O ano de 2023 vai ficar marcado como um período de disputa entre a equipe econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e as forças do Congresso Nacional em busca de espaço para aumentar os gastos do governo e também a arrecadação da União.
O embate envolveu a discussão de pelo menos sete propostas legislativas de interesse do Executivo. Todas elas acabaram aprovadas e convertidas em lei. Isso só ocorreu, entretanto, após modificações dos projetos e concessões políticas do governo.
A disputa entre Executivo e Congresso começou ainda em 2022, quando apoiadores do governo ainda em formação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passaram a defender a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição. A proposta permitiu a União a ampliar em R$ 145 bilhões o gasto público para pagar despesas que haviam sido prometidas ainda na gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Originalmente, a PEC previa a permissão para gastos de R$ 165 bilhões. No Congresso, porém, a autorização acabou reduzida. Além disso, só foi aprovada após o novo governo assumir o compromisso de propor um novo regime para controle de gastos da União.
Até este ano, despesas do governo eram controlados pelo chamado Teto de Gastos, proposto na gestão de Michel Temer (MDB). O teto congelou gastos por 20 anos, autorizando sua correção somente com base na inflação.
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A equipe do ministro Haddad propôs vincular o aumento de gastos ao aumento de arrecadação. A regra é a principal do chamado novo arcabouço fiscal, cujo projeto foi apresentado em abril e virou lei em agosto.
O arcabouço prevê também a perseguição de metas fiscais anuais. Ao negociar a aprovação da regra, Haddad prometeu zerar o déficit da União já em 2024 – o governo gasta mais do que arrecada desde 2015.
Arrecadação
O arcabouço acabou aprovado sob este compromisso. Com ele convertido em lei, Haddad precisou reforçar seus esforços para aumentar a arrecadação do governo em cerca de R$ 160 bilhões já para 2024. A aprovação dessas propostas demorou e só ocorreu após concessões do governo sobre o texto e também por poder no Executivo.
As propostas para arrecadação envolveram mudanças nos julgamentos do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), cobrança de impostos sobre investimentos no exterior, cobrança de impostos sobre fundos de investimentos de super-ricos, taxação de apostas esportivas e fim do chamado juros sobre capital próprio, que é uma espécie de rendimento pago por empresas a seus acionistas e que reduz o imposto de renda devido por elas sobre seus lucros.
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A aprovação dessas propostas demandou intensa negociação. Primeiramente, o governo optou por enviar Medidas Provisórias (MPs) sobre os temas visando mudanças imediatas. Essas MPs acabaram sendo ignoradas na Câmara dos Deputados e perderam a validade. O governo, então, foi obrigado a enviar projetos de lei contendo as mesmas propostas. Elas acabaram modificadas, mas enfim viraram lei.
A MP sobre as mudanças de julgamento no Carf, por exemplo, foi apresentada pelo governo em forma de MP ainda em janeiro. Ela só foi sancionada em setembro. A MP para cobrança de tributos sobre rendimentos de offshores foi apresentada em maio. Virou lei em dezembro.
Nesse ínterim, Lula fez uma reforma ministerial para acomodar representantes do chamado Centrão no Executivo. Também mudou a presidência da Caixa Econômica Federal e a cedeu a um aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
Coincidentemente, horas após as mudanças na Caixa, em outubro, Lira colocou em votação o projeto para taxação de super-ricos na Câmara.
"Todas as medidas não foram 'baratas' ao governo", afirmou Dão Real Pereira dos Santos, presidente do IJF e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia. "O governo teve que fazer muitas concessões para que elas fossem aprovadas", acrescentou.
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"Me parece que o governo subestimou a dificuldade com a aprovação dos projetos no Congresso", avaliou Pedro Faria, economista e pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "A consequência prática dessa dificuldade é que vários projetos foram aprovados muito tardiamente, o que reduz o efeito potencial deles neste ano e até no ano que vem porque eles demandam regulamentação, portarias, etc.", explicou.
Reforma Tributária
Em meio a toda essas negociações e concessões, o governo manteve-se mobilizado para a aprovação da reforma tributária sobre o consumo. O tema era debatido há 40 anos. Já haviam propostas com discussões avançadas no Congresso antes de Lula tomar posse. Haddad resolveu apoiá-las e as tornou prioritárias.
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O ministro criou na Fazenda uma secretaria especial sobre a reforma. Nomeou secretário ainda em janeiro o economista Bernard Appy, especialista em tributos. Foi ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, e disse que queria a reforma aprovada ainda no primeiro semestre, reforçando o apoio governamental à proposta.
A aprovação só veio em dezembro. Ainda assim, foi considerada uma vitória histórica de Haddad. Antes da votação, Lula empenhou R$ 10 bilhões para emendas parlamentares.
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2024
Também em Davos, ainda em janeiro, Haddad havia dito que o governo usaria seu capital político para aprovar ainda em 2023 uma reforma tributária sobre a renda e o patrimônio. Essa reforma serviria para que Lula cumprisse sua promessa eleitoral de "colocar o rico no Imposto de Renda" e isentar do tributo quem ganha até R$ 5 mil.
Essa reforma, no entanto, sequer foi apresentada ao Congresso. A reforma tributária aprovada prevê que uma proposta seja encaminhada até o final de março. Haddad já disse que seu ministério já trabalha no assunto, mas, em entrevista ao jornal O Globo nesta terça-feira (2), admitiu que a discussão pode ficar para 2025 por conta das eleições municipais.
"Fazer com que rendimentos dos setores mais ricos sejam tributados não é uma coisa assim tão fácil do ponto de vista político, parlamentar. O parlamento representa os setores mais ricos da sociedade", avisou dos Santos, da IJF. "Portanto, para que essas medidas prosperem, será necessária grande mobilização, o que não é fácil."
Para além disso, Haddad já começa o ano tendo que lidar com questões ligadas à arrecadação. Os projetos apresentados em 2023, após mudanças, não devem render à União os R$ 160 bilhões necessários para zerar o déficit fiscal. E o Congresso, por sua vez, aprovou desonerações mesmo contra a vontade do governo.
A mais significativa é a desoneração sobre a folha de pagamento de 17 setores econômicos até 2027. Lula vetou o projeto, mas o veto foi derrubado por parlamentares.
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Na última semana do ano, Haddad enviou uma MP ao Congresso para promover uma reoneração gradual dos setores beneficiados. Essa MP já foi criticada por parlamentares e nada garante que ela vai ser aprovada em 2024, assim como a proposta do governo para aumento do Imposto de Renda sobre os mais ricos.
"O prospecto é que a relação governo-Congresso piore, inclusive, porque o Congresso está avançando em cima do governo, dificultando mais", prevê Faria, da UFMG.
O deputado federal Zeca Dirceu, líder do PT na Câmara dos Deputados, lembrou que "houve negociações mais ou menos simples, e por vezes duras" em 2023. Ressaltou que "foram aprovados projetos muito complexos; vários deles, inclusive, afetam interesses poderosos".
"Os principais objetivos, sem sombra de dúvida, foram atingidos, o que não significa que a versão final dos projetos aprovados tenha sido sempre a que o governo e o PT gostariam", acrescentou em nota ao Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante