Em entrevista concedida ao Brasil de Fato há quase três anos, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves parecia prever a potencia da união entre as artes, expressa neste Carnaval pela escola de samba Portela. A agremiação levou à avenida a obra literária Um Defeito de Cor, escrita por Gonçalves e lançada em 2006.
O livro traz a história romanceada de Luisa Mahin, ou Kehinde, figura simbólica da luta negra no Brasil. Na conversa com o BdF Rio Grande do Sul, em maio de 2021, A escritora afirmou: "a literatura pode muita coisa, mas não pode nada sozinha."
Dois dias após o desfile emocionante da Portela na Sapucaí, Um Defeito de Cor se tornou a obra mais vendida do país na plataforma Amazon. A edição especial, com capa da artista plástica Rosana Paulino, também está na lista, ocupando o 19º lugar.
"Um livro é tantos livros quantos são seus leitores, e cada um o lê de acordo com seu interesse, sua necessidade, sua bagagem intelectual e cultural, etc... cabe ao leitor entrar em uma leitura querendo e se permitindo ser tocado por universos e realidades até então desconhecidos e, por isso, alvos de preconceitos", disse Ana Maria Gonçalves ao Brasil de Fato.
A tradução dessas possibilidades na maior festa popular do Brasil levou a Portela a ganhar o prêmio Estandarte de Ouro de 2024. Na avenida, a história de Kehinde abriu espaço para uma homenagem ao antirracismo, que envolveu história, música, religião e luta.
Vítima do deslocamento forçado que trouxe milhões de pessoas do continente africano ao Brasil, Kehinde teria participado dos primeiros movimentos de luta contra a escravização na Bahia, no século 19.
Entre eles está a Revolta dos Malês, considerado o maior levante popular do período. O sobrenome Mahin, adotado no Brasil, indica que ela tenha sido membro do povo Maí, do Benin.
Há pouca documentação sobre sua história. Uma delas é uma carta do advogado abolicionista Luiz Gama, filho de Kahinde e símbolo da luta pelo fim do regime escravocrata no Brasil.
Alguns relatos indicam que, após ser perseguida e presa em território brasileiro, ela teria sido deportada para Angola. O livro de Ana Maria Gonçalves mostra a figura histórica em primeira pessoa, narrando sua vida desde a infância, enquanto viaja de volta para o Brasil em busca de um filho perdido.
Luís Gama é fruto do relacionamento de Kahinde com um português e foi vendido como escravo pelo próprio pai na infância. No desfile da Portela, ele foi representado ao lado da mãe, já no primeiro carro alegórico. A coreografia mostrava um reencontro emocionante entre mãe e filho.
A ala das baianas desfilou de branco e azul, uma referência ao mar enfrentado na travessia da diáspora forçada. A figura de Iemanjá, orixá que representa os oceanos, esteve presente em uma ala e em um carro alegórico, marcados pelas cores preta e azul, referência ao Atlântico negro. Na bateria, as cores de Oxum, orixá das águas doces, predominaram.
O período de Kahinde no Brasil começou a ser retratado com a alegoria Salvador Pagã, com símbolos das religiões de matriz africana e do catolicismo. Assim como no livro, outras referências à vida na colônia apareceram em símbolos da diversidade cultural brasileira, da luta contra a escravidão e também do domínio e da violência do colonizador.
Pautada pelo poder matriarcal das mulheres negras e por referências à religiosidade, cultura e à luta popular, a apresentação se encerrou com a alegoria Em Cada Porto, Nosso Ninho. No alto do carro, 16 mães de jovens negros e negras vítimas da violência no Brasil lembravam a atualidade da luta de Kahinde e da obra de Ana Maria Gonçalves.
Edição: Thalita Pires