Cresce a expectativa na sociedade argentina sobre a aprovação ou não do projeto de lei do governo ultraliberal de Javier Milei que pretende desregulamentar a economia em diversos aspectos, sob o argumento de que a receita neoliberal seria a melhor forma de combater a crise socioeconômica que assola o país.
Após sucessivos adiamentos de uma bancada governista acuada pela pressão popular, a expectativa é de que a votação no Congresso da chamada Lei Ônibus tenha início nesta quarta-feira (31), numa sessão que pode durar até 40 horas, segundo fontes da presidência da Câmara citadas pela imprensa argentina.
Após a greve geral da semana passada (24 de janeiro), que levou uma multidão às ruas de todo o país para protestar contra as propostas do governo, o projeto de lei sofreu mudanças significativas. Nas intensas tratativas dos últimos dias, o governo fez novas concessões à chamada oposição dialoguista, ou oposição aliada, que condicionou seu apoio a mudanças concretas.
Uma delas diz respeito às chamadas áreas em situação de emergência, nas quais o presidente Milei gostaria de contar com aquilo que os argentinos chamam de ‘faculdades delegadas’, ou seja, uma espécie de carta branca para tomar as decisões que lhe derem na telha, sem depender dos outros poderes.
Sacan capítulo fiscal de la ley ómnibus.
— GERMAN MARTINEZ (@gerpmartinez) January 26, 2024
DERROTA del gobierno y triunfo de los que hicimos oposición frontal.
TRAMPA. Milei sólo quiere superpoderes (facultades delegadas). Es el corazón de la ley.
MÁS AJUSTE, especialmente sobre provincias.
A Milei se le notan los hilos.
“O Milei só quer superpoderes (faculdades delegadas). É o coração da lei”, critica German Martínez, presidente da coalizão peronista União pela Pátria (oposição).
“Concordo com o Martínez”, diz ao Brasil de Fato o repórter Pedro Lacour, do jornal La Nación. “O Milei, por não contar com governadores nem prefeitos e por ter uma minoria pequena no Congresso, conta com as ‘faculdades delegadas’ para ter maior margem de manobra. Nesse sentido, a oposição vê como uma vitória que a questão previsional foi retirada do projeto, ou seja, que Milei não poderá decidir por decreto, segundo critérios arbitrários, o cálculo sobre o reajuste das aposentadorias”.
Raio-X do Congresso
Sobre a minoria na Câmara do Deputados, alguns dados: o partido governista, A Liberdade Avança, tem 40 dos 257 deputados. Outros 39 são do PRO, o partido do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), que não faz parte do governo formalmente, mas na prática é governista, configurando uma base de apoio de 79. No extremo oposto, há 104 deputados, somando peronistas e esquerdistas.
Restam 74 da chamada oposição dialoguista, sendo 34 radicais (eram aliados de Macri, mas não embarcaram com Milei) e 40 de uma espécie de centrão, para fazer analogia com a política brasileira, afeitos a negociar cargos e recursos.
Uma vez que chegue ao plenário, o projeto será votado artigo por artigo. Para ser aprovado, cada artigo precisa de metade mais um dos votos, ou seja, 129. Se for aprovado, vai ao Senado. Se for alterado no Senado, volta para a Câmara.
Capitulações
Sobre a questão previsional, existe na Argentina um debate sobre a melhor fórmula para se calcular o reajuste das aposentadorias. A oposição defende que o cálculo seja com base na arrecadação de impostos por parte do governo, como era no tempo dos governos Kirchner — foi Macri, em 2017, quem o vinculou à inflação, mas isso ocorreu justamente numa época em que a arrecadação subiu, o que provocou polêmica. O que está sobre a mesa agora é uma fórmula que combine as duas coisas: arrecadação e inflação.
Essa matéria terá que ser decidida num âmbito mais amplo, porque foi um dos quatro itens (de um total de 11) em que Milei desejava ter poderes especiais para decidir, mas foi obrigado a recuar. Outro passo atrás relevante do governo foi retirar o capítulo fiscal do projeto de lei, por falta de apoio dos governadores e legisladores.
O capítulo fiscal tratava basicamente de aumento de impostos e corte de gastos, ideias muito questionadas por alguns deputados, explica o jornalista Mario Santucho, da revista Crisis. “Com a retirada, o projeto ficou mais focado na questão da transformação estrutural, como a desregulamentação da economia e tantas outras propostas”.
