Crime e castigo

Caso 'Wagner': a rebelião que abalou a política da Rússia em 2023

Do prestígio com o Kremlin à morte em queda de avião, Prigozhin foi um dos principais nomes da política russa em 2023

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Uma bandeira com o logotipo do grupo mercenário privado Wagner tremula acima de um retrato do falecido chefe do grupo, Yevgeny Prigozhin, em um memorial em Moscou, em 27 de agosto de 2023. - Natalia Kolesnikova / AFP

Se o ano de 2022 ficou marcado pelo início da guerra da Ucrânia, um dos acontecimentos internacionais mais impactantes das últimas décadas, em 2023 foi a rebelião do grupo Wagner, liderada pelo seu ex-chefe Yevgueny Prigozhin, que voltou a paralisar o mundo com a surpreendente "marcha para Moscou" do grupo militar privado russo.

A epopeia de Prigozhin nas intrigas do Kremlin oscilou do prestígio à tragédia. Reconhecido por Moscou como importante braço da operação militar na Ucrânia, o batalhão de mercenários teve papel crucial na tomada de posições estratégicas da Rússia na guerra. No entanto, as dificuldades no campo de batalha expuseram tensões entre o comando central do Ministério da Defesa e o grupo militar privado.

Entenda o contexto

O chefe do grupo Wagner enriqueceu como empresário de uma rede de restaurantes ainda nos anos 1990, quando conheceu o então vice-prefeito de São Petersburgo: Vladimir Putin. Seus negócios se expandiram a um outro nível quando passou a ganhar contratos para oferecer serviços de alimentação no Kremlin. Em 2014, ele funda o grupo militar privado Wagner e começa a atuar no leste ucraniano, sem que Moscou admita qualquer envolvimento. A organização de mercenários também passou a atuar em países como Síria, Sudão, Líbia e Moçambique. A guerra da Ucrânia foi mais um trampolim para o seu status de oligarca.

Assim, o grupo Wagner ficou responsável por liderar as tropas russas em importantes pontos da linha de frente na guerra da Ucrânia e o seu chefe, Yevgueny Prigozhin, ganhou forte projeção junto ao governo russo durante o conflito.

A importância estratégica das tropas paramilitares do Wagner em meio à guerra tornou Prigozhin um dos rostos mais notórios da operação militar de Putin. Já o comando militar russo passou a sofrer críticas pela falta de êxito do exército na linha de frente. Foi nesse contexto, alegando falta de suprimentos por parte do Ministério da Defesa a seu batalhão, que Prigozhin passou a atacar veementemente o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov.

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Sua escalada rumo à busca de influência no comando militar russo levou ao caos provocado por um motim que desestruturou o Kremlin. Mas apenas por dois dias. A rebelião foi rapidamente controlada e Prigozhin acabou morrendo em uma suspeita queda de avião.

Cronologia dos fatos

Os ataques do então chefe e fundador do grupo Wagner à cúpula militar começaram com a reivindicação de que o ministério não estava enviando munições para o batalhão, desgastando as tropas na linha de frente. Também especulava-se que Prigozhin – que nunca destinava seus ataques a Putin – almejava posições de poder político no Kremlin.

A crise chegou ao ápice em 23 de junho, quando Yevgeny Prigozhin acusou militares russos de ataque de mísseis contra o acampamento do grupo de mercenários. Com isso, na prática, ele disse que o ministro da Defesa ordenou ataques contra as próprias fileiras russas no campo de batalha.

Já na manhã do dia seguinte, como retaliação, Yevgueny Prigozhin anunciou que o seu agrupamento havia iniciado uma "marcha pela justiça" até Moscou. O chefe do Wagner também anunciou que seus partidários haviam tomado instalações militares na cidade Rostov e derrubado helicópteros do Ministério da Defesa russo. O centro da cidade ficou sob cerco militar, com presença de tanques e metralhadoras, as saídas da cidade foram bloqueadas e os moradores foram orientados a não deixar suas casas.

O Serviço Federal de Segurança da Russia (FSB) abriu um processo contra Prigozhin acusando-o de rebelião armada.

O Ministério da Defesa da Rússia pediu aos combatentes do Wagner que se rendessem, e o presidente russo, Vladimir Putin, em um discurso de emergência, classificou os acontecimentos como traição e "facada nas costas".

Apesar do cenário de caos instaurado, a rebelião foi resolvida em menos de 24h com o recuo do Wagner e o anúncio de que Prigozhin iria para Belarus, após mediação do presidente Alexander Lukashenko, para evitar derramamento de sangue. No entanto, posteriormente o seu paradeiro virou uma incógnita e o próprio presidente bielorrusso chegou a afirmar que o chefe do Wagner estava na Rússia e circulava em liberdade, mesmo com as graves acusações do Kremlin.

Após o fim da rebelião, o destino do grupo Wagner e, sobretudo, do seu fundador Yevgueny Prigozhin, ficou em suspeita principalmente pelo degaste com o Kremlin.

Em 23 de agosto, dois meses após o motim, o avião de Yevgueny Prigozhin caiu na região de Tver. Todas as dez pessoas a bordo morreram, inclusive o ex-chefe e fundador do Wagner. O ex-comandante da organização de mercenários, Dmitry Utkin, também foi uma das vítimas da queda do avião.

Falsas impressões sobre ‘golpe’ e ‘elite’ na Rússia

Assim que a instabilidade tomou conta da situação na Rússia com o motim do Wagner, a imprensa internacional se apressou em alastrar rumores de possível "golpe de Estado" ou riscos de uma guerra civil no país, considerando a possibilidade do exército privado de Prigozhin concretizar sua promessa de rumar a Moscou e pressionar o governo. No entanto, tais perspectivas não tinham respaldo no real envolvimento político entre Prigozhin e o Kremlin.

O chefe do grupo Wagner não possuía uma estrutura política que o sustentasse, nem simbolizava nenhuma força opositora. Pelo contrário, era visto como um aliado de Putin e suas ambições eram restritas à esfera de influência militar junto ao Ministério da Defesa.

Para o cientista político Vladimir Fesenko, a empreitada do chefe do Wagner "rumo a Moscou" durante a rebelião de 24 de junho era mais ligada à "ideia de que ele pretendia ter o papel de uma espécie de 'curador' de empresas militares privadas, de um possível bloco militar, que teria um financiamento na guerra da Ucrânia, e assim seria, relativamente falando, um dos 'pilares' do Kremlin".

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"Ele já era um oligarca nas sombras, mas exercia papel de executor, de fiador, era instrumento de Putin, mas queria se tornar um dos tomadores de decisão e entrar no círculo mais próximo de Putin", analisa Fesenko em entrevista ao Brasil de Fato.

Em outras palavras, o chefe do grupo Wagner pretendia ascender ao círculo das elites russas que comandam o Kremlin e ajudam Putin a formular suas políticas.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político e diretor do "Grupo de Especialistas Políticos" da Rússia, Konstantin Kalachev, explica que não se trata de um entendimento clássico de elite, considerando que, na Rússia, essa compreensão não está muito relacionada ao poder econômico. De acordo com ele, as elites russas são compostas por pessoas que participam da formulação de decisões políticas, que tomam essas decisões, e "o mundo empresarial russo, via de regra, está apartado desse processo".

Putin fortalecido

A falta de clareza sobre os bastidores da tomada de decisão do Kremlin diante da crise é um dos aspectos que suscita a disseminada tese – sobretudo na imprensa ocidental – de que Putin teria saído fragilizado. A imagem de Putin como garantidor da estabilidade e alguém que tem as elites russas sob controle estaria em xeque, o que poderia causar o "racha na elite" e prejudicar o poder do presidente russo. No entanto, pesquisas independentes, realizadas pelo Centro Levada após a crise, mostraram que a popularidade de Putin não foi alterada.

Para todos os efeitos, a crise não prejudicou a sustentação do poder de Putin no Kremlin. Pelo contrário, quem teve aumento da rejeição foram seus possíveis "concorrentes" no círculo de poder russo.

Antes do motim, 82% dos entrevistados do centro de pesquisa Levada declararam seu apoio total ou parcial às ações do presidente russo. No dia da rebelião foi constatada uma aprovação de 79% e, após a resolução da crise, o índice voltou para 82%. Já a popularidade de Prigozhin caiu significativamente. Se antes da rebelião 30% apoiavam suas atividades, a partir de 25 de junho esse índice caiu pela metade.

"Da mesma forma, o grupo Wagner dava um equilíbrio em relação ao Ministério da Defesa, sobretudo em relação à imagem. Quem era o político mais popular da Rússia depois de Putin? O ministro da Defesa, Serguei Shoigu, mas isso foi até o início da 'operação militar' [na Ucrânia]. Quem perdeu popularidade nas pesquisas após o motim, além de Prigozhin? O ministro da Defesa. Por isso é formado um sistema no qual ninguém deve crescer muito e se tornar uma ameaça ao presidente", argumenta o cientista político Konstantin Kalachev.

Uma semana antes do motim, a aprovação de Shoigu na Rússia era de 60%. Após a rebelião do Wagner, esse índice passou para 48%.

Assim, a forma com que a crise do Wagner foi resolvida foi mostrar que o Kremlin tem habilidade de conter crises, "como uma indisposição a um derramamento de sangue, como alguém que está disposto a fazer concessões, e muitos se conformaram com essa versão". Em contrapartida, o analista destaca que, do ponto de vista das elites, muitos "começaram a repensar algumas coisas, se estaria se perdendo a garantia de uma segurança, a garantia de um arbítrio superior, no quanto o próprio sistema é sustentável".

Sistema 'dessacralizado'

Um discurso comum que é sempre retomado no meio acadêmico e midiático em momentos de instabilidade na Rússia é o suposto "racha na elite" do país. A ideia é que a centralidade com que Putin vem governando, na prática, há mais de 20 anos fosse garantidora de um certo equilíbrio de interesses entre as forças dominantes da Rússia.

Ao mesmo tempo, quando se fala de "elite" na política russa, é preciso esclarecer que não se trata de um entendimento clássico de elite, considerando que, na Rússia, essa compreensão não está muito relacionada ao poder econômico.

"A elite russa é composta, em primeiro lugar, pelas pessoas que fazem parte do chamado 'politburo 2.0', que cercam o presidente e, de uma forma ou de outra, formulam a sua imagem do mundo, tomam parte na elaboração e na tomada de decisões. Uma parte significativa dessas pessoas faz parte das estruturas de segurança. A elite russa é, em grande medida, a elite da força. O 'business' está subordinado a essa estrutura", afirma Kalachev.

Assim, períodos de turbulência política ou econômica ampliariam insatisfações de alguma dessas forças, provocando uma possível desestabilização no sistema de poder de Putin. Tal especulação só aumentou com o prolongamento da guerra da Ucrânia e chegou ao seu ápice com a rebelião do grupo Wagner.

O cientista político aponta que a ideia de um "racha na elite" da Rússia deve ser visto com ceticismo, pois o sistema de poder do Kremlin funciona através de um "complexo sistema de equilíbrio de interesses".

"Aquilo que muitos reconhecem como um racha interno da elite por conta do aumento das divergências das elites na Rússia é, na verdade, um equilíbrio, um complexo equilíbrio de interesses. Um sistema de equilíbrio não se constrói em um ano e na realidade isso depende de que lado observamos. Podemos enxergar como um 'racha', ou podemos enxergar como um sistema de pesos e contrapesos", argumenta.

Ao mesmo tempo, o cientista político reconhece que houve uma "dessacralização" do governo e da "imagem que foi construída ao longo de mais de 20 anos". "É claro que o sistema interno de equilíbrio foi alterado, mas é um sistema tão complexo e nem sempre sustentável, digamos assim, mas a eliminação de um dos atores, de um dos membros desse sistema, é inviável, porque pode violar todo o equilíbrio", acrescenta.

Enquanto o mundo inteiro enxergava o incidente da morte de Prigozhin como uma retaliação pelo motim incitado por Prigozhin em junho de 2023, o Kremlin inicialmente não fez esforços imediatos para refutar tais rumores.


Membros do grupo Wagner se preparam para deixar o quartel-general do Distrito Militar do Sul para retornar à sua base em Rostov. / ROMAN ROMOKHOV / AFP

Considerando a intrincada trajetória da relação entre o chefe do grupo Wagner e o governo central da Rússia, não é preciso entrar em teorias especulativas para diagnosticar um fato: a morte de Prigozhin trouxe uma conveniência política para o Kremlin.

Para o cientista político Mikhail Komin, é conveniente para o Kremlin deixar um recado interno. Ele destaca que nem Vladimir Putin, nem a administração presidencial, tentaram dissipar seriamente o boato da ligação entre o Kremlin a queda do avião.


Chefe do grupo mercenário russo Wagner, Yevgeny Prigozhin, segura uma bandeira russa na frente de seus soldados em Bakhmut, em 20 de maio de 2023 / Telegram / Concord Group / AFP

"É claro que isso tem utilidade. É claro que eles consideram que se houver a possibilidade de demonstrar essa recuperação de uma certa ordem, de força contra a humilhação que Yevgueny Prigozhin impôs a Vladimir Putin há dois meses durante o motim, isso permitirá manter o regime mais estável, mostrando que todos que tiverem alguma insatisfação ou desafiarem o regime com armas nas mãos, podem esperar uma morte assim tão penosa", analisa.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Mikhail Komin argumenta que todo o processo que o grupo Wagner atravessou desde o seu protagonismo na guerra até o motim e a morte de Prigozhin, deixou rastros de instabilidade para a sustentação do poder no Kremlin.

"O grau de indeterminação, no qual a elite russa de certa forma já se encontrava após o início da guerra, agora cresceu ainda mais. E esse grau de indeterminação, é claro que, em uma perspectiva de longo prazo, mina os alicerces do regime, porque se a elite entende que o presidente pode fazer o que bem entende, isso não pode levar a nada de bom", completa.

Já Konstantin Kalachev destaca que, do ponto de vista das pesquisas, Putin não perdeu nada, mas do ponto de vista da percepção de uma minoria ativa, "algo tenha mudado".

"Quanto mais alto você estiver na pirâmide hierárquica, mais se vê problemas, porque todos viram que o sistema se encontra um tanto perdido. Ninguém saiu às ruas para defender o presidente e, no fim das contas, ninguém derrubou esse grupo de rebeldes, então surge uma questão. Mas, sim, o sistema é sustentável, mas simplesmente porque não há alternativa", completa.

Edição: Rodrigo Durão Coelho