente contrário à mineração de urânio no Ceará porque sou contra o uso de energia nuclear. Essa é uma questão central para nós.
Por exemplo, a transição energética não pode ser feita do jeito errado. A gente tem questionado muito esse conflito. Existe um movimento social nascente no Brasil que é o movimento social dos atingidos pelas renováveis. Ou seja, o fato de uma energia ser renovável não quer dizer que ela não tenha um impacto social nos territórios. Nós temos que ficar em alerta para o impacto que podem ter as eólicas dentro do mar, por exemplo. Tudo isso vai passar [pelo conselho], obviamente.
Tem contradição, tem conflito e esperamos que o governo e o governador afirmem a democracia respeitando o Conselho dos Povos Indígenas. A democracia que nós defendemos não é uma democracia só representativa, em que o cidadão vai lá, vota, volta para casa e espera a próxima eleição. Tem que ser uma democracia em que a cidadania se expresse cotidianamente, e ela se expressa cotidianamente de muitos jeitos, inclusive nos conselhos.
O Brasil pensou essa arquitetura da participação – conferências, conselhos, fundos, políticas. Não era só a democracia do voto, de se votar e depois ir pra casa e ficar calado. Uma democracia de fato mais densa, mais ativa, mais altiva precisa de vários circuitos de participação. E a participação só é boa quando inclusive estabelece o contraditório. Não se quer um sistema de conselhos pra dizer “amém” para o chefe do Executivo de plantão. A gente precisa de um sistema de conselhos que inclusive oriente as políticas.
No caso do Ceará, o estado cometeu uma infâmia em 1860. A Lei de Terras é de 1850 e ela só preservava os aldeamentos. Em 1860, a Assembleia da Província do Ceará disse que não havia mais indígenas no Ceará. Claro que tinha. Havia os aldeamentos, que eram todos muito conhecidos, mas a assembleia foi covarde e quis apagar a participação dos indígenas na sociedade de então porque queria as terras desses aldeamentos. Consegui aprovar uma lei de minha autoria que faz uma reparação simbólica e reconhece a contribuição inestimável de indígenas na formação do povo cearense.
Esse passo é importante. Agora, se dá um passo além [diante da compreensão] de que esses povos têm que ser ouvidos na formação da sua própria política estadual, que vai os atingir desde a sua terra à sua educação, à sua escola, à sua língua, à culinária, à sua segurança. Pra nós, isso é muito importante como condição para um projeto de sociedade que supere a crise em que nós nos metemos no momento atual, que é uma crise da civilização do capital, por isso a gente tem que criar janelas de saída. Muitas janelas serão criadas a partir da nossa escuta atenta e da afirmação de respeito a toda a sabedoria ancestral dos povos indígenas.
BdF – Diante do histórico de violência contra as comunidades indígenas – do qual o Ceará não fica de fora, conforme o senhor lembrou ao exemplificar o caso da Assembleia da Província –, uma iniciativa como a criação do conselho pode ajudar a reduzir os danos causados pela tentativa de apagamento cultural desses povos?
O passado não está imóvel, não é? Passado, presente e futuro estão em permanente movimento. A gente está descobrindo muita coisa que não estava ainda descoberta, a gente está vendo a história que se tentou silenciar. Os povos que se tentou massacrar e silenciar aprenderam a resistir com várias tecnologias de resistência. São 500 anos de resistência contra um processo de assassinatos, genocídio, etnocídio gigantesco. O Brasil profundo foi construído a partir de uma matança absurda, um grande genocídio feito aqui pelo colonizador europeu. Então, eu tenho muita esperança de que as atuais gerações vão aprender que aquele processo de matança, de genocídio, de etnocídio feito em nome de um pretenso progresso precisa ser conhecido e reparado.
O passado está em movimento, o presente está em movimento e nós temos que escolher um futuro. Tem um futuro do capital e do capitalismo, que é um futuro de crise, militarizado, de guerra, de xenofobia, de genocídio, de intolerância. É isso que tem que se apresentado pela lógica do capital. E tem um outro futuro. O que nos faz humanos é a nossa capacidade de reescrever o futuro. A gente pode ter um futuro que dialogue com todas essas culturas, que aprenda com elas e que permita que a gente possa vencer a crise de civilização em que nós nos metemos.
Edição: Matheus Alves de Almeida