Qualquer brasileiro que tenha um mínimo de responsabilidade, que tenha consciência da situação social real do nosso país, tem o dever de acompanhar e apoiar o trabalho e a luta do MST. (Sebastião Salgado)
Acompanho ativamente desde seu nascimento o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Um movimento que surge não somente pela negação histórica da Reforma Agrária, mas, além disto, como expressão da forma que o capitalismo canibal, como o define a filósofa americana Nancy Fraser, avançou no campo a partir, sobretudo, da década de 1970. Um processo escandaloso de concentração de propriedade de propriedade sob o manto da ditadura empresarial militar deflagrada em 1964 e que se prolongou por 21 anos.
O MST, ao lutar pela Reforma Agrária Popular, reitera a luta dos escravos e de suas lideranças no processo da abolição da escravidão. Como observa Luiz Felipe Alencastro, a oligarquia agrária somente concordou com a abolição formal da escravidão, mediante a negação da luta dos abolicionistas que queriam que os escravos não apenas fossem libertos, mas tivessem como indenização uma quantidade de terra para produzir sua sobrevivência. O fracasso da reforma agrária, observa Alencastro, teve seu início nesta negação.
O que é cínico é que, 136 anos depois, vindos não mais dos barões da escravidão, mas de seus sucedâneos, da expansão agrícola e concentração de propriedade das terras pelo agronegócio, os argumentos dos grandes proprietários de terras, do capital financeiro e industrial sejam os mesmos do escritor e político cearense Jose de Alencar. Percebendo as tendências abolicionistas nos quadros da Monarquia em 1871, advertia o que poderia ocorrer com a abolição: "Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isente de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo". (Ver: Juremir Machado da Silva. Raízes do conservadorismo brasileiro. A abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018, p. 75).
Nestes quarenta anos a luta, como destacou ao final da década de 1990 João Pedro Stédile, uma de suas mais importantes lideranças, o MST teve e tem que enfrentar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital. Desde sua fundação como movimento orgânico, bravamente avançou na ruptura das duas primeiras cercas. A terceira, a do capital, desde os debates da Reforma Agrária Popular o MST sinaliza que esta é uma questão a ser coletivamente enfrentada por todos os movimentos do campo e da cidade que queiram alimento saudável e futuro minimamente previsível.
O que se tem de Reforma Agrária nestes 40 anos é o rompimento das cercas do latifúndio improdutivo ou de terras públicas apropriadas indevidamente, forçando assentamentos. Isto à custa de muito sofrimento e de muitas perdas de seus lutadores. Quando os grandes proprietários e a mídia que os representa propalam que o agronegócio dá segurança alimentar, escondem duas realidades perversas em nossa sociedade: a fome endêmica de mais de trinta milhões de brasileiros e de outros 170 milhões com insuficiência alimentar; e, que uma reforma agrária como a maioria das nações civilizadas já fez, com pequenas e médias propriedades com assistência técnica com base na ciência da agroecologia, produziria a mesma quantidade ou mais, dando-nos soberania alimentar.
Mas, certamente, é no enfrentamento da cerca da ignorância que o MST é amplamente vitorioso e exemplar para o conjunto da sociedade. Nestas quatro décadas, o MST afirmou a tese da educação "do campo" e não para ou no campo. "Do campo" para superar uma dupla deformação: a de um ensino e processos formativos colonizadores e de uma educação que ignorava que os campesinos são sujeitos de cultura, de conhecimento e, portanto, o ponto de partida do processo pedagógico para uma formação por inteiro. Um processo, como afirma Roseli Caldart, educadora do MST em seu clássico livro Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola (Petrópolis/RJ, Editora Vozes 2000), que não começa na escola, mas na sociedade e retorna para a sociedade.
Esta é a perspectiva de educação, realçando os valores do coletivo, da solidariedade, do principio do trabalho socialmente útil como tarefa de todos que se pautam nas escolas dos assentamentos. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, referência mundial de formação de novas lideranças, tem este DNA. Desde o processo de construção, deu-se pelo trabalho coletivo e solidário de brigadas de jovens e adultos campesinos e se repete em todas as atividades formativas que lá se realizam.
Com a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 1998, e especialmente ao longo dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhares (PT), deu novas perspectiva para os jovens do campo. A perspectiva da educação "do campo" penetrou os umbrais das universidades, especialmente as públicas, criando centenas de cursos de licenciatura do campo, alguns programas de pós-graduação com esta modalidade, formação de pesquisadores, etc. Um passo ainda mais importante foi a criação da Universidade Fronteira Sul, fruto da luta coletiva do MST e de outros movimentos sociais do campo. Em nenhum desses espaços o "céu é de brigadeiro". Pelo contrario, move-se no duro e cotidiano embate da luta de classe.
O fechamento do Pronera pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL) e a patética e desmoralizada CPI contra o MST são o reconhecimento de que o que se plantou e ampliou nestes 40 anos não vai ser interrompido. Mais que isto, o horizonte da Reforma Agrária Popular para o conjunto da sociedade brasileira tem como interpelação e exigência um projeto de educação sob a direção dos trabalhadores do campo e da cidade. Esta é a diretriz que nos lega o patrono do MST Florestan Fernandes.
"O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da 'educação para um mundo em mudança', mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores" (Florestan Fernandes, O desafio educacional. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2020, p. p.29).
Um viva os 40 anos do MST e às bravas e bravos lutadores que dia a dia o sustentam e o ampliam.
* Filósofo e educador. Professor titular emérito aposentado na Universidade Federal Fluminense. Atualmente professor colaborador no Programa de Pós graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) e no Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares