relato

Vivendo na escuridão: a realidade da insegurança energética nas periferias

Em sua coluna mensal no jornal da USP, pesquisadora conta como a periferia enfrentou o recente apagão em SP

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Periferia teve que lidar com graves consequências nos dias que faltou luz em São Paulo - José Cícero/Agência Pública

Foi um início de mês infernal, sem energia, água e internet. Assim foi a rotina dos moradores da periferia de São Paulo nos dias que se seguiram ao temporal de 3 de novembro.

Após as primeiras 24 horas, lembrei-me de um livro do Jack London chamado A Greve, onde todos decidem parar suas atividades e de repente fica claro que sem trabalho não temos absolutamente nada. Essa reflexão pairou sobre mim enquanto esperava a luz do dia. Afinal, a luz solar, a princípio, ainda não foi privatizada.

Os comércios locais fecharam; a maioria deles não possui gerador, são comércios pequenos em que esta questão nem se coloca. Algumas pessoas optaram por ficar na casa de parentes mais próximos; não seria seguro voltar para casa no escuro. Em certos contextos, estar junto é a opção mais sensata.

Nas ruas, ouvi os vizinhos reclamando e falando da privatização, e de como se sentem desamparados em situações como essa. “Quando eu ligo para reclamar, ninguém atende!”, diziam. É muito difícil viver em áreas que quase ninguém se importa, onde o poder público só aparece em períodos eleitorais e os serviços essenciais são considerados itens de luxo. É um clichê, mas infelizmente é a realidade também.

Escrevo mensalmente nesta coluna sobre a energia como estratégica e central nas relações sociais e principalmente para o desenvolvimento do País. Desta vez, como não poderia deixar de ser, a realidade se impôs e vi, mesmo na escuridão, as dificuldades dos acessos mais mínimos quando nos falta este bem tão essencial: a luz.

Acostumada a lidar com as ausências, pensei que talvez, no meu inconsciente, foram estas ausências que me fizeram estudar e pesquisar sobre a energia e sua relação com a sociedade.

Imediatamente, lembrei da vizinha, uma senhora que, com diabete, mantém sua insulina na geladeira. Como fazer?

Após as primeiras 24 horas, tentando manter o mínimo de rotina, fui comprar pão; no entanto, não havia, pois a padaria também estava sem energia. O açougue mantinha um resfriamento natural, mas esses itens também devem ter estragado neste clima indefinido que temos e que deve piorar com as mudanças climáticas.

Na minha percepção, com base na experiência de quem sempre viveu aqui, parece que a qualidade dos serviços piorou muito. Lembro-me de temporais muito piores em tempos de chuva e intensidade, e nem de longe ficamos tanto tempo sem uma resposta.

Por outro lado, eu conheço e debato as mudanças climáticas, mas me preocupa quando a expressão é usada para desresponsabilizar quem precisa ser responsabilizado, ou mesmo para retirar aquilo que é mais evidente em contextos como estes: as classes sociais e a desigualdade. Algo notório é que, mesmo cem horas depois da chuva que causou esse estrago, muita gente continuava sem luz.

Conforme a energia foi se restabelecendo, sendo recepcionada até mesmo com panelaços e aplausos, muitos analistas começaram a escrever teorias e modelos para explicar algo tão simples: faltou a luz. A questão é por quê? A chuva já cessou há muito tempo; e por que ainda estamos nesta situação? Serei uma dessas vozes, mas, em meio à vida sem energia, percebi que sequer tive acesso a tudo que foi escrito nos últimos dias. Em meio ao caos, só queremos sair dele; foi o que eu tentei fazer junto com outros que fazem isso diariamente.

E, como sempre digo, se há áreas estratégicas para o Estado, a energia é uma delas. Nesse sentido, sempre me recordo da tese de um amigo que tive a oportunidade de ler (Sociedade, Natureza e Energia – Condições Estruturais e Superestruturais de Produção no Capitalismo Tardio), na qual o autor afirmava que, quando nossa visão da realidade se amplia, é possível perceber que, no capitalismo tardio brasileiro e suas condições estruturais, a produção das necessidades energéticas é extremamente complexa, cujo ponto de vista está sempre na ótica do planejador, pois é ele quem possui os instrumentos analíticos.

Na ausência desse conhecimento totalizante, “o planejador se transforma em mero técnico e contabilista da energia, jamais podendo pensar em política energética como um empreendimento de vulto e preparado para entender os contextos nacionais”. Fundamentalmente, em um país como o Brasil, altamente concentrador de renda, pensar o planejamento energético é, ao mesmo tempo, pensar nas condições econômicas que poderiam proporcionar maior igualdade social e distribuição da riqueza.

Nesse final de semana caótico, tornou-se evidente a existência de muitos contabilistas da energia e poucos planejadores, e essa ausência afeta a todos, principalmente de forma distinta, a periferia. Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Clima e Sociedade em 2021 corrobora essa preocupação, e o impacto do valor da conta de luz na vida das pessoas é significativo. Segundo o estudo, para 90% dos entrevistados, o atual valor da conta de luz está impactando “muito” ou “um pouco” no dia a dia das famílias. Para conseguir pagá-la, quatro em cada dez brasileiros (40%) diminuíram ou deixaram de comprar roupas, sapatos e eletrodomésticos.

O estudo revelou que nove em cada dez pessoas entrevistadas expressam receios em relação à possibilidade de racionamento ou apagões no futuro próximo, sendo que 70% delas afirmam estar muito preocupadas com essa perspectiva. Além disso, seis em cada dez entrevistados afirmam ter aumentado seu consumo de energia este ano, enquanto nove em cada dez notaram o incremento nas contas de luz. Longe do centro, a periferia é conhecida por muitas inseguranças. A insegurança energética é apenas mais uma.

* Elaine Santos é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.