As seguradoras Porto Seguro, Brasilseg e a subsidiária brasileira da Essor, do grupo francês Scor, garantiram apólices de seguro rural para produtores de maçã, tomate e café flagrados utilizando trabalho escravo em suas propriedades. Alguns deles integravam o cadastro conhecido como “lista suja” do trabalho escravo no momento da assinatura dos contratos ou durante sua vigência. As três empresas possuem compromissos de combate ao trabalho escravo em suas políticas corporativas e garantem a exclusão de parceiros de negócios com histórico de exploração de mão de obra nestas condições.
Os seguros foram pagos parcialmente com dinheiro público, por meio do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). Apesar disso, somente agora o governo federal está desenvolvendo um sistema de monitoramento dos produtores subvencionados em que os nomes dos candidatos a beneficiários serão conferidos na ‘lista suja’, entre outras checagens socioambientais.
“A ‘lista suja’ é um instrumento de transparência ativa e surpreende muito não ser utilizada como critério por todas as seguradoras. Parece até uma contradição inerente ao negócio de uma seguradora não considerar isso como risco”, avalia Marina Ferro, diretora executiva do InPacto, organização criada em 2013 que monitora o cumprimento dos compromissos no Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e aproxima empresas privadas dessa agenda.
A Porto Seguro afirmou que está em constante aperfeiçoamento interno para que “episódios pontuais sejam solucionados da maneira mais apropriada”. A Brasilseg disse ter compromisso em “manter e desenvolver elevados padrões de integridade, ética e transparência” e que trabalha para mitigar riscos que possam violar tais padrões. Já a Essor, do grupo Scor, pontuou que possui mecanismos para verificar a inclusão de clientes na “lista suja” e que “não apoia, nem tolera qualquer forma de abuso humano, inclusive trabalho análogo ao escravo”. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.
Trabalhadores não tinham descanso na colheita de tomates
Valdir da Silva Rezende e Osnivaldo Carriel Cordeiro entraram na “lista suja” do trabalho escravo em abril de 2019, depois de terem sido autuados, em 2018, pela submissão de 36 e 16 trabalhadores, respectivamente, a condições análogas à escravidão na produção de tomates, na Fazenda Ferradura, em Patrocínio, Minas Gerais. Seus nomes permaneceram no cadastro até abril de 2021. Nestes dois anos, ambos assinaram contratos com a seguradora Porto Seguro.
Segundo o relatório da fiscalização, ao qual a Repórter Brasil teve acesso, o dia de trabalho na Fazenda Ferradura começava às 5h30, quando os trabalhadores deixavam o alojamento, e só terminava às 20h, após os caminhões com caixas de tomates serem completamente carregados. Não havia descanso semanal remunerado, e a maioria dos trabalhadores que atuavam na colheita dos dois produtores trabalhava de domingo a domingo. Os fiscais registraram ainda que os empregados eram responsáveis pela aplicação de agrotóxicos na lavoura sem equipamentos de proteção adequados.
A produção de tomates dos produtores autuados era vendida para a região Sudeste, incluindo as redes Pão de Açúcar e Carrefour, conforme revelou a Repórter Brasil, à época.
Osnivaldo Cordeiro assinou seis contratos com a Porto Seguro e Valdir Rezende assinou três contratos com a seguradora – todos foram firmados quando o nome dos produtores já aparecia no cadastro divulgado pelo Ministério do Trabalho.
As áreas seguradas eram localizadas em outros municípios de Minas Gerais e São Paulo, e não em Patrocínio, onde ocorreu o flagrante. Além disso, algumas dessas apólices foram contratadas pelas empresas dos produtores, o que poderia dificultar a consulta à “lista suja”, que identifica os infratores por seu nome e número pessoal de identidade.
Corretor soube da autuação, mas ignorou problema
A Política de Responsabilidade Socioambiental do Grupo Porto Seguro cita a “lista suja” entre as referências de sua política de sustentabilidade e determina que seus negócios devem ser orientados para “garantir trabalho digno, não discriminação, remuneração justa, segura e que combata o trabalho infantil e escravo”.
Segundo o relato de Valdir da Silva Rezende, seu corretor chegou a questioná-lo sobre a inclusão de seu nome na “lista suja” antes da assinatura de um novo contrato. Ainda assim, o negócio foi fechado. “O corretor da Porto Seguro conhecia como a gente trabalhava na época. Conseguimos provar que aquilo [flagrante de trabalho escravo] era uma armação”, disse, acrescentando ser um cliente antigo da seguradora. “Tenho seguro de caminhão, de carro, de tudo”, completa.
Apesar de se referir ao flagrante como uma “armação”, a interpretação do produtor não foi a mesma que a do Ministério do Trabalho. Antes da inclusão na “lista suja”, o processo administrativo prevê duas oportunidades para que o empregador apresente argumentos para sua defesa e recorra da autuação. Apenas quando essas fases são esgotadas, caso o órgão ministerial confirme o trabalho escravo, é que o produtor ingressa na “lista suja”, permanecendo ali por até dois anos. E foi o que aconteceu com Rezende, incluído no cadastro em 2019.
A Porto Seguro não respondeu às perguntas específicas sobre esse caso enviadas pela reportagem. O posicionamento completo da empresa pode ser lido aqui. O produtor Osnivaldo Cordeiro disse “não ter interesse” em enviar seus esclarecimentos para a Repórter Brasil.
Escravidão na colheita de maçã
O produtor de maçãs Paulo Borges Duarte, dono da Fazenda Água Buena, em São Joaquim, Santa Catarina entrou na “lista suja” em abril de 2023 depois que 17 trabalhabores que colhiam os frutos na propriedade foram resgatados de condições análoga à escravidão em março do ano anterior.
