Um projeto de lei do município de Cambuquira, no Sul de Minas Gerais, promove novo paradigma para tratar os direitos da natureza no Brasil, reconhecendo, pela primeira vez, um aquífero como sujeito de direitos. Se aprovada, a lei garantirá a integração entre os direitos do aquífero, a sabedoria ancestral das comunidades locais e a responsabilidade ambiental.
A proposta legislativa, de autoria do vereador Hélber Augusto Reis Borges (Rede Sustentabilidade), propõe o reconhecimento do Aquífero de Águas Carbogasosas Curativas do Circuito das Águas como um ente vivo especialmente protegido.
Esse marco legal busca assegurar a preservação do legado cultural e terapêutico desse corpo d’água para os povos das águas da Mantiqueira, reconhecendo o papel histórico da crenoterapia e a capacidade curativa ancestral das águas minerais.
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As fontes de águas terapêuticas estabelecem uma conexão intrínseca com a identidade cultural e espiritual da região, já que, para esses povos, as fontes de águas carbogasosas são guardiãs de tradições transmitidas ao longo das gerações e carregam consigo a sabedoria de cura compartilhada.
Essas águas, enriquecidas com gás carbônico e minerais, são um elemento central na preservação das tradições locais desse território, pois a relação estabelecida com o Aquífero ultrapassa a mera utilização prática das águas, constituindo uma troca simbólica, um ato de respeito aos ciclos naturais e uma celebração da interdependência entre a comunidade e as fontes de águas.
Além de oferecerem benefícios à saúde, as águas desempenham um papel vital na construção e continuidade das tradições, contribuindo para a intricada malha da identidade e espiritualidade dessas comunidades.
O Aquífero de Águas Carbogasosas Curativas do Circuito das Águas é uma antiga formação geológica paleolítica, do tipo fraturado, que milenarmente armazena água subterrânea enriquecida com gás carbônico e outros minerais, conhecidos por suas propriedades terapêuticas e medicinais. As fontes de águas dos parques que circundam o aquífero atraem turistas e contribuem para a geração de renda e empregos nas cidades do Circuito das Águas, incluindo Cambuquira, Caxambu, Lambari, Conceição do Rio Verde e São Lourenço.
Direitos da natureza
O texto normativo está alinhado a exemplos internacionais que estabelecem direitos legais intrínsecos à natureza, como no constitucionalismo latino-americano, que tem evoluído para conferir à própria natureza a condição de sujeito de direitos.
Os ciclos do constitucionalismo, ao longo das últimas décadas, podem ser compreendidos em três fases distintas. Inicialmente, ao contestar o Estado-nação monocultural e introduzir o reconhecimento da diversidade cultural, ainda que mantendo a tradição monista, no sentido cultural e jurídico, por não questionar a matriz colonial e étnica do próprio Estado.
Posteriormente, durante o ciclo pluricultural, as constituições passaram a incorporar o conceito de nação multiétnica ou Estado pluricultural, com destaque para os países da América Latina. Por fim, no século 21, o ciclo plurinacional se caracteriza pelo reconhecimento não somente das culturas diversas, mas dos povos indígenas como entidades dotadas de autodeterminação ou livre determinação.
Esse terceiro ciclo é notável pelos processos constituintes intensos na Bolívia (2006-2009) e no Equador (2008), com transformações que questionaram os fundamentos do antropocentrismo ocidental, por meio do protagonismo dos povos indígenas no desenvolvimento de novos paradigmas constitucionais que incorporaram os direitos da própria mãe Terra ou Pachamama nas cartas magnas.
Outro caso inspirador, no Brasil, foi o reconhecimento legal do Rio Laje, da cidade de Guajará-Mirim, situada no estado de Rondônia, como sujeito de direitos. Esse foi o primeiro caso de um rio brasileiro a ter direitos reconhecidos por lei, em 2023, pela proposta legislativa de Francisco Oro Waram (PSB), vereador e liderança indígena Komi-Memen, do território amazônico que cerca a região do Rio Laje.
Outras leis
O uso e coleta de águas carbogasosas já foi objeto de outras inciativas legislativas. O referido projeto de lei do município de Cambuquira compreende o terceiro reconhecimento jurídico regional, que considera os direitos relacionados às águas carbogasosas em uma abordagem integrativa dos aspectos socioambientais e culturais.
Inicialmente, destaca-se a iniciativa pioneira em Caxambu, onde a coleta da água mineral foi oficialmente registrada como patrimônio imaterial, por meio do decreto municipal 2866/2021 da cidade de Caxambu, iniciativa juridicamente questionada pelo governo Zema.
Posteriormente, o projeto de lei 3.952/2022, apresentado pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), propõe a declaração das águas minerais nas Estâncias Hidrominerais sul-mineiras como patrimônio histórico, cultural e imaterial dos mineiros, aguardando votação em plenário.
Essas ações legais evidenciam uma crescente conscientização sobre a importância das águas carbogasosas como elementos fundamentais para a identidade cultural e o patrimônio histórico mineiro. Se a lei do município de Cambuquira for aprovada, será a primeira vez que um aquífero receberá, de fato, o status legal de entidade viva, propondo outro modelo de cuidado e afeto em relação às águas minerais.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Larissa Costa