Quando o baiano de Salvador, Itamar Vieira Junior, 44 anos, foi parar no interior do Maranhão como funcionário do Incra, pasmou-se com o que descobriu. Encontrou lugares, situações e gentes que só conhecia da literatura dos anos 1940. Leitor na adolescência de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e dos áridos poemas de João Cabral de Melo viu que a vida não mudara naqueles confins e mimetizava os dramas do Brasil rural de meados do século anterior. O passado não passara.
Este choque e suas longas reflexões estão na gênese de Torto Arado, um dos mais importantes romances dos últimos anos no Brasil, sucesso tanto de crítica quanto de público, o que atestam os quase um milhão de exemplares vendidos desde seu lançamento em 2019. Venceu o Prêmio Jabuti, maior galardão literário do país, e encetou uma carreira internacional. E vai ser transformado em série pela HBO Max. O segundo passo da trilogia iniciada por Torto Arado, o romance Salvar o Fogo, segue trilha similar.
Nesta conversa com Brasil de Fato RS, ele conta sobre o papel crucial da terra e do território nas mentalidades do Brasil contemporâneo, mesmo dos brasileiros urbanos, lembra que, aqui, a escravidão ainda marca como ferro em brasa as relações humanas, discorre sobre o que a literatura pode fazer diante do quadro dramático de racismo, exclusão e desigualdade em um país tão diverso mas onde a grande maioria dos escritores são homens e brancos.
BdF RS - Teus livros são atravessados pela questão da terra. E tens uma experiência como servidor do Incra, trabalhando 17 anos junto aos agricultores, sem-terra, quilombolas. Como essa experiência influenciou a tua literatura?
Itamar Vieira Junior - Influenciou profundamente. Como você disse, tenho 17 anos de trabalho no Incra com as populações do campo. Fui trabalhar no Maranhão, depois voltei pra Bahia, e conhecendo essa realidade, pude entender o Brasil de uma maneira melhor.
No campo, as marcas desse passado que nos divide, que nos fragiliza, ainda estão muito presentes. Foi fundamental para me questionar sobre muitas coisas, entre elas a nossa relação com a terra, o território, o lugar em que vivemos. Os livros estão retratando as populações do campo. Mas estou pensando em todos, estou pensando em nós, inclusive, que muitas vezes vivemos na cidade mas vivemos alienados desse direito ao chão que pisamos, a casa em que vivemos, a rua em que trafegamos. É um direito fundamental para todos os seres humanos.
Não há vida sem terra e sem território. Não por acaso todos os conflitos de que a gente tem notícia se dão justamente por isso, por essas pessoas que tem esse direito negado. Se pensarmos na realidade brasileira, vemos ver que há muitos ativistas, lideranças camponesas, ambientalistas, na linha de frente dessa luta e muitas vezes correndo risco de vida. Quantos não se foram nos últimos anos? Só este ano, quantos não morreram por causa dessa batalha? É uma batalha que nos atravessa há séculos. Então, nós que escrevemos e reescrevemos arte, literatura, no fundo estamos registrando o nosso tempo, escrevendo e refletindo sobre ele.
Não comemos commodities. Comemos alimento e ele vem do pequeno e do médio agricultor
Falas também que essa é uma questão estrutural da desigualdade que se vive no país...
Não tenho dúvida. Se formos pensar na história do Brasil, na opção que o Brasil fez enquanto nação, o acesso à terra nos dividiu e continua nos dividindo. No passado, foi reservado àqueles que podiam adquirir e não mudou com o tempo. O Brasil nunca realizou uma reforma agrária da maneira que deveria. Teve um grande contingente populacional de herdeiros da diáspora africana, o processo de abolição foi encampado por muitos abolicionistas e visava não somente a liberdade, mas também uma reforma agrária que desse oportunidade àquelas pessoas para viverem uma vida diferente, poderem subsistir. Mas isso não ocorreu e a gente vem arrastando esse problema há séculos.
Chegamos ao século 21 e esse problema está em pauta, continua sendo relevante. E digo porque tudo passa pela terra. Se a gente pensa na nossa segurança alimentar, essa é uma questão fundamental. No Brasil, há os que produzem para alimentar mas há os que produzem commodities para a balança comercial. E, vou citar a Maria da Conceição Tavares, nós não comemos PIB, nós não comemos commodities. Comemos alimento e ele vem do pequeno e do médio agricultor.
Dificilmente vamos encontrar um latifundiário que produz alimento para abastecer o país. Ele produz soja, produz cana-de-açúcar, produz bens que vão ser exportados. Precisamos refletir sobre isso. Nenhum país é desenvolvido se não tem sua população com segurança alimentar. Se não conseguimos alimentar a nossa população, se não consegue distribuir recursos, a reforma agrária é um tema que não envelhece. Precisa ser enfrentado e debatido ainda nos nossos dias. A questão da terra ainda nos divide, a desigualdade que remanesce dessa maneira de viver no campo
Trabalhando no Maranhão vistes a realidade dos romances que lestes, como Vidas Secas, e outros romances e poemas a situação do Nordeste. Vemos que a Bahia tem muita violência ainda. Aqui no Rio Grande do Sul também, com grandes latifúndios e a monocultura. Teus livros trazem de forma muito dura essa realidade. De alguma forma, tua literatura está influenciando esse debate?
Acho que a literatura tem uma contribuição muito pequena. Mas é inevitável pensar que aqueles que leram ou irão ler essas histórias se não vão se questionar sobre tudo isso. O debate deve estar em todas as instâncias da sociedade, sobretudo no espaço político, no Congresso, nas associações comunitárias, nos partidos políticos, nas escolas, nas universidades. Precisamos falar sobre tudo isso. É uma coisa que ainda nos divide. A questão da terra ainda nos divide, essa desigualdade que remanesce dessa maneira de viver no campo.
Se a gente pensar, tudo tem origem no campo. As pessoas que habitam as áreas precarizadas das cidades, muitas vieram de processos de migração, eram desterradas, estavam sem terra, e tiveram que vir para a cidade, habitar lugares sem infraestrutura, passando pelas mesmas coisas por que passavam lá. Não se pode passar mais um século evitando falar sobre isso. Só vamos estar empurrando nosso futuro para o abismo, que é para onde a gente está indo. A escravidão continua sendo um problema porque a gente reproduz práticas escravistas
Em Torto Arado está essa questão: com o fim da escravidão, os ex-escravos não tiveram acesso à terra. É um debate que vem junto com o racismo estrutural...
Com certeza, foram quase quatro séculos de escravidão e temos pouco mais de um século de abolição. E uma abolição incompleta, porque não veio acompanhada das políticas públicas necessárias para inserir essas pessoas num espaço social igualitário. Então, a escravidão continua sendo um problema para o Brasil, até porque a gente reproduz práticas escravistas. Não por acaso a imprensa dá conta de pessoas resgatadas no campo e na cidade em situação de escravidão. Não são uma ou duas pessoas e tem ocorrido com frequência.
Existe uma maneira de explorar o trabalho humano que não foi desconstruída. Se as pessoas negras e indígenas ocupam as camadas mais fragilizadas da nossa sociedade é porque esse problema nunca foi enfrentado. Há um ranking de vida e valor que nunca foi desconstruído. As pessoas negras tem os piores índices sociais. Tem ocupado massivamente as penitenciárias e outros espaços de repressão que aviltam a dignidade humana. Daí a escravidão ser um tema urgente.
Pensar o Brasil a partir dessa chaga que nunca nos abandonou. A literatura, talvez com a sua capacidade de nos permitir viver a vida das personagens, possa fazer a gente refletir. Mas a solução passa longe da arte. Vai se resolver nos espaços de debate. A solução seria através das políticas públicas. Mas não se pode esperar isso dos políticos. A política é algo que deve ser vivido e exercido por todos nós. Precisamos saber em quem vamos votar, conhecer nossos candidatos, debater, pressionar. Não basta eleger. É preciso participar da vida política do país. Vivemos uma democracia frágil mas essa democracia esteve por um fio
E a gente vem de um período em que a política sofreu um descrédito, foi criminalizada.
Vivemos uma democracia frágil mas essa democracia esteve por um fio. Isto que chamamos de democracia porque ela está incompleta também. Não acolhe todos. Não permitiu que esse país seja um país para todos. Mas esse fio de democracia é importante para todos nós. Todos os avanços civilizatórios se deram nesse curto período democrático da nossa história.
Não podemos viver sem a democracia. Devemos participar ativamente da vida política do país, desde as associações de bairro até as eleições federais. A gente batalha, entra em campanha para eleger aqueles que achamos os mais preparados para resolver os nossos problemas. Mas mesmo depois de eleitos, não se pode deixar tudo ao Deus dará. Temos que provocar o debate, assumindo responsabilidades e compromissos também. Espero que o que vejo nos bairros e comunidades rurais se reflita no Congresso e no Judiciário
Tem outra característica nas tuas obras que são as mulheres fortes. Isso vem de uma referência tua, pessoal?
Vem de uma referência familiar, também do tempo em que vivemos que não aceita que a mulher ocupe os lugares mais recônditos da sociedade. Penso sobretudo nas comunidades rurais, nas associações de bairro, porque infelizmente o nosso Congresso ainda é um espaço conservador e as mulheres são minoria ali. Espero que tudo isso que vejo acontecer nos bairros, nas comunidades rurais, se reflita nas instâncias de poder do país, no Congresso, no Judiciário.
Estamos aí com uma vaga em aberto no Supremo Tribunal Federal. É importantíssimo que esse lugar seja ocupado por uma mulher. É importantíssimo que seja sobretudo ocupado por uma mulher negra. É importante para a nossa história. Venho de uma família conservadora, onde os homens reproduziam o machismo de muitas maneiras e as mulheres eram insubmissas. Eram aquelas que não aceitavam a violência caladas, que reagiam. Vi essas mulheres representadas de muitas maneiras nos espaços por onde passei, trabalhei e vivi.
Tudo se reflete naquilo que escrevo. É importante que a minha escrita reflita sobre o meu tempo. Durante muitos anos, a Igreja foi a maior detentora de escravizados do Brasil
No teu novo romance Salvar o Fogo, trazes o debate sobre a igreja, a religião. Por que este debate neste momento?
Espelha um pouco de tudo aquilo que vi e experimentei. É um livro que, apesar de falar de personagens que estão vivendo num tempo muito próximo ao nosso, são atravessados pelas questões mais importantes deste país, pela colonialidade, pela escravidão.
Como pensar na colonialidade, na escravidão, sem pensar no papel da instituição organizada, da Igreja, de como ela foi determinante para tudo isso? Determinante para quê? Para que o empreendimento colonial escravista tivesse sucesso. Durante muitos anos, a Igreja foi a maior detentora de escravizados do Brasil. Ainda detém grandes porções de terra, de bens econômicos, e pouco se fala sobre isso.
Na história colonial da América Latina, a colonialidade chegou com uma cruz cristã. A primeira coisa que fizeram quando desceram nesse território foi colocar uma cruz. Essa cruz significou o apagamento de muitas ontologias, de muitas culturas que existiam aqui. Por isso a Igreja está retratada com ênfase nesse romance. É quase uma personagem nos lembrando do papel fundante e determinante que o cristianismo teve na nossa história enquanto país. Devemos debater sobre tudo isso.
A Igreja representada aqui é a católica mas sabemos, por exemplo, do peso de outras denominações cristãs em espaços como o Congresso. Outras denominações cristãs tem decidido sobre as nossas vidas. Penetram em debates importantes da vida pública do país e, muitas vezes, da maneira como é conduzido o debate, não contempla a todos e termina fazendo esse Estado menos democrático do que deveria ser. Devemos querer mais mulheres, mais pessoas negras e mais indígenas publicando.
Deves chegar, provavelmente até o final do ano, a um milhão de exemplares vendidos. Torto Arado está sendo transformado em série pela HBO. Estás em uma nova geração de escritores negros. Temos o Jeferson Tenório e o José Falero, aqui do Rio Grande do Sul, que, como tantos outros, estão trazendo uma outra narrativa...
Vivemos um momento muito precioso. Conversava com o Jeferson (Tenório) e ele falava dessa primavera literária, tantas pessoas interessadas na literatura brasileira. Nas últimas três décadas eu não via tantas pessoas engajadas na nossa literatura. A diversidade das publicações tem nos feito minimamente perceber enquanto leitores. Falo isso porque sou leitor.
Este país é uma potência criativa, uma potência social, pela sua própria diversidade. Para mim, é um tempo muito novo. A Djaimilia de Almeida Pereira, que é uma escritora portuguesa de origem angolana, ela diz que “o melhor tempo é o nosso”. Tenho certeza disso. É onde se pode observar essa diversidade. Não quer dizer que a gente deve se conformar com isso. Devemos querer muito mais. Mais mulheres publicando, mais indígenas publicando, mais pessoas negras publicando, mais leitores interessados nessa diversidade social e histórica que é o Brasil.
Quais os autores brasileiros que tens lido?
Tem autores importantes que tem recontado de uma maneira muito interessante a história brasileira. Vou citar alguns, mas os que não forem citados não se preocupem porque o tempo é curto e a memória também. Penso na Ana Maria Gonçalves, na Conceição Evaristo, na Eliana Alves Cruz, no Jeferson Tenório, no Falero, no Ailton Krenak, na Juli do Rico.
Todos esses que estão trazendo uma nova história à luz. Uma história contada a partir de suas perspectivas e isso é realmente algo poderoso, que faz a diferença, não só no campo das artes, mas para a sociedade como um todo. A gente passa a se reconhecer na nossa própria diversidade. Acho que, quando a gente faz isso, vamos viver menos diferenças, menos racismo. Vamos repensar esse país em toda a sua grandeza mesmo. Gostaria que o mês da consciência negra fosse todos os meses do ano.
Estamos no novembro negro, o mês da consciência negra, o dia da consciência negra 20 de novembro. Qual a importância desse mês para se debater o racismo?
É bom que exista esse mês para lembrarmos de tudo isso. Mas gostaria que o mês da consciência negra fosse todos os meses do ano porque esse é um debate que não acaba, que não se dá só num mês, que não morre. Provavelmente vamos passar as próximas décadas, os próximos séculos, ainda discutindo isso, porque a nossa desigualdade, infelizmente, é grande, é imensa, é legado de cinco séculos de colonialismo, é legado de quatro séculos de escravidão. E a gente não vai desconstruir isso do dia para a noite. Por isso essas datas e meses são importantes. Mas a gente deve pensar sobre isso todos os dias do ano. Não dá para ser diferente.
Hoje temos o Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras, tantos escritores novos surgindo. Qual a importância da literatura, da imaginação, para a gente construir um outro mundo?
A literatura é fruição. Talvez não tenha um objetivo explícito, dado, mas o ser humano não vive sem arte. Tem um texto do (crítico literário) Antônio Cândido, O Direito à Literatura, que está no livro dele que foi recém editado, Vários Escritos, em que ele diz que todos os seres humanos são capazes de criar ficção, que a ficção mais íntima que todos realizam de alguma maneira são os sonhos, os sonhos são histórias ficcionais. Ou seja, nenhum de nós prescinde das histórias que são contadas em família, da música, da arte como um todo. É parte da nossa dimensão humana.
Pensando dessa maneira, a literatura pode nos ajudar. Ela permite que nós, como leitores, consigamos nos colocar no lugar do outro, no lugar daquela personagem, no lugar daquela história que estamos lendo. Para que a gente se coloque no lugar dessas personagens não precisa ter nenhuma origem. Só precisa ter o coração e a mente abertos para ler aquilo.
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Ainda que você não seja uma mulher negra, você vai entender o que é o racismo. Ainda que você não seja uma pessoa brutalizada, violentada, estigmatizada, se você tiver o coração aberto, vai compreender o que é isso. E isso, com certeza, nos humaniza, nos coloca em outro lugar, no lugar de compreensão mútua. E a gente passa a entender a dor do outro e querer atuar para que tudo seja melhorado em algum sentido.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno