Depois de enfrentar uma cassação na Câmara Municipal de Curitiba, ter seu mandato restituído pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e ter vencido as eleições para deputado estadual no Paraná, Renato Freitas (PT) se vê envolvido em nova polêmica ao discutir com o presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep), Ademar Traiano (PSD), que pediu sua cassação.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Paraná, Freitas afirma que estava no seu direito de voz, e que Traiano é um parlamentar “autoritário”.
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A conversa aconteceu em plena praça Carlos Gomes, centro de Curitiba, a céu aberto, recebendo abraços e comentários de quem passava por ali, dialogando com quem estava disposto a escutar as principais provocações do deputado. Freitas também abordou os desafios organizativos da esquerda, do trabalho de base, além de uma crítica contundente a uma visão apenas institucional da luta política. Para Freitas, no parlamento "a liberdade e a justiça não serão dadas por esses opressores", mas pela organização popular e pela luta dos excluídos.
Brasil de Fato – Deputado, vamos falar de um assunto que parece recorrente em sua carreira política, que são pedidos de cassação da atividade parlamentar. O senhor enfrentou processo na Câmara e, agora, na Assembleia. O que tem a dizer sobre isso?
Renato Freitas – Olha, desde que nasci, tentaram me aprisionar nas correntes da miséria. Eu sou nego fujão. Nasci e fugi para transgredir. Não consigo me adaptar às normas que naturalizam as injustiças e, por isso, enfrento a reação daqueles que são mais fortes, aqueles que detêm o poder, aqueles que nos amarram, aqueles que obtêm benefícios, vantagens com a redução da nossa liberdade, da nossa vida. Foi assim na Câmara dos Vereadores, quando eu enfrentei aqueles que pediam Cloroquina e Ivermectina para Covid, foi assim quando lutei pela vida e memória dos homens negros mortos no nosso país, em especial Moïse Kabagambe na igreja dos homens pretos.
Tem sido assim também na Assembleia Legislativa do Paraná. Quando não baixei a cabeça diante de um parlamentar autoritário, que se achava rei, porque está lá há 30 anos, dos quais 10 como presidente. Falei para ele que ele não era rei, e ele cortou meu microfone. Eu também disse que naquele momento ele era um corrupto, principalmente porque corrompia o regimento da casa, ao qual ele fez juramento. O regimento diz que eu tinha direito a falar, e ele se corrompeu em interesse próprio. A corrupção assola a figura de Ademar Traiano por diversos casos que a própria imprensa noticiou, e o mais recente desses casos é o que envolve o Vicente Malucelli. Sabemos que o Ministério Público ainda não promoveu uma denúncia. Já faz um ano, acredito que promoverá, acredito também nas instituições.
Essa denúncia está lá, ouvida da boca do próprio Vicente, que o Ademar Traiano pediu dinheiro para ele, para o casamento da filha. E pediu porque o Vicente Malluceli tinha vencido uma licitação e controlava a comunicação da Assembleia. Por diversos ângulos, a corrupção recai sobre o Traiano, mas naquele momento em específico me referia que ele corrompia o regimento.
Para quem não entende o que aconteceu, estava tendo uma sessão da Assembleia, havia representantes de igrejas e o assunto era o aborto. E você estava discursando e tentaram cortar sua palavra...
Olha que ironia do destino. As pessoas estavam lá para falar contra o aborto porque era uma pauta que estava sendo discutida no STF, mas estavam lá também com bandeiras de Israel hasteadas. E eu disse que Israel é um país em que o aborto é liberado em diversas hipóteses, que a maconha é liberada em diversas hipóteses. Que as próprias marchas dos orgulhos LGBT, identidade de gênero etc. existem há muito tempo. É um país liberal, e aquelas pessoas, contraditoriamente, com a bandeira de Israel, se diziam contra o aborto. O que eu disse é que, afora a ignorância que evidentemente assombrava aquelas pessoas, havia também uma boa dose de hipocrisia.
