Ao longo de 2023, os brasileiros têm sentido os efeitos do aquecimento global combinado com um El Niño mais prolongado e severo. Da seca sem precedentes na Amazônia a alagamentos e ciclones no sul, os eventos climáticos extremos assustam e chamam atenção para a necessidade de agir de forma rápida e assertiva para estancar as emissões de gases do efeito estufa.
Um novo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês), divulgado no último dia 24, mostra que o Brasil e o mundo já estão investindo mais na transição energética do que na prospecção e produção de combustíveis fósseis. Até 2030, a participação das fontes renováveis no mundo devem saltar dos atuais 30% para 50%, segundo a entidade vinculada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Mesmo com esse movimento global, a produção e o consumo de combustíveis fósseis, especialmente do gás natural, devem se manter por mais alguns anos. Especialistas lamentam que o ritmo de mudanças deva ser "mais lento que o necessário" e que o desenvolvimento dos países, de modo geral, ainda impliquem no agravamento das crises climáticas e seus efeitos nas populações.
Rafael Amaral Shayani, professor de Engenharia Elétrica da Universidade de Brasília (UnB), destaca que os países emergentes devem continuar queimando carvão e gás natural e que a maior redução nas emissões será puxada por uma desaceleração do crescimento da China. Ele destaca também o movimento europeu para estimular a produção de automóveis elétricos, mas que essa solução em grande escala depende da adaptação do sistema de geração energética.
"O próprio Brasil pretende aumentar o uso de energia solar, de energia eólica, de biomassa, mas não tem previsão de conseguir alcançar uma neutralidade climática até 2050. A gente tem essa missão, assim como diversos países do mundo, mas muitos desses países estão ficando satisfeitos apenas reduzindo um pouquinho", critica.
O engenheiro também ressalta que os combustíveis fósseis representam 80% da matriz energética mundial e que é esperado que, até 2030, esse percentual seja reduzido a 73%, o que seria um ritmo ainda muito lento. "Reduzir 7% em alguns anos, quantos anos eu preciso para chegar até zero?", questiona Shayani, que também aborda o fato de o Brasil ter pela frente uma trajetória de crescimento econômico e populacional.
"Todo mundo quer que o Brasil cresça e, se crescer 1% até 2% ao ano até 2050, a gente vai precisar de muito mais energia. Então o Brasil pretende ter mais fontes de energia renováveis, só que tudo o que faltar deve vir do crescimento do gás natural, o que vai ser muito ruim. Vai aumentar a demanda por gás no mundo, o que vai fazer com que esse pico tenha um valor máximo e que a redução não chegue nunca para o Brasil", enfatiza.
Para Edson Silva, da consultoria energética ES Petro, empresas como a brasileira Petrobras devem continuar investindo em novos campos de petróleo, como a da margem equatorial da Amazônia, mas também devem cada vez mais ampliar investimentos em fontes limpas. "A 'era do petróleo' vai terminar não porque vai faltar petróleo, mas sim porque é uma imposição da sobrevivência do planeta. E como esse movimento é irreversível, uma empresa petrolífera que não se voltar para esse mercado que está se estabelecendo vai sofrer", indica.
Apesar de prever uma redução de 75% do consumo de petróleo e carvão até 2050 na América Latina, a IEA ressalta que o gás natural seguirá em alta e deve crescer quase 25% no período. Por outro lado, o Brasil deve seguir diminuindo a ativação de usinas termelétricas – aquelas que produzem energia a partir da queima de carvão natural – e que em 2022 registraram queda de 65% com relação ao ano anterior, segundo o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema).
O instituto ressalta, porém, que a redução ocorreu devido às condições climáticas favoráveis no período, viabilizando que medidas emergenciais do acionamento de termelétricas fossem mais restritas. No ano passado, inclusive, pela primeira vez a geração eólica ultrapassou a geração termelétrica fóssil. Já a geração solar registrou aumento de 80% em relação a 2021.
Um passo importante, mas ainda insuficiente para atingir a meta de zerar a emissão de carbono, conforme a seguinte explicação simplificada de Shaiany. "O carvão emite mil para gerar determinada energia, o gás natural emite 500, metade da poluição do carvão, e o sistema de energia solar emite 50, 10 vezes menos do que o gás natural e 20 menos do que o carvão. Então você trocar o carvão pelo gás natural você reduz pela metade as emissões, o que é bom, só que não adianta cortar pela metade a emissão que deveria ser zero".
Redução do desmatamento é meta 'alcançável'
No caso brasileiro, a descarbonização também passa pela redução de índices de desmatamento, especialmente na Amazônia, que corresponde ao principal gênero emissor de gás carbônico do país. Uma projeção feita pelo Observatório do Clima prevê que, nessa frente, é possível alcançar a meta de redução estabelecida para 2025, se o país conseguir chegar a níveis de desmatamento parecidos aos alcançados entre 2005 e 2006.
Em nota técnica divulgada à imprensa, a organização não governamental afirma que a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) sofreu distorções durante o governo de Jair Bolsonaro, que aplicou o que chamam de "pedalada ambiental". Agora, para retomar as metas estabelecidas em 2015 – de reduzir as suas emissões em 37% até 2025 e 43% até 2030, em relação às emissões de 2005 – é preciso retomar a velocidade de redução do desmatamento.
Mesmo a matriz energética brasileira, reconhecida como mais limpa que a média, também poderia apresentar melhores resultados e deve piorar antes de começar a melhorar. É o que aponta David Tsai, coordenador do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima.
"A maior parte da energia consumida no Brasil é de origem fóssil. Ainda que relativamente com outros países a gente tenha um percentual bastante maior. Mas entra sim na conta e a premissa é de que não haverá uma grande ruptura dentro de dois anos. A gente continua nessa toada de matriz energética dos últimos anos", afirma.
Mercado de biocombustíveis cresce e Brasil larga na frente
Se os países da Europa privilegiam a produção de carros elétricos, outros países da América Latina também estão priorizando a rápida adoção de veículos desse tipo, como Chile, Colômbia, Costa Rica e México. Já o Brasil faz parte de um grupo cada vez mais numeroso de países que investem em biocombustíveis a partir da adoção de leis que impõem a adoção da mistura obrigatória de etanol a combustíveis fósseis, como gasolina e diesel.
De acordo com a newsletter americana do setor, Biofuels Digest, mais de 60 países preveem a mistura, em diferentes proporções, ao redor do globo, com representantes em todos os continentes. Segundo a publicação, a decisão decorre de motivações distintas, que vão desde a preocupação com a redução das emissões dos gases do efeito estufa até a segurança energética do país.
O Brasil, que começou a produzir etanol produzido com cana de açúcar já na década de 70, nos últimos anos passou a extrair o combustível do milho também, conferindo ainda mais competitividade ao setor. De acordo com dados da União Nacional do Etanol de Milho (Unem), a produção de etanol de milho deverá atingir 6 bilhões de litros na safra 2023/204, somando um total de 19% do consumo nacional de etanol, que passa a contar com um mix do produto extraído do milho e da cana.
Para Edson Santos, o sucesso dessa empreitada ao redor do mundo deve abrir um mercado que pode favorecer a economia brasileira. "Hoje, o etanol, apesar de tudo, ainda não é uma commodity, uma energia precificada no mercado internacional. Mas à medida que vários países entrem nesse mercado, como a Índia, a China, vários países da África, isso vai mudar", confia.
"O movimento não é restrito aos países ricos, porque os outros países têm terra, clima, mesmo que não tenham petróleo. Isso é muito importante porque não é uma produção restrita a um ou dois países, o que gera insegurança. Por exemplo, da indústria produzir um carro flex sem ter a segurança de fornecimento internacional, e estamos caminhando para um mercado global de biocombustíveis", complementa Santos.
Shayani, por sua vez, enfatiza as duas rotas distintas que se apresentam em vários lugares do mundo no sentido de reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. "Ou você investe em carro elétrico ou você utiliza um biocombustível, e a transição para o biocombustível é mais simples porque se você tiver muitos carros elétricos, ao mesmo tempo, a rede elétrica dos distribuidores de energia precisa se preparar para isso. Então, o Brasil tem bastante potencial para liderar esse mercado de biocombustíveis como um todo", acrescenta.
Além dos biocombustíveis, o Brasil também tem enorme potencial na produção de hidrogênio verde, que armazena energia produzida por fontes renováveis. Também há espaço para investir na biomassa da cana-de-açúcar e resíduos sólidos e até extrair energia a partir da força das ondas que chegam à nossa costa.
Iniciativas que dependem de investimentos, mas que podem acabar sendo rentáveis a longo prazo, além de pouparem os cofres públicos "apagando incêndios". Shaiany relembra que o Brasil desembolsou cerca de R$ 1 bilhão para socorrer as vítimas e desabrigados após os alagamentos no Sul e também para ajudar as comunidades ribeirinhas da região Norte a enfrentar a seca aguda dos últimos meses.
"Os países precisam entender que, se o Brasil por exemplo, pega esse R$ 1 bilhão para investir em energia limpa, e outros países seguissem essa mesma lógica, iríamos emitir menos gases do efeito estufa e poderíamos frear um pouco o problema climático", sugere o professor, que sintetiza. "O custo para você reparar o problema climático pode ser muito maior do que o que você ganha com essa exploração".
Para Silva, os governantes precisam enxergar o quanto antes a necessidade de promover mudanças, de potencializar a produção e o consumo de biocombustíveis e de fontes renováveis de energia. "Esse é um compromisso com a sobrevivência do planeta e é um bom negócio. Independentemente de tudo, é um bom negócio para o futuro, um futuro que já é hoje", finaliza.
Edição: Thalita Pires