Quem está por trás disso? Como funciona o “Mecanismo”? O que é o “Sistema”? Quem realmente manda? Desde os anos de 1990, há cada vez mais perguntas desse tipo que fomentam toda a sorte de teorias da conspiração sobre quais forças realmente mandam no mundo, e, por conseguinte, em nossas vidas. Elas coincidem com a “globalização” liberal e o avanço das empresas multinacionais.
Podemos dizer que praticamente desde o estabelecimento do capitalismo, as forças de esquerda denunciam as “estruturas escondidas” que norteiam nossa vida: a mais-valia, o fetiche da mercadoria, o salário, a falsa meritocracia, entre outras. Junta-se a isso o fato de que os capitalistas, por questões de segurança, sempre se esconderam de seus explorados. E revelá-los também sempre foi tarefa esquerdista. Pois nunca se sabe ao certo quem são os donos, os acionistas, os patrões, os que realmente mandam, enquanto a luta trabalhista era sempre feita contra outros trabalhadores, tornados capatazes.
Em suma, denunciamos os exploradores e a exploração. Essa denúncia sempre teve forte poder de convencimento e agregação, uma vez que continha nela um espírito de “revelação da verdade”, de desengano e, usando o termo marxista num sentido mais largo, desalienação. Qualquer pessoa fica grata quando é salva de um ludíbrio ou estelionato.
Nos dias de hoje, entretanto, essas denúncias e alertas foram cooptadas pela extrema direita. Evidentemente, de modo torto ou “formal”, mas o fato é que Trump, Bolsonaro e agora Javier Milei se elegeram, em parte, por capitalizarem em si a figura do antissistema. “Contra tudo que está aí!”, se construíram “revelando e falando verdades”.
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Mas em que momento a esquerda perdeu esse protagonismo “antissistema”? E como a extrema direita se tornou “antissistema” sem ser anticapitalista? Uma vez que não há crítica ao modelo econômico, é importante entender que a tomada do discurso antissistema é puramente cultural, ou seja, ideológica. E isso não é pouco, pois ela dá conta de capturar e encaminhar soluções para uma insatisfação material real e generalizada.
Há um consenso sobre as bases materiais que produzem essa insatisfação atual contra “o Sistema”. O capitalismo global pós-industrial, altamente concentrador de renda e destruidor das relações de trabalho, produziu desigualdades inéditas, privatizou a esfera pública e mercantilizou todos os aspectos da vida das pessoas. Contudo é importante compreender o conjunto de fatores que criam a desconfiança contra esse Sistema e o que favoreceu a captura do discurso antissistema.
Primeiro é preciso falar sobre o que fundamenta o “sentimento” de que haveria um sistema oculto “inimigo”. E isso passa fundamentalmente pelos limites (ou problemas estruturais) da democracia liberal. Em termos do estado de direito, há uma impressão generalizada de que a justiça não é para todos. E os números da população carcerária e de investigação e judicialização de casos revelam uma profunda diferença de classes. Não se investiga nem se punem crimes contra os pobres. Mas se prendem os pobres.
Em termos práticos, no Brasil há uma justiça para os ricos e outra para negros e classes baixas. No que se refere à representatividade, o poder econômico consegue também desvirtuar o processo e ter uma “sobre-participação”. Assim, sob uma aparência formal de democracia o que temos é uma hegemonia das elites nos legislativos e executivos nacionais.
Para além da presença direta em cargo, o poder econômico atua ainda para convencer, constranger, chantagear e mesmo corromper figuras, administrando mudanças e controlando reformas. Isso tudo fomenta o sentimento descrente e despolitizante de que “nada muda” e de que “são todos iguais”, criando a sensação de que há forças mais poderosas que nos governam. Pois de fato há. A democracia liberal criou limites práticos contra mudanças profundas. Assim, a sensação é de que a “vida está só piora, e as coisas nunca mudam”.
Outro fator fundamental, para a criação dessa sensação de inimigo invisível, está no obscurecimento cada vez maior das forças econômicas dominantes no mundo. E todas elas, surgiram, por um único propósito: globalizar e maximizar os lucros do capital internacional. Para poder agir nas brechas das legislações nacionais, ou mesmo fora-da-lei desses locais, a dita globalização nada mais fez do que, se valendo das novas tecnologias de informação, facilitar: 1) a rápida expatriação e realocação de recursos. 2) o esconderijo desses recursos, fugindo de taxações e impostos nacionais; 3) o ocultamento das pessoas físicas por trás dessas operações.
Portanto, a criação de gestores de fundos de investimento, de empresas offshore e de todo tipo de solução jurídica foi feita basicamente para enriquecer cada vez mais, manipular legislações nacionais e atuar transnacionalmente, num nível de acumulação inédito na história. Se você nunca ouviu falar de Black Rock, Vanguard Group ou Fidelity Investiments, saiba que esse é o objetivo dessas empresas. Mas saiba que elas atuam em sua vida diariamente, em nível mundial. E atuam não somente na esfera comercial, mas também na político-cultural, como faz a renomada Oppen Society, de George Soros.