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O Ademar Traiano, nesse momento, me interrompeu e eu falei: “O senhor deve me ouvir, porque eu fiz devidamente a inscrição, o senhor e todos os hipócritas que lotam hoje essa casa?” Eu me referia aos hipócritas que falavam contra aborto defendendo um país que promove o aborto. Essa contradição se chama hipocrisia, e ele vestiu a carapuça. Ele disse: “Aqui não tem nenhum hipócrita, Renato Freitas, me respeite. Respeite os parlamentares dessa casa...” Mas eu estava me referindo aos que estavam lá protestando.
Ele cortou meu microfone, depois de tentar me corrigir ou, de alguma forma, me disciplinar. Eu saí, fui para outro microfone e falei, o senhor, não é rei. O senhor respeite o regimento, respeite minha palavra. Sou parlamentar. Tenho direito de “parlar”, no mínimo. Sem esse direito, eu não exerço a representatividade. Eu não exerço aquilo que a Constituição reserva à minha figura como representante legal. Depois disso cheguei próximo dele e falei, o senhor é corrupto. Porque, de acordo com o nosso dicionário, corrupto é aquele que corrompe também e ele corrompia, naquele exato momento, o regimento da casa.
No que que você acha que esse processo vai dar?
Olha, por minha sorte, o regimento da Assembleia Legislativa do Paraná, diferente do da Câmara de Vereadores, exige uma punição gradativa, então ele não pode chegar e me cassar. Não pode iniciar pela pena capital. Ele precisa dar uma sanção, uma advertência ou até mesmo cassar o meu direito à palavra. Mas nós não aceitaremos nenhuma dessas punições nem nos resignaremos. Porque aquele que diz a verdade não merece castigo, já diz o ditado popular.
As ações do seu mandato estão repercutindo nacionalmente. Está gerando debates na esquerda, inclusive de qual é a função de um parlamentar de esquerda. É uma função de zelar pela estabilidade institucional? Que função é essa, de debate, provocação, enfrentamento, propaganda? Como você e seu grupo têm pensado o papel do seu mandato?
Olha. Acredito que a função do parlamentar é revigorar os sonhos, os anseios do povo, mostrar que é possível sonhar com a transformação da realidade, a tal ponto que a realidade contemple a condição de vida dos mais pobres. De ter três refeições por dia, uma casa própria, um emprego digno, condições de estudo, de conhecimento, de lazer, de organização política. Parecem objetivos utópicos, inalcançáveis de acordo com aqueles que rezam a cartilha do pragmatismo estrito e tacanho. Não têm pressa. O tempo não é o mesmo para todos. Depende muito de que lado da porta do banheiro você está. Se você está do lado de dentro, com um “Almanaque da Mônica”, o tempo é um, mas se você estiver do lado de fora, suando e batendo na porta, o mesmo tempo vai representar outra coisa, que é um tempo de urgência.
Nós, o povo, estamos no tempo de urgência, de exigir o impossível até que se torne possível. É isso um pouco o que a gente faz. E para isso a gente tem que demonstrar os limites da institucionalidade. A Assembleia Legislativa do Paraná é um lugar onde, por maioria, existem os gafanhotos devoradores, que devoram onde passam, deixam rastros de ódio, violência, destruição. Espoliam o povo, são netos, bisnetos, filhos de grandes coronéis que desde sempre dominaram a política paranaense.
A liberdade e a justiça não serão dadas por esses opressores. Ela será, evidentemente, uma conquista de todos os oprimidos e nós, eu, particularmente, tenho carteira de trabalho registrada. Fui empacotador de mercado, morei a vida toda de aluguel, morei em área de ocupação, sei exatamente os problemas que atingem a população, por isso acredito que eles tenham mais condição de encontrar saídas para eles. Chega de porta-vozes falando em nosso nome, se a história é nossa, deixa que a gente escreve.
Você participa ativamente dos atos da campanha do Despejo Zero. Das lutas das comunidades, mas em especial a bandeira da moradia. Por sua própria história, essa luta é especial? Você avalia que é uma bandeira urgente para o momento? Queria que você dimensionasse também um pouco a luta pela reforma agrária e pela reforma urbana, é uma luta central?
Temos de compreender o valor de dar a cada um o seu quinhão de terra para plantar, para colher, para ver as crianças nascerem, para ver os mais velhos descansarem. Na abolição da escravidão no Brasil, isso foi feito depois de muita luta e muita pressão. Quando isso ocorreu, o Brasil fez o quê? Foi em 1888 a falsa abolição. Em 1850, o governo brasileiro determinou que a terra, a partir daquele momento, fosse apenas por título, não por posse. Ora, um país de várias terras devolutas, abandonadas, aqueles que viviam por décadas em sua casa já não eram mais proprietários delas. Porque em 1850 o ser humano negro no Brasil era tido como coisa, não como ser humano, e por isso não podia comprar. Não podia chegar a um cartório e ter um título de propriedade. Então eles trataram de privar o povo preto de modo geral da posse da terra. Hoje, séculos depois, a gente percebe que mais da metade da renda do trabalhador comum vai para onde? Para o pagamento do aluguel. Nascemos devendo, pagamos para meramente existir. Dormir para no outro dia ir trabalhar. Essa é uma tática de continuidade da escravidão, por isso é uma luta central do país hoje.
E vale ressaltar, o Brasil é um dos únicos países no mundo que ainda não fez a reforma agrária. Nosso vizinho Paraguai fez, nossa vizinha Argentina fez, os Estados Unidos, de algum modo, fizeram. Qual país na Europa não fez reforma agrária? Nos outros lugares não tem esse modo de produção e de manutenção de privilégios, em que os coronéis têm a terra, o poder fundiário. Daí têm o poder econômico e o poder político. É claro que a gente não vai conseguir se libertar deles. Se a gente continuar necessitando deles para morar, para trabalhar, para viver, a gente vai continuar votando neles. E as desigualdades ainda se reproduzirão.
Vamos voltar um pouco à Câmara dos Vereadores e à Assembleia Legislativa. As pessoas não têm ideia do que acontece nesses espaços, né? Em que o prefeito, o governador vão lá e têm a maioria dos vereadores e deputados nas mãos deles e fazem o que querem. Fale um pouco disso, de como é? Isso frustra?
Olha, a institucionalidade é corrupta. O maior crime organizado que temos hoje é aquele promovido pelo próprio estado. E como? Quando eu fui vereador, o prefeito Rafael Greca, num universo de 38 vereadores, ele tinha pelo menos 28 na mão dele, votavam com ele em tudo e ainda votam. Mas por quê? Porque eles concordam com a visão política, com as propostas do prefeito. Não, é porque o prefeito dá cargos na Rua da Cidadania, dá favores. Uma obrinha, uma lombada na frente da creche onde têm votos. O prefeito ajuda esses vereadores para que eles sejam reeleitos. E os vereadores ajudam o prefeito para que ele também seja reeleito. Tudo à custa do interesse público, porque o que é cargo? A palavra cargo representa, no final do mês, dinheiro.
Em resumo, dá dinheiro para os vereadores para que os vereadores votem com ele para que ele dê benefícios para os ricos. E que, com isso, continue ele também rico e continue agradando os donos do poder e se perpetuando no poder. A mesma estrutura se repete na Assembleia Legislativa do Paraná. Temos o caso, por exemplo, do Denian Couto, deputado estadual que hoje está na folha de pagamento do governador. Como assim, não pode? Não pode, mas ele está, como? O governador é dono da Rede Massa de televisão, que é do pai dele, da família dele, e o Denian Couto agora trabalha pra eles como apresentador. Ele é empregado do governador. Será que não é um interesse divergente e conflitante, você ao mesmo tempo trabalhar para o povo, ter de fiscalizar o governador, porque esse é um dever do deputado, e ao mesmo tempo trabalhar para o governador dizendo que está fiscalizando o povo. Acender duas velas... É óbvio que isso é errado, é antiético, mas representa muito bem a institucionalidade, porque a institucionalidade é corrupta, portanto, limitada. Não dá oportunidade de as pessoas se realizarem. Enquanto cidadão, o povo paga a conta. Quando o governador escolhe a música, pagando a banda, e a banda são os deputados. Quem paga a banda, escolhe a música e o povo dança. Isso não é admissível.
Renato, você tem contato com as periferias, está trabalhando direto com elas. Mas há certa descrença do povo com partidos, com a própria política, que veio também de alguns erros que a própria esquerda cometeu, né? Na ausência do trabalho de base, de um trabalho cotidiano, de uma luta mais cotidiana. O seu esforço no Núcleo Periférico, que já existia antes dos seus mandatos, essa coisa que a gente viu lá, da cozinha comunitária, fazendo cursos, da panificação... É necessário a esquerda fazer o trabalho de debate, mas também ajudar a construir condições de trabalho, renda, quer dizer, como você vê essa construção do Núcleo Periférico e a e a própria situação da periferia hoje e a relação com a esquerda?
Olha, a esquerda, a partir do momento que chegou ao poder, ela foi se burocratizando, por necessidade de compreender a aprender se apropriar do Estado para melhor servir ao povo, normal, ok? Perfeito. Só que logo depois disso vieram os cargos, a ambição, a fraqueza dos seres humanos e a esquerda foi cada vez mais se afastando das bases, porque teria de estar em Brasília, e não na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), na área de ocupação, onde a violência predomina. A esquerda queria estar nos cargos partidários, na direção de postos.
Nos postos onde rende inclusive dinheiro, e não queria estar no chão de fábrica, conversando com a operadora de caixa do mercado durante a pandemia de Covid, sabendo como ela se sentia sendo tão exposta a um vírus que ela mal conhecia. Se tinha aqueles dias de ansiedade, transtorno mental... Essa categoria dos trabalhadores de mercado à frente de caixa, morrendo por conta do Covid. Se eles tinham condições de se organizar? A esquerda não organizou essas pessoas. Essa é a verdade.
Foi isso, Mano Brown, naquele discurso épico , falou para o PT, anunciando já a possível derrota, diagnosticando o problema, ele disse: “Voltem para base”. Uma esquerda que fala em nome do trabalhador e do pobre e do preto do excluído, mas age em cumplicidade, em conciliação com os ricos, com os que estão nos castelos, essa esquerda vai perder a noção da urgência do tema, do que é prioridade, do que não é prioridade. Nós estamos no Núcleo Periférico para que a gente não perca essa vista, não perca essa bússola da urgência do que é ou não prioridade.
Nós já iniciamos os nossos trabalhos dando comida a quem tem fome, bebida a quem tem sede, roupa a quem está nu, um banho para quem está em situação de rua, um tratamento médico com enfermaria a quem está adoecido. Fazendo isso, nós sabemos que o nosso caminho vai ser sempre o de levantar os que estão caídos. E nesse caminho a gente não se perde.
A partir daí, depois do alimento do estômago, vem o alimento do espírito e da mente, que é a formação política. Para que cada pessoa em situação de rua se torne um líder. A favor da luta, da dignidade, da moradia, da justiça para que cada um do sistema carcerário se torne um líder em favor da luta, da liberdade, da desmilitarização. Ser a favor da justiça, esse é um caminho que não tem erro, acredito eu. Dar o exemplo, como outros projetos serviram de exemplos para nós também, hoje a gente serve de exemplo para muitas outras pessoas que estão iniciando atividades em seus bairros a partir das ações que nós temos no núcleo.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano e Frédi Vasconcelos