O chamado projeto de Lei Ônibus, que ganhou esse apelido pela grande quantidade de propostas, teve um terço de seus artigos cortados ao longo das negociações. Essa redução significativa, pelo menos em termos aritméticos, pode ser vista como uma conquista relevante por parte dos que defendem os trabalhadores, aposentados, enfim, os setores mais vulneráveis da população, protagonistas da greve geral da semana passada.
“As manifestações (de 24 de janeiro) representam e refletem a insatisfação com a primeira fase do governo do Milei e devem ter dois efeitos: ajudar a enfrentar a força social que o presidente ainda tem, pelo fato de o mandato estar no início e de ele ter essa pecha do azarão, que merece um voto de confiança, mesmo entre pessoas que sofrem com a crise econômica; e fortalecer a oposição no Congresso, que tem maioria, pode se unir e bloquear esse projeto”, avalia André Roncaglia, economista e professor da Unifesp.
Tramoia?
Apesar das várias desistências, o kirchnerismo e a esquerda considerarem que a retirada do capítulo fiscal na verdade seria uma trapaça do governo Milei.
“Dizem que não se trata de uma concessão para se chegar a um acordo, mas sim de uma tramoia, no sentido de que a perspectiva é que o governo vai fazer os ajustes fiscais da mesma forma, só que sem passar pela Câmara”, analisa Santucho. O ajuste fiscal ficaria para um segundo momento, por meio de decretos e outras medidas que não dependam da aprovação dos deputados.
Lacour, que cobriu a recente campanha eleitoral de Javier Milei e portanto conheceu bem as dinâmicas de seus correligionários, enxerga um otimismo no bloco governista, que teria feito um experimento com projeto de lei tão abrangente, que contém tudo que se pretenderia fazer, para depois ir recuando. “A estratégia governista foi frutífera no curto prazo, agora precisa ver como as coisas evoluem no médio prazo”.
O jornalista vê a possibilidade de que as ruas “voltem a se convulsionar”, especialmente a partir de março, quando deve haver aumento nas tarifas de serviços públicos, o que é um agravante para o cenário de inflação, que segue em alta.
“A situação econômica e social ainda vai piorar e acho que o mau humor (da população) pode aumentar”, prevê.
“Os analistas sempre dizem que há um princípio de realidade que começa a operar em março na Argentina, uma vez que o verão mantém a sociedade distraída. Dessa vez, o princípio de realidade talvez ecloda de maneira mais brutal”.
O que é?
A Lei Ônibus tenta legislar sobre todos os aspectos sociais, políticos e econômicos do país. O texto original, entre outras coisas, determinava:
1. Delegação maciça de poderes legislativos ao Poder Executivo, por dois anos prorrogáveis para quatro. Isso foi negociado e parece que seria por menos tempo, por um ano.
2. Privatização de todas as empresas públicas, sem exceções. Incluem-se empresas que haviam sido excluídas nos anos 90, como o Banco Nacional. Isso foi negociado e agora não incluiria empresas importantes como a YPF.
3. Criminalização do protesto social em níveis inéditos desde o retorno da democracia.
4. Desregulamentação e liberalização energética: petróleo, gás, biocombustíveis e energia elétrica.
5. Remoção dos critérios estabelecidos após o default de 2001 para evitar novas fraudes com a dívida pública.
6. Eliminação do Fundo de Garantia de Sustentabilidade, algo que prejudica os aposentados;
7. Redução de impostos para os mais ricos.
Aposta arriscada
“Essa lei mexe com muitas coisas simultaneamente, o que empobrece a discussão e dá um caráter troglodita para as medidas”, afirma Roncaglia. Ele acha que essa característica serve para catalizar o movimento mais radical e fanático de apoio ao governo, mas ao mesmo tempo tende a esgotar rapidamente seu capital político.
“Ele fez uma jogada bastante arriscada, que é antagonizar o Congresso, levar isso para a energia da sociedade e esperar que os apoios dessa coalizão internacional da extrema direita, que está se aproveitando e conseguindo acessar recursos via FMI, possa trazer resultados econômicos num prazo curto e consiga apresentar isso como forma de angariar mais apoio”.
Boa parte do risco, segundo ele, mora no fato de que “combater a inflação sem garantir renda para as pessoas é a receita para a convulsão social e para animar a oposição”.
*Colaborou Gabriel Vera Lopes, de Havana.
Edição: Rodrigo Durão Coelho