Entre 2021 e 2023, o produtor assinou dois contratos com a seguradora Essor, do grupo francês Scor. O primeiro ficou vigente entre 14 de julho de 2021 e 31 de maio de 2022 segundo dados divulgados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) – portanto, após o resgate, mas antes da inclusão de seu nome na “lista suja”. Ainda segundo o Ministério, o segundo contrato iniciou em 18 de julho de 2022 e permaneceu válido até 10 de junho de 2023, quando o produtor já figurava no cadastro.
Os trabalhadores resgatados na fazenda Água Buena eram do interior do Maranhão e foram aliciados por um “gato”, um intermediário de mão de obra considerado ilegal pelas autoridades, segundo Claudio Secchin, auditor-fiscal que coordenou a operação de resgate. “Foi um caso bem grave de violação trabalhista”, avalia o auditor. O alojamento dos trabalhadores não tinha condições de abrigar as 49 pessoas que viviam ali, segundo o relatório de fiscalização: “no máximo 1/3 do total de pessoas que ali estavam alojadas”. Pela falta de espaço, até a garagem foi improvisada como dormitório.
No relatório de sustentabilidade de 2022 do grupo Scor, dona da Essor, a seguradora afirma que o trabalho escravo não é tolerado dentro de qualquer parceiro de negócio com o qual o grupo esteja envolvido em uma transação comercial. Em resposta à Repórter Brasil, a companhia afirmou que “possui mecanismos para verificar a inclusão de clientes na ‘Lista Suja’ e está em constante aprimoramento das práticas de ‘ESG’ na sua operação. Mas a empresa preferiu não comentar o caso em questão.
O produtor Paulo Borges Duarte não foi localizado pela reportagem.
BB cessa empréstimos, mas seguradora não procura produtor
O produtor Fernando Antônio de Oliveira entrou na “lista suja” do trabalho escravo em abril de 2023. Em 12 de julho de 2022, 15 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão na colheita de café em sua propriedade, a Fazenda Olhos D’Agua, em Perdizes, Minas Gerais.
Um mês antes do flagrante, em 14 de junho de 2022, o cafeicultor assinou uma apólice de seguro com a Brasilseg para esta mesma fazenda, conforme ele confirmou à Repórter Brasil. O contrato seguiu vigente até 14 de junho do ano seguinte – quando seu nome foi incluído na “lista suja”.
Fernando Antônio Oliveira explicou que fez um financiamento com o Banco do Brasil, destinado a investimentos na propriedade, e contratou, no mesmo momento, um seguro agrícola para a propriedade. Depois da sua inclusão no cadastro, diz ele que apenas novos empréstimos com a instituição bancária foram proibidos. “O Banco do Brasil me impediu de fazer financiamento por conta disso. Eles receberam uma notificação que eu não poderia mais fazer esse tipo de transação. Agora, a seguradora, nada. Até agora não recebi nenhuma ligação”, explicou.
Em 2023, quando o nome de Oliveira estava na ‘lista suja’, a Brasilseg forneceu um novo seguro para o empregador, mas não foi possível confirmar através dos dados publicados pelo governo qual a propriedade segurada nem o período de vigência desse contrato.
A Política de Responsabilidade Ambiental, Social e Climática do Banco do Brasil – que deve ser adotada por todas as entidades ligadas ao banco – informa que um dos critérios de exclusão na realização de negócios é justamente a submissão de trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou a condições análogas à de escravo, entre outras.
A Brasilseg é uma joint venture entre Banco do Brasil e a seguradora espanhola Mapfre e afirma possuir um sistema que permite recusar ou ajustar contratos se eles apresentarem desacordo com princípios socioambientais adotados pela empresa e lista a conferência de registros de trabalho escravo como um dos dados incluídos na análise.
A seguradora não respondeu às perguntas específicas sobre esse caso, mas informou que, como signatária do Pacto Global da ONU, “não admite e repudia quaisquer iniciativas que impliquem violação aos direitos humanos”. Um dos compromissos previstos no Pacto é “eliminar todas as formas de trabalho forçado ou compulsório” de suas operações. Já a sócia Mapfre, também signatária da iniciativa, afirmou que “revisa sua política constantemente para garantir que reflita o compromisso integral com a sustentabilidade e o respeito aos direitos humanos”. Leia as respostas na íntegra aqui.
Oliveira ressalva que os resgatados em sua fazenda eram funcionários de uma empresa que terceiriza mão-de-obra e que, depois do episódio, passou a contratar mão de obra de forma direta, apenas.
Governo prevê sistema de checagem para 2024
Todos estes produtores contrataram o seguro rural com ajuda de custo do governo federal, por meio do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). Criado em 2005, o PSR banca até 40% do valor cobrado pelas seguradoras no momento da contratação das apólices, instrumento que garante ao produtor ser ressarcido em caso de perdas causadas por granizo, secas ou chuvas prolongadas. O orçamento do programa para 2022 foi de R$ 1,1 bilhão.
O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) audita 1% do total de apólices de seguro rural subsidiados para verificar “a veracidade das informações contidas nas apólices”, segundo documento obtido pela Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação (LAI). Contudo, a pasta ainda não faz a checagem socioambiental de todos os candidatos ao subsídio, embora as bases de dados para fazer esta verificação sejam públicas – a maioria, inclusive, são do próprio governo federal.
“Está em fase de testes o sistema de monitoramento das apólices subvencionadas no Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). A expectativa do Mapa é que o sistema seja concluído e disponibilizado no ano de 2024”, informou a pasta, em nota. Entre as bases a serem consultadas está a “lista suja do trabalho escravo”. A íntegra da manifestação do Mapa pode ser lida aqui.