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Para a extrema direita, esse avanço oligarca político-cultural no mundo se chama Globalismo. E seria essa elite mundial que dominaria tudo. Mas identifica essa empreitada, de modo esquizofrênico, com a esquerda e até com o marxismo mundial, algo que é, em verdade, claramente capitalista.
No entanto, por volta dos anos 2000, a crítica a esses atores capitalistas globais era feita pela esquerda. Um documentário símbolo disso é o The Corporation, de 2003, realizado pelos canadenses Mark Achbar e Jennifer Abbott. Nessa época ainda se multiplicavam os movimentos antiglobalização, anti-Alca, e até a esquerda estadunidense protagonizava a Batalha de Seattle. Livros como “Império” de Negri e Hardt e “Sem Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido” de Naomi Klein estavam entre os mais vendidos.
Observando retrospectivamente, é possível notar como essa elite capitalista soube esvaziar político-culturalmente esses movimentos e estimulou, via cooptação de ferramentas de identificação mundiais, outras lutas que não fossem inoportunas ao Capital. Tudo isso em pouco menos de dez anos. Mas esse redirecionamento de pautas produziu um efeito colateral: incomodou a extrema direita tradicional.
Hoje em dia, quem denuncia e vocifera contra o Globalismo e o poder secreto das corporações é a extrema direita. Em menos de 20 anos, ela tem em mãos a potência aglutinadora de “revelar verdades” sobre o Sistema que domina o mundo, que nada mais é que o poder político e imperialista da oligarquia ocidental.
Eles vêm produzindo vasto material cultural: vídeos, entrevistas, documentários, podcasts, explicando, do seu ponto de vista, esse fenômeno. Como não podem (ou não sabem) enxergar a raiz capitalista do problema, apelam para todo tipo de explicações mágicas, conspiracionistas e estapafúrdias. Mas culturalmente falando, pouco importa a veracidade dessas explicações (que são alvo muitas vezes de piada, por parte da esquerda), e sim manter a primazia como “sujeitos reveladores da verdade”.
A potência dessa possibilidade reside justamente na longa história cultural de construção de um imaginário do “inimigo oculto”. Se entendermos a figura do Demônio, nesses termos, poderemos perceber o quão ancestral é essa formulação ideológica. Em nossos tempos, vale ressaltar as toneladas de filmes, séries e games em que o vilão é revelado no final. Muitas vezes, no início ele era um bondoso mocinho e depois se revela a encarnação do mal.
O “Mal” escondido, puro e simples, nesses produtos ideológicos, sempre foi a predileta explicação mágica para os problemas do mundo, contribuindo obviamente para o ocultamento das mazelas do Capital. Quantos “chefes principais” não foram revelados nas últimas batalhas de games? Quantos vilões não foram desmascarados pelo Scooby-doo e seu amigo Salsicha, em um inocente desenho. A indústria dos games soube explorar bem essa tradição e traz um exemplo potente para a cultura que desconfia do Sistema: no icônico jogo Resident Evil, a pandemia de zumbis é causada pelo vazamento de um vírus da empresa de biotecnologia Umbrella Corporation. Nesse jogo quem dissemina o Mal é, portanto, uma grande corporação farmacêutica (qualquer semelhança com as teorias da conspiração frente ao Covid não é mera coincidência...).
É nesse bojo de fatores que se constituiu o caldo de uma cultura antissistema. Uma legião de pessoas mundo afora que possuem um sentimento permanente de desconfiança sobre a manipulação de suas vidas e sobre “falta de liberdade”. Se sentem como marionetes e sonham em ser protagonistas de sua história (o 8 de janeiro e a invasão ao Capitólio são fruto disso). Com esse histórico sociocultural, trazer para si a primazia das denúncias contra poderes ocultos é, sem dúvida, um grande poder político agregador.
Assim, basta adaptar sua forma cultural a algo que colida com o padrão do establishment. Falar palavrões, não ser “politicamente correto”, ser popularesco, etc. Estereótipos facilitados pela lógica de comunicação contemporânea, das empresas de redes sociais, que privilegia esse tipo de inserção. Mas se mostrar como alguém de fora do Sistema, sem ter a primazia das “revelações da verdade” não seria suficiente. Por isso, é tarefa histórica da esquerda retomar essa primazia, com o incremento de produções culturais que expliquem e denunciem, do seu ponto de vista, as corporações mundiais, o imperialismo e o poder oculto real do Capital. Mas ao contrário da extrema direita, pode fazer isso com coerência e levar suas formulações e “revelações” à raiz capitalista desse ocultamento.
*Guilherme Leite Cunha é produtor e crítico cultural. Criador da revista de crítica de arte DAZIBAO, é mestre em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo, e pesquisa as relações entre cultura e política.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rebeca Cavalcante