Entre novembro e dezembro, uma leva de máquinas agrícolas chinesas chegará ao Brasil. São equipamentos como micro-tratores, colheitadeiras, semeadeiras e plantadeiras que terão como destino áreas produtivas da agricultura familiar no Ceará, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte.
São cerca de 30 máquinas que poderão ser utilizadas em 20 tipos de cultivos em áreas que incluem assentamentos do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra e de outras organizações da agricultura familiar, como o Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi (RN).
No município potiguar de Apodi é onde será instalada a Unidade Demonstrativa Brasil-China de Máquinas Agrícolas, que servirá para testar e estudar o uso do maquinário em solo nordestino.
Em 2022, o Consórcio Nordeste assinou um memorando de entendimento com o Instituto Internacional de Inovação de Equipamentos Agrícolas e Agricultura Inteligente da Universidade Agrícola da China e a Associação de Fabricantes de Máquinas Agrícolas desse país.
O acordo, que também foi assinado pela Baobab Associação Internacional para a Cooperação Popular, visa garantir o acesso a máquinas projetadas especificamente para o campesinato, como micro-tratores, roçadeiras, semeadeiras e plantadeiras.
Alexandre Lima, coordenador da Câmara Temática da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste, destaca a importância da parceria para a região, dada a desigualdade que existe no Brasil nesse sentido: “a região Nordeste do Brasil possui menos de 3% de mecanização, no Brasil esses níveis não alcançam 14%, e no Sul os níveis de mecanização da Agricultura Familiar beiram os 50%”.
A aproximação entre Brasil e China: dois gigantes do campesinato no mundo
No Brasil, 77% de todos os estabelecimentos agrícolas são da agricultura familiar, segundo o último Censo Agropecuário, realizado em 2017. As propriedades de agricultura familiar somam 3,9 milhões no país, e ocupam apenas 23% das áreas agricultáveis, o equivalente a 80,8 milhões de hectares, segundo o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023
Já no caso da China, os camponeses representam mais de 80% da agricultura, que também é composta por cooperativas e empresas estatais. A categoria é responsável por cultivar mais de 70% das terras agricultáveis do país, segundo o último censo agrícola chinês, realizado em 2020. Em média, cada camponês possui menos de um hectare de terra, e a maioria tem meio hectare.
A mecanização agrícola na China foi colocada como uma prioridade pelo líder chinês Mao Zedong em 1959, como parte da campanha de desenvolvimento do Grande Salto para Frente, que afirmou que a saída fundamental da agricultura residia na mecanização. Apesar da priorização, foi a partir do período de Reforma e Abertura, no final dos anos ‘70, que a mecanização avançou mais rapidamente, com medidas como isenção de impostos e subsídios à indústria.
João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, afirma que sobre a base da estrutura de pequenas unidades de produção, criada através da reforma agrária, ao longo do tempo , a China foi industrializando a sua economia produzindo máquinas para esse tipo de camponês. “Na China tem 8 mil fabricantes de tratores. No Brasil nós temos quatro grandes fábricas de tratores, todas multinacionais e todas dirigidas para a grande propriedade, grandes máquinas”, afirma Stedile, que esteve no país asiático em abril deste ano.
A professora Yang Minli, da Universidade de Agricultura da China, avaliada como a segunda melhor universidade na área de ciências agrárias do mundo, pelo ranking Best Global Universities, considera que existem muitas semelhanças entre a agricultura familiar no Brasil e na China:
“O modelo de desenvolvimento da China para camponeses, que utiliza serviços comerciais como estratégia para impulsionar as comunidades [como cooperativas de maquinaria agrícola], bem como os produtos de máquinas agrícolas de pequeno e médio porte da China, têm certa adaptabilidade ao Brasil”, diz Yang Minli. Através das cooperativas de maquinário agrícola na China, que contam com assistência e ajudas financeiras do governo central ou dos governos locais, os camponeses chineses dividem tanto os custos quanto as máquinas.
A mecanização agrícola na China
Uma das razões do desenvolvimento da mecanização agrícola na China é o enorme processo de migração rural-urbano, afirma Yang Minli. O nível de urbanização na China passou de 17,92% em 1978 para 65% em 2022, segundo dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China.
“Um grande número de trabalhadores rurais jovens e de meia-idade mudou-se para áreas urbanas. Devido ao rápido desenvolvimento econômico na China, houve uma elevada procura de mão-de-obra nos setores industrial e de serviços, que podem proporcionar oportunidades de renda elevada para os jovens trabalhadores migrantes rurais. Como resultado, eles migraram para as cidades”, explica a professora da Universidade Agrícola da China.
A partir de 2004, a China iniciou uma nova campanha de concessão de subsídios para compras de máquinas agrícolas. Desse ano até 2015, o país destinou 120 bilhões de yuans (mais de R$ 82 bilhões de reais), para subsidiar a compra de mais de 35 milhões de máquinas.
Durante esse período, o nível de mecanização agrícola na China passou de 33% para 61%. Atualmente, a cifra é de 73%.
Após iniciada a política, o governo fez ajustes no sistema e passou somente a subsidiar diretamente os agricultores, deixando de destinar o financiamento a empresas ou instituições financeiras. Em parte para evitar exercer pressão financeira sobre as empresas, conta Wu Zhaoxiong, diretor do Centro de Desenvolvimento Agrícola da Província de Hubei.
Uma segunda razão para a mudança foi a de garantir que os camponeses tivessem acesso às máquinas da forma mais direta possível, sem ter que se endividar, por exemplo. “Se os fundos dos subsídios fossem diretamente destinados às empresas, haveria a possibilidade de procura de lucro entre as empresas e os departamentos governamentais. No entanto, ao defender o pagamento integral da compra de maquinaria, os fundos dos subsídios são dados diretamente aos agricultores, permitindo-lhes beneficiar verdadeiramente da política nacional”, diz Zhaoxiong.
Um estudo publicado no ano passado pelas universidades Agrícola e de Ciência e Engenharia, ambas da província de Hunan, debateu a ideia de que a mecanização agrícola só gera benefícios se for implementada em larga escala.
Os pesquisadores mostram que a utilização de máquinas em pequenas terras agrícolas tem desempenhado na China um papel fundamental para garantir a segurança alimentar e erradicar a pobreza no meio rural. Entre os motivos da melhora na renda no meio rural, está a redução dos custos de produção e a diversificação de empregos não diretamente relacionados à agricultura.
Yang Minli afirma que, com essa estrutura de pequena agricultura, a China consegue garantir suas metas de segurança alimentar. Há oito anos a produção total de cereais se mantém acima do objetivo colocado pelo governo central de 650 milhões de toneladas produzidas anualmente.
Alexandre Lima afirma que a parceria com as instituições chinesas vai além do avanço na mecanização agrícola do Nordeste. “É um intercâmbio de conhecimento em relação às políticas públicas, a China tem ultimamente sido uma referência no que diz respeito ao processo de fazer com que as políticas públicas cheguem às comunidades rurais. Então, essa aproximação vai possibilitar que nós possamos cada vez mais aprender com os chineses e os chineses também aprender com a experiência brasileira no que diz respeito ao fortalecimento da Agricultura Familiar”.
Os três envios de máquinas estão previstos para chegar entre novembro e dezembro ao Brasil.
A inauguração da unidade demonstrativa em Apodi (RN), assim como o início da utilização do maquinário nas demais áreas deverá acontecer em fevereiro do ano que vem.
Edição: Leandro